Entrevista | Glauco Mattoso 27/10/2020 - 11:58

O Bardo da Subversão

Dono de um estilo que mistura erudição e vulgaridade, o poeta Glauco Mattoso — que publicou 15 livros somente neste ano — faz de seus versos um desabafo contra as injustiças, humanas ou divinas

João Lucas Dusi

 

O poeta Glauco Mattoso luta contra o vício de fazer sonetos há muitos anos. Após várias recaídas, desistiu de tentar abandonar essa forma poética à qual se dedica regularmente há pelo menos duas décadas, desde que o glaucoma congênito lhe tirou a visão. A prática é uma espécie de compulsão, nas palavras do próprio autor, que se assemelha à dependência química. “Foi a excappatoria que encontrei para não me mactar, não me drogar nem enlouquescer, ja que a cegueira, ao contrario do que allegam os ceguinhos politicamente correctos, é uma desgraça incontornavel”, explica com sua ortografia peculiar (anterior à reforma de 1943), em entrevista concedida ao Cândido por e-mail.

O resultado é uma obra vasta, com mais de 60 títulos e que se aproxima dos 7 mil sonetos — nos quais os “dissonetos”, uma variante de 16 versos praticada pelo paulistano e presente no recém-lançado Cem Novidades (2020), também se incluem. Além do livro editado pela curitibana Kotter, Mattoso publicou neste ano Inintellectuaes e Circumstanciaes, ambos pela Lumme, e mais 12 e-books gratuitos por meio do selo Casa de Ferreiro, administrado por Lucio Medeiros — também responsável pelo canal do YouTube do autor, inaugurado no mês de outubro com o objetivo de reunir depoimentos, entrevistas, leituras e outros conteúdos que possam interessar os entusiastas da produção mattosiana.

Uma produção bem singular, aliás, pautada na obsessão por uma forma fixa, com rimas e decassílabos, e guiada pela dualidade. “Practico uma symbiose entre cultismo e chulismo, uma convivencia pacifica do erudito com o vulgar”, explica o autoproclamado poeta “desiluminista”, “desumanista” e “pornosiano”, que garante ter mais amor aos cães que à espécie humana.

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Glauco Mattoso, em atividade desde os anos 1970, já escreveu quase 7 mil sonetos. Foto: Divulgação

 

Um de seus livros mais recentes, Molysmophobia, foi produzido durante o ano de 2020 e lançado somente online e gratuitamente. O seu texto de introdução à obra fala em “estilo mattosiano”. Como você o define?
Alguns detectam na propria orthographia que adopto (anterior à reforma de 1943) uma das characteristicas desse estylo. De facto, practico uma symbiose entre cultismo e chulismo, uma convivencia pacifica do erudito com o vulgar. Nada de innovador, ja que Bocage e Gregorio, quando versejavam pornographicamente, mixturavam o baixo calão à syntaxe elaborada. Mas elles o faziam numa epocha em que tanto a orthographia quanto a syntaxe eram normaes dessa forma. Minha peculiaridade está no anachronismo, que tambem pode ser um typo de anarchismo e, portanto, tão anticonvencional quanto qualquer vanguardismo. Somme-se a isso o verso metrificado e rhymado, pouco practicado na actualidade, e temos um caso que personifica esse differencial, no que se refere à forma. No caso da thematica fescennina, a singularidade se accentua, pois não se conhesce outro escriptor cego e gay que seja, tambem, sadomasochista e fetichista, mas tenha mais amor aos cães que à especie humana...

 

Após mais de 6 mil sonetos, o que ainda o motiva a produzir dentro dessa forma?
Uma especie de compulsão, semelhante à dependencia chymica. Costumo brincar que tentei me livrar do vicio, como quem para de fumar ou beber, mas tive varias recahidas até que parei... de tentar. O sonnetto sempre me fascinou, por seu molde synthetico mas não tão laconico como o haikai ou a trova, permittindo um raciocinio completo. Na epocha em que ainda enxergava residualmente, não me attrevi a sonnettar sinão de forma experimental e desregrada. Depois da cegueira total foi que creei coragem, ja que só me restava a memoria, e o recurso mnemonico torna-se ferramenta importante na composição, tal como no repentismo. O computador fallante, programmado para cegos, viabilizou a producção, que, milhar a milhar, vae se advolumando ao longo de duas decadas e ja se approxima dos septe mil.

 

E após mais de 60 títulos de poesia, o que significa lançar um livro para você atualmente? Com as alternativas virtuais de hoje, qual é a relevância da obra impressa?
Bacharelei-me em bibliotheconomia, fui bibliothecario (como Borges) antes de perder a visão. Por isso nunca vou deixar de valorizar o livro impresso, mais ainda si publicado em quantidade. Como diriam Lobato e Castro Alves, um paiz se faz com homens e livros à mancheia... Ja beirando os septenta annos, acho vital publicar varios por anno. Uma sobrevivencia dos neuronios. O livro digital chegou para facilitar a vida, ja que nenhuma editora daria compta de tantos lançamentos physicos, muito menos em tempos pandemicos. Creei meu proprio sello, Casa de Ferreiro, no momento opportuno, graças ao empenho do editor virtual Lucio Medeiros. Mas continuo lançando em papel e, alem duma dezena de e-books em 2020, sahiram trez brochuras, duas pela Lumme e uma pela Kotter.

 

Acha que a facilidade que a internet oferece hoje para a veiculação de conteúdo subversivo era o sonho da vanguarda literária da década de 1970? Do pessoal da Geração Mimeógrafo, por exemplo.
Ah, só os auctores de ficção scientifica talvez sonhassem com tamanho advanço technologico. Minha geração comptava nos dedos cada fanzine vendido ou distribuido, de mão em mão ou pelo correio. Cada leitor era um amigo, um companheiro de lucta... Agora temos “amigos” incomptaveis, mas anonymos e distantes. Em compensação, damos nosso recado para um publico illimitado.

 

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Lucio Medeiros, que vem publicando sua obra em e-book pelo selo Casa de Ferreiro, também administra seu canal no YouTube — iniciado há pouco tempo. Na atualidade, o audiovisual tem apelo maior que a escrita?
Pessoalmente não tenho a menor euphoria accerca de imagens sobre mim, ja que não posso usufruir dellas. Mas entendo que ellas teem utilidade cada vez maior na actualidade e que os leitores / pesquisadores dão muita importancia a taes contehudos. De minha parte, valorizo o trabalho do Lucio, que é precioso, mas priorizo o texto e sua reproducção syntheticamente “fallada” pelo meu computador adaptado para cegos.

 

Sua produção segue intensa durante este período de pandemia. A situação lhe afetou de alguma forma? Houve alguma reflexão essencial que você tirou das incertezas do momento?
Minha roptina pouco mudou porque eu ja vivia recluso na cegueira. Mas o isolamento total da quarentena suscitou varias reflexões, sim. Acho que relativizamos quasi que quanticamente a nossa ja limitada percepção politica das liberdades individuaes e nossa intuição philosophica (ou mystica) da finitude exsistencial. Não sou kardecista como foi meu pae, mas approfundei minha bruxaria em face duma maior urgencia transcendental.

 

Você colaborou com periódicos alternativos como o Lampião da Esquina, O Pasquim e o Nicolau. A sociedade, hoje, colhe frutos do trabalho questionador realizado por esses impressos? Existem iniciativas que ainda mantêm o espírito combativo atualmente?
Esse papel independente e alternativo da imprensa accabou se pulverizando pelos blogs e perfis nas redes sociaes, entre “influenciadores digitaes” e columnistas nas varias midias. O que era uma “resistencia cultural”, collectiva e communitaria, tornou-se um chaos meramente opinativo, mas que nos desaffia a garimpar boas cabeças com quem compartilhar arte, informação, politica, religião, sexo e por ahi vae...

 

Você tem participação na cena cultural paranaense e acaba de lançar um livro pela Kotter. Como aconteceu essa aproximação? E como avalia a produção literária mais underground do Paraná em comparação à de outros estados?
Aqui cabe um retrospecto. Sou paulistano da gemma, mas successivos caprichos do destino me approximam do Paraná. Estou casado ha quasi vinte annos e meu esposo, Akira, é da região de Foz do Iguassu. Ainda nos annos septenta namorei niseis e sanseis da região de Londrina que conhesci pelos classificados eroticos de revistas como Peteca e Rose, editadas em Curityba por Wilson Bueno, que depois editaria o Nicolau, onde collaborei. Quando publiquei O que é Poesia Marginal (1981), Leminski ja tinha publicado Catatau e era amigo dos concretistas, mas ainda era desconhescido na editora Braziliense. Depois de ler meu livro, Caio Graccho se interessou por Leminski e o publicou. Leminski reciprocou, pois collaborava na Folha de S.Paulo e commentava meu poezine Jornal Dobrabil. Ambos eramos underground, mas elle começou primeiro, vinha da geração anterior. Quando publiquei o album de quadrinhos Glaucomix (1990), fui com Marcatti a Curityba lançar na gibitheca, pioneira no genero. Quando, ja cego, voltei à poesia attravés do sonnetto, um dos primeiros a me dar as boas vindas foi Wilson Bueno, collaborando no Estadão. Depois troquei figurinhas com Valencio Xavier e Ricardo Corona, que divulgaram meu sonnettismo na imprensa curitybana. Si eu fosse recuar no tempo até minhas influencias, teria que pagar tributo a outro outsider, Emilio de Menezes, recusado na ABL por Machado por causa da vida bohemia e da satyra pornô. Emfim, tenho referencias em varios estados e, tambem, muita ligação com o Rio (onde morei) e com o Nordeste, devido à litteratura de bordel, coirman da de chordel. Mas fazer comparações é tarefa de historiadores e criticos litterarios. A mais recente proximidade com o Paraná se deu, como você lembrou, por causa do sello Kotter, que me contactou via internet, ja que, preso em casa, nem siquer posso dar bom dia ao vizinho de apê.

 

Dos rótulos que lhe colocaram até hoje, como o de poeta maldito ou marginal, teve algum que conseguiu definir bem sua produção e a forma que você, de fato, encara o mundo?
Sempre affirmei que acceito todos os rotulos, mas prefiro o de “postmaldicto”, ja que no postmodernismo todas as tendencias se mixturam. Tambem me autoproclamei “desilluminista”, “deshumanista” e “pornosiano”, mas assumindo que nenhum rotulo identifica uma biographia. Cada auctor é um “eu” (titulo do livro de Augusto dos Anjos, outro inclassificavel) e todos temos nossa “missão” exsistencial, eivada de imperfeições, fraquezas e deficiencias. Na superação da imperfeição é que cada um constroe uma identidade artistica, para a qual appenas o rotulo não basta.

 

Desde que o glaucoma lhe tirou a visão, nos anos 1990, sua produção literária se tornou mais volumosa. Como foi esse processo? Qual foi o impacto dessa condição na sua forma de lidar com a poesia?
A poesia se advolumou porque fiquei sem outras alternativas artisticas e porque, ja apposentado por invalidez, tive mais tempo para a dedicação integral. Aquella compulsão a que me referi foi a excappatoria que encontrei para não me mactar, não me drogar nem enlouquescer, ja que a cegueira, ao contrario do que allegam os ceguinhos politicamente correctos, é uma desgraça incontornavel.

 

“Poeta me tornei pela revolta” é uma das afirmativas do soneto “Natal”. A revolta é um sentimento fundamental para o fazer poético? Para o seu, ao menos?
Sem duvida. Tracta-se dum desabbafo contra as injustiças, humanas ou divinas, e nisso me identifico com outros excluidos, explorados, opprimidos e desvalidos.

 

No soneto “Masoquista”, diz-se que políticos “são tão filhos da puta que só vendo, / capazes de criar até decreto / que obrigue o pobre, o cego, o analfabeto, / a dar mais do que vinha recebendo”. Como avalia a situação política atual do país? A cultura vai bem?
Costumo repetir um proverbio portuguez: “O prohibido aguça o dente”. Ironicamente, os periodos obscurantistas como o de agora servem para instigar a creatividade e a rebeldia. Quando comecei a versejar, em 1974, a censura dictatorial fechava as portas da imprensa e do mercado editorial, mas estimulou aquella geração a desaffiar e transgredir, tal como occorrera na musica com Chico Buarque, Milton, Caetano e Gil. Toda moeda tem duas faces.

 

O soneto “Escatológico” sugere que “é tanto incompetente apadrinhado / fazendo merda e sendo promovido”. Esse processo acontece na literatura? Nas suas décadas de vida literária, quais foram as mudanças mais significativas pelas quais o mercado editorial passou?
Nesse adspecto o panorama practicamente não se altera. As editoras commerciaes promovem os protegidos que teem connections e os marginalizados se viram por compta propria. A differença é que agora ficaram mais faceis as edições de auctor, graças às ferramentas da internet, que substituem os velhos fanzines e cooperativas litterarias.

 

Como você se relaciona com sua produção mais antiga? Há algo de que se arrepende?
Não renego nada, ao contrario de Bocage, Kafka, Belli e outros “arrependidos”. Sou exsistencialista e espirita, entendo como missão tudo que fazemos. Temos que passar por um processo de admadurescimento e mesmo as obras da immaturidade são uteis e necessarias.

 

Houve momentos na produção do seu romance lírico, Raymundo Curupyra, O Caypora, que você se sentiu possuído pelos demônios da poesia. Essa sensação transcendental, quase mística, tem um papel fundamental na sua escrita? Acha que, ao se aproximar de forma exclusivamente técnica da literatura, algo significativo se perde?
Não, nada se perde. Chico Xavier, quando psychographou o monumental Parnaso de Além-Túmulo, foi possuido por uma inspiração muito mais erudita e formal, mas transmittiu seu recado com impressionante clareza, ou clarividencia. No meu caso, a possessão foi bem mais sacrilega e mundana, mas teve o mesmo effeito esthetico, tendente ao perfeccionismo.

 

É correto dizer que a música tem um papel central na sua vida? Essa arte se relaciona, de alguma forma, com sua criação poética?
Sim. Sou da geração que accompanhou a historia do rock, mas tambem me nutri de MPB e de musica classica. Depois da cegueira, o papel da audição se fortalesceu e passei a dedicar mais tempo à musica. Varios sonnettos meus, aliaz, foram musicados por differentes interpretes, do rock ao samba.

 

O soneto “Beletrista” diz que “Mattoso, em trevas, vive no futuro”. As notícias que ele pode nos trazer desse local distante são boas ou ruins?
Dando uma de Tiresias, direi que a longo prazo são boas, ja que a posteridade nos faz mais justiça que a contemporaneidade. Mas em vida as coisas sempre tendem a peorar, como diria a bruxa de Syracusa...