Esse encontro urgente, capital, inadiável comigo mesma 10/11/2014 - 14:50

A partir de fragmentos de vários textos literários e de canções populares, a professora Tânia Regina Oliveira Ramos constrói uma narrativa memorialística, em que revê a sua trajetória pessoal e profissional


Nasci oficialmente em Juiz de Fora. Quanto à data do mês e ano, isto é da competência do registro civil. Não me vi nascer, não me recordo de nada que se passou naquele tempo. Na verdade, nascemos a posteriori. No mínimo uns dois anos depois. Mesmo porque antes era o dilúvio.

Faço esforços de memória para saber qual foi a primeira impressão de minha vida, quando percebi que existia, que era um ser sensível e humano. É uma lástima esquecer! Nada descubro como ponto de partida, como clarão inaugural... Agora me lembro. Guardo a vaga lembrança de um ajuntamento de pessoas, subindo, em silêncio, a colina, onde assentava a casa grande. Desde os cueiros até aprender a falar, o choro foi um gênio, minha força de opinião, meu grande argumento. Sou teimoso. Vou rasteando o tempo para exumar alguma coisa do limbo. Servirá mesmo o quotidiano e o doméstico, contanto que tenha uma expressão e traduza realidade e sentimento. Afinal de contas, a memória de um velho está cheia de labirintos. Escrever memórias numa ordem rigorosamente cronológica seria uma tarefa difícil, perigosa, e, possivelmente, monótona.

De resto, o tempo do calendário e o do relógio pouco e às vezes nada tem a ver com o tempo de nosso espírito. Vivo em memória tudo aquilo que passou e não volta mais: a nossa cidade, a casa de vovó, onde vivemos os primeiros anos, o quintal que revejo com os olhos daquele tempo, imenso, misterioso, cheio de atrativos; a velha cisterna que me fascinava...

Servia-me o almoço às dez e o jantar às quatro, e isso representava já uma concessão aos hábitos citadinos. Meu pai nascera na roça, e horário ideal parecia o de tia Perpétua, que, às nove papava o seu picadinho com angu, ao meio-dia merendava, e às três despedia-se da mesa com uma sopa de feijão, para se meter entre os lençóis assim baixasse a noite, conforme prescreviam os antigos: Janta com o sol alto, não terás sobressalto; com o sol posto o rosto.

À tarde, não havendo outros compromissos, dona Angelina reunia em sua casa algumas vizinhas interessadas em romances de folhetim. Os folhetins de antigamente representavam o mesmo papel das novelas de televisão nos dias de hoje.

E como a vida era boa naquele tempo. É uma lembrança longínqua, das mais longínquas, a figura ou antes, a sombra do meu avô materno. Como uma fotografia antiga, desbotada, quase desaparecida pela ação do tempo, vejo-me segura às suas pernas na sala de jantar da casa de vovó. Sempre associei o nome e a figura dessa avó materna a certos odores, coisas de comer.

Não sei porque me vêm à memória certas coisas de minha infância, sempre que pego na pena; talvez porque naquela época, coisas pequenas me impressionassem mais e eu guardo tudo muito. O que há de especial nessas reminiscências é que não obstante serem tão vagas, encerram para mim um conteúdo inesgotável de emoção. Debruço-me sobre este caderno e fico alguns minutos, imóvel, com a pena apontando a página em branco. De vez em quando, no ermo da madrugada para entreter os intervalos de minhas insônias, desço aos porões da memória, em busca desses instantes antigos.

Uma das mais terríveis noites de minha vida foi a de 2 de dezembro daquele ano de 1922. E por que tantos enterros e ressurreições em meus sonhos? Qual seria a explicação? Já encontrei explicação muitos anos mais tarde. Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem; fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos para evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a narração.

Além disso, não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Eu, tu, ele, nós, vós, eles. Entre dois nadas os pronomes dançam. Assim, vagando no tempo, voltando de manhã para ontem (que nem cápsula espacial que pode girar quatro, cinco, seis dias, sol e noite, claro-escuro, nas vinte e quatro horas dum dia só), volto àquela Rua Haddock Lobo na sua eternidade. Saudade. Readquiro outra idade. Saudade. Sim. De mim na hora em que começava outra fase da vida nas ruas que se destinava a ser minha cidade.

Saudade. Eugênia! Que saudades me ficaram daqueles instantes de alumbramento! Fogo de carne que ainda hoje me queima como brasa. A memória é manhosa, tenho de negacear. Primeiro reproduzo o painel assim como me vem à mente; depois investigo pormenores, procuro restituir a pintura primitiva, removendo as finas pinceladas com que sobre ele, o tempo compôs outros quadros. Quero da memória apenas a essência das lembranças. Estarei assim dentro da verdade? Importa a verdade? Ah! Pilatos, Pilatos... Para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança? Onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis.

Minha opção é sempre a segunda, porque só há dignidade na recriação. O resto é relatório. (É bom ser ficcionista, pois se eu fosse sociólogo, etnólogo ou qualquer outra coisa em ó l o g o não estaria fazendo tantas afirmações levianas. O impulso de escrever para mim mesmo, em caráter autoconfessional, ditou os feixes de palavras que fui acumulando e que um dia... destruí.

Do conjunto sacrificado salvaram-se algumas páginas que hoje reúno em livro. Animou-me a ingênua presunção de que possam dar ao leitor um reflexo do tempo vivido de 1943 a 1977, menos por mim e pelas pessoas em volta, fazendo esmerar coisas literárias e políticas daquele Brasil sacudido por ventos contrários.

Rasgamos papéis, rasgamos os fatos que eles testemunhavam. Passar a vida a limpo. Eu me pergunto se a memória não estará tentando enganar-me, bem como agora talvez eu esteja procurando ludibriar quem me lê. É o caso de eu ter escrito e continuar a escrever estas minhas pobres memórias. Elas estão longe do que eu desejaria que fossem. Não me considero grande escritor por tê-las rabiscado. Foram produzidas porque eu queria ter — roubando aqui o pensamento de Proust — esse encontro urgente, capital, inadiável comigo mesmo.

E mesmo de olhos abertos eu sonhava.

Inventava meu mundo e convocava meus mitos, fugindo do meu ambiente para mostrar outros quadros. Nesses momentos de fuga ia ao ponto de plantar minha paisagem e gerar outras vidas, por obra da imaginação. Demorava-me nessa atmosfera fictícia e meus sonhos tomavam corpo. A imagem estava sempre presente e eu brincava com essa ilusão. E assim me fiz romancista.

As palavras “outrora”, “naquele tempo”, “antigamente”, “há séculos” impressionavam-me muito. Queria saber se não seria possível colar os tempos uns nos outros, se o tempo era vertical ou horizontal. Estou só e a vida vai custar a reflorir. Estou só.

Dolorosamente encaro o velho que tomou conta de mim e vejo que ele foi configurado à custa de uma espécie de desbarrancamento, avalanche, desmonte — queda dos traços e das partes moles deslizando sobre o esqueleto permanente. Erosão. Meu retrato está de corpo inteiro nestas memórias.

Ó tempo! Ó anti-Pitanguy, meu e nosso carrasco. A memória é a repetição da vida que multiplica o passado, mas bom mesmo é esquecer. Quem ousaria negar que — ao menos para uma memória fértil — o passado situa-se a posteriori? Policio minha linguagem. Censuro, escamoteio qualquer coisa que possa lembrar terra, caixão e tumba/c'roa pedr'e e catacumba. Não vou citar nomes.

Nesse trabalho coletivo a memória e a imaginação cooperam de tal jeito que nos é impossível saber se o informe decisivo é falso ou verdadeiro. As coisas findas/muito mais que lindas/estas ficarão. Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura... A saudade que dói mais fundo — e irresistivelmente — é a saudade que temos de nós. És um senhor tão bonito, tens a cara do meu filho/Tempo, tempo, tempo, tempo.

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