Entrevista | Fabrício Carpinejar 30/11/2020 - 16:00

Escrever para Domesticar o Medo

O escritor e poeta gaúcho fala da vida doméstica em tempos de pandemia, da arte como porto seguro e sobre como é escrever em tempos de incerteza

Jocê Rodrigues

 

Conversar com Fabrício Carpinejar é como falar com alguém que se conhece há muito tempo. Entra ano e sai ano, é sempre assim. O riso largo, a cordialidade, o interesse real em saber como o outro está fazem parte do seu repertório. Não como obrigação ou como algo treinado para fazer média, mas por vontade de desfazer os nós das tensões que normalmente se enrolam nos momentos iniciais de uma entrevista. Em todas as vezes que o vi pessoalmente, seu corpo era todo festa. As mensagens no corte de cabelo, as roupas ora coloridas e alegres, ora sóbrias e contidas. Os sinais visuais podiam até contrastar, mas a essência é sempre a mesma. O raciocínio rápido, o talento para trazer o abstrato para a linguagem cotidiana.

Com a atual situação pandêmica, a conversa desta vez teve de ser à distância. Não dava para ver as expressões, as roupas e o corte. No entanto, a ausência destes elementos visuais não fez a menor diferença. Ainda era o mesmo Carpinejar do outro lado. Com a mesma descontração e a mesma profundidade de fácil compreensão. Aliás, tornar o profundo entendível para as pessoas é uma de suas principais qualidades. Não à toa possui centenas de milhares de seguidores em suas redes sociais.

Fabrício, assim como a maioria de nós, precisou redescobrir a própria casa. Teve de se readaptar à rotina doméstica e ao silêncio dos móveis. Foi durante esta redescoberta que surgiu Colo, Por favor! (Planeta, 2020), livro que fala da solidão em tempos de isolamento e dos efeitos benéficos de poder aconchegar-se em outra pessoa. “No colo, exclusivamente no colo, temos paz para aliviar esse aperto no peito de não prever o que nos espera, de não poder determinar a nossa saúde, o nosso emprego, o nosso sustento, a nossa sanidade”, diz uma das crônicas.

Durante a conversa, Carpinejar falou dos desafios de escrever numa nova rotina; da paixão pelo Inter; da construção de novos hábitos (e da redescoberta de antigos) e da importância da literatura e da arte em momentos tão incertos. “A arte faz uma coleta seletiva das nossas emoções. A gente separa o que é plástico, o que é metal e o que é papel dentro de nós”, diz.

Autor de enorme popularidade, não se importa muito com as impressões que pode causar aos literários mais carolas que ainda acreditam na ideia de que a literatura não deve tocar o chão. Em meio ao fogo cruzado que é o terreno literário brasileiro, Fabrício caminha com tranquilidade e diz nunca ter sofrido preconceito com a sua obra: “Eu acho que eles são educados e não me falam (risos). Eu valorizo essa gentileza”.

Acabada a entrevista, Fabrício Carpinejar permanece ainda um pouco. Não fisicamente e nem ao telefone. Mas em forma de ideias que inspiram e convidam a enxergar o mundo das coisas pequenas, das micropoéticas que se escondem nos cantos da casa, nas gavetas e no lusco-fusco da solidão. Quer ver?

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Carpinejar é autor de Colo, Por Favor! (2020). Foto: Reprodução / Instagram

 

Primeiramente, como está sendo esse período de pandemia para você?
Eu me isolei completamente. Não foi apenas um isolamento social. Foi um isolamento intelectual, poético, afetivo. Usei mais esse tempo, que é mais um tempo do que um espaço, como uma catacumba; como uma forma de me voltar para mim, para as minhas raízes; de ver o que me tornei em perspectiva e entender como as pessoas me enxergam, pois a gente nunca reserva tempo para isso. A gente fica com a nossa versão única; usa essa versão como espelho e não desfaz ruídos, enganos e impressões equivocadas. Foi realmente uma época em que tentei não reclamar. Reclamar não faz mais sentido. Todo mundo está oprimido pelas circunstâncias, com dificuldade de trabalhar, com saudade de parte da família. Então decidi que não iria reclamar. Seria até uma atitude preguiçosa. E aí escrevi o Colo, Por Favor!, que foi minha maneira de domesticar o medo e também reverter a minha vida para curto prazo. Eu não podia mais pensar longe, pensar a médio ou a longo prazo. Tinha que pensar a curto prazo, dia por dia. Também comecei a me envolver terapeuticamente com as atividades domésticas: cozinhar, lavar, faxinar. Foi um retorno para as gavetas. Não tem quem não tenha remexido nos seus armários, na sua despensa; que não tenha colocado papel de presente nas gavetas; que não tenha encontrado capricho no inútil. A maior adoração à vida é quando você faz algo que não é necessário.

 

Ou seja, quando se faz algo que não está ligado ao senso prático.
É. Acho que a gente ficou mais ligado à sinceridade do prazer. Toda a nossa felicidade estava voltada para a rua, para o externo. A gente se estimulava com viagens, com passeios, com shopping. O final de semana era sempre fora de casa e, de repente, nos vimos jogados para dentro de casa e se perguntando: “Que casa é essa? Ela tem nossa personalidade? O relacionamento que tenho com essa casa é saudável?”. Acho que essas perguntas começaram a permear todas as pessoas. Por que eu fiquei tão dependente daquilo que não está em mim? Por que chegar na segunda-feira no trabalho e responder para os amigos que eu não ter saído no fim de semana é sinônimo de depressão? A gente tinha perdido uma sintonia fina da sensibilidade. Que é a paz que você pode alcançar em silêncio ou ao disciplinar seus horários, por exemplo.

 

Você acha que tínhamos esquecido de como era ter uma rotina particular, íntima? Não somente aquela do trabalho?
A gente acabava trabalhando mais para nunca se encontrar no descanso. Para nunca se ver fazendo nada. Não devemos rentabilizar o ócio. A gente começou a ter essa noção de que descansar é fazer alguma coisa. Se você pensa em descansar, logo já está pensando também que precisa fazer um curso ou algo parecido. A gente procurava sempre se ocupar e isso fez com que perdêssemos o controle da própria respiração, dos próprios impulsos, do tempo interior.

 

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han há tempos já vem dizendo que a gente desaprendeu a sentir o aroma do tempo. Do mesmo modo, parece que desaprendemos também o sentido do colo, que você resgata no seu último livro.
É lindo esse pensamento do Han. O auge de um relacionamento é ficar em silêncio sem se sentir incomodado. Acabamos perdendo esse direito. No livro eu retorno com a imagem arquetípica do colo. O colo é o lugar onde nós depositamos as nossas fragilidades; onde admitimos as nossas imperfeições e dividimos essa responsabilidade de existir. A gente só pede colo a quem a gente realmente confia. Colo é a consagração da intimidade. É como uma cadeira de balanço. Você não senta numa cadeira de balanço sem nostalgia.

 

Quais foram as grandes lições que você aprendeu com esse período conturbado até o momento?
Acredito que foi essa travessia para dentro de si. A gente se vê sozinho para não continuar vivendo sozinho. Para recuperar os laços. É um paradoxo.

 

E como é fazer essa travessia para dentro de si e dividir o espaço com sua mulher e família, por exemplo?
Eu e minha mulher moramos em Belo Horizonte e não consegui voltar para o Rio Grande do Sul até hoje para ver a minha mãe, meu pai e meus filhos. Meus filhos estudam na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vicente faz Relações Internacionais e Mariana faz Letras. Incorporei cacoetes maternos como a blitz familiar (risos). Sempre achei muito engraçado a ronda familiar que minha mãe fazia. Quando ela liga para um filho, ela liga para todos. E eu passei a fazer isso. Na hora que ligo para um, ligo para todos. Aí vira uma espécie de chamada de vídeo caseira. Um tipo de chamada que a gente se dedica a ouvir, a ver. É como se tivéssemos retornado àquele tempo do telefone fixo em casa e que a gente não se mexia e ficava com aquela sensação de orelhas quentes.

 

É engraçado como tudo tende a fazer esses retornos, não? Por conta da internet, da tecnologia, e agora desta triste pandemia, estamos redescobrindo coisas e hábitos antigos que foram se tornando obsoletos.
É. Na hora que você está telefonando, você está telefonando. Na hora que você está cozinhando, você está cozinhando. É uma recuperação monotemática da tranquilidade. Uma coisa de cada vez, não tudo ao mesmo tempo agora.

 

É um aprendizado difícil para nós que estamos acostumados a sempre correr e a raramente parar. Como tem sido isso?
É difícil porque você jura que está deixando de ver ou acompanhar algo decisivo. Aí você quer ficar ligado em tudo e, na verdade, não se liga em nada. A nossa comunicação estava absolutamente fracionada. A gente tinha um delay entre ver e viver.

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“No colo, exclusivamente no colo, temos paz para aliviar esse aperto no peito de não prever o que nos espera", diz Carpinejar.

 

E você acredita que este delay está diminuindo?
Acho. Vivemos um excesso de uso das redes sociais, do celular. E sentimos mais falta de ficar offline. Tem horas que eu me desligo mesmo. Vou ler um livro ou algo que não fazia há muito tempo, porque também acabamos nos viciando muito ao streaming. Voltei a ouvir discos, por exemplo. Mas ouvir mesmo, no sentido de entender a proposta dele, a visão de mundo daquele CD, que tem aquelas 12 músicas encadeadas lá por algum motivo. O CD é um livro também. Ele conta uma história. Antes eu colocava nas listas e ouvia as faixas de maneira isolada. Agora, não. Quero ouvir o que esse artista quer me dizer. É uma devoção acústica que tínhamos extraviado. Em se tratando de livros e discos, a gente tinha perdido essa absorção de uma unidade.

 

E como você e a sua mulher estão lidando com essa presença constante um do outro? Como as solidões de vocês estão convivendo?
Primeiro, tem que preservar o espaço do outro. Deixar a porta do quarto fechada para o outro. Respeitar o período de terapia do outro... Não ficar sempre junto. Não acreditar que vocês precisam fazer tudo juntos. O mais difícil de uma relação é sobreviver às duas pessoas dentro dela. A pessoa pode ceder por capricho, por preguiça e até mesmo por amor. E esta mesma pessoa acaba acreditando que fazer tudo junto vai fortalecer o casal, quando na verdade isso enfraquece. Daí o casal não vai ter nem o que conversar, já que realizam tudo igual.

 

Você já tinha essa noção ou foi trabalhando ela no dia a dia?
Eu tinha uma noção que se acentuou com a convivência 24 horas. Uma coisa é estar em um casamento onde o casal só se encontrava à noite e nos finais de semana. Outra coisa é um casamento onde você está encerrado em um ambiente com a sua companheira ou seu companheiro. Onde você trabalha e descansa em casa e desenvolve todos os passatempos em casa. E eu tenho meus escapes. Torço pelo Inter. O Inter está em três competições. Então, vejo futebol no mínimo duas vezes por semana. Mais os jogos dos rivais para ver se a gente fica numa melhor colocação (risos). Isso significa que devo ver futebol quase todo dia e a Beatriz não gosta de futebol. Então, só de jogos de futebol, diariamente, já tenho aqueles 90 minutos de solidão.

 

Voltando ao Colo, por favor!, em que momento você sentiu que precisava externar tudo?
Já nos primeiros dias da quarentena, eu pensei: vou fazer esse livro, porque preciso desse livro, preciso ler esse livro. Esse momento em que estamos vivendo será um marco da civilização. A gente vai ter um antes e um depois disso. E foi um outro processo criativo. Um em que eu não podia me dar o direito de ter um bloqueio criativo, de ficar de mau humor, de ter enxaqueca. Não. Eu precisava escrever caprichando na hora. Eu sabia que não teria o tempo das gavetas, da reescrita. Tive que escrever com o máximo de concentração, pois sabia que o livro seria publicado assim que eu terminasse.

 

Nós estávamos falando justamente de recuperar tempo, de desacelerar, mas em compensação, algumas coisas ainda precisam de urgência, não?
É, mas a gente não tem muito como se despedir. Todo encontro tem uma despedida e é a mesma coisa com livro. Eu tinha que tirar proveito daquele momento como se fosse único e não como se eu pudesse revisitá-lo. A gente tem uma dificuldade com números quebrados e deveríamos valorizar mais eles. A gente comemora um aniversário por ano: é um crime! Por que a gente comemora uma vez por ano algo que é tão bom? Talvez devêssemos retornar ao tempo de uma criança pequena, em que os pais comemoram os meses; em que os pais comemoram os dias. A gente faz da vida a elasticidade de não vivê-la, como se sempre tivesse uma segunda ou terceira chance. E qual o nosso costume? Arrancar as páginas que não concordamos. Então, também é uma humildade conviver com essas páginas, que não foram as mais exclamativas, as mais desejadas e exuberantes. Mas elas servem para que você entenda o conjunto.

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Elas acabam dando uma noção do todo. Quando arrancamos e jogamos uma página de um rascunho no lixo, a gente perde uma parte da trajetória. O que é até confortável quando pensamos que podemos melhorar.
É. Quando você faz isso, na verdade você está tentando se livrar do erro. Mas o erro permanece em você. Você não quer que o seu erro seja visto. Não quer deixar a prova do erro. Acho que isso é um relâmpago da nuvem. Hoje, se você se arrepende de algo que escreveu publicamente nas redes sociais, aquilo vai continuar na nuvem. Um conselho que a internet nos legou foi: “capriche no rascunho” (risos). Meu livro foi isso. Eu caprichei no rascunho, como se estivesse escrevendo na nuvem.

 

Sua relação com a literatura mudou de alguma forma nesse tempo? Você, por exemplo, passou a ler mais?
Sem sombra de dúvidas. Eu já lia bem, mas hoje tenho lido mais. Só teve uma exceção no último mês, em função da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Eu e meu filho, cada um de um lugar, decidimos assistir ao máximo de filmes. Só nessa fase não li muito, já que tinha de escolher entre assistir e escrever, sem esquecer do meu Inter (risos).

 

E como tem sido a ordem das leituras? Você tem lido mais autores nacionais, autores estrangeiros?
É misto. Vou lendo tudo. Acho que autor puxa autor. Li muita coisa. Por exemplo, A Explicação das Árvores, do Daniel Faria, que é um poeta português; tem a Rachel Cusk, com Esboço e Trânsito, e por aí vai.

 

Qual a importância da arte e da literatura nestes tempos conturbados? Você conseguiria passar por esse período sem poder fruir da arte?
Não. A arte acabou sendo nosso único trânsito possível e acho que ela acabou acendendo essa necessidade. A arte faz uma coleta seletiva das nossas emoções. Separa o que é plástico, o que é metal e o que é papel dentro de nós. A arte nos dá a noção da durabilidade de nossos sentimentos. A partir dela, nós percebemos o quanto sofremos à toa, o quanto estamos sofrendo em vão. Ou o quanto que podemos ressignificar uma dor, o quanto a gente deixou passar uma alegria. Então, é como uma coleta seletiva mesmo, em que a gente separa nosso material afetivo.

 

Você é um autor de enorme popularidade e tem grande facilidade em tratar de assuntos do cotidiano que fazem parte da vida de muita gente. Ainda existe quem diga que a literatura deve ser mais “séria”, mais “sisuda”. Você sentiu que há algum preconceito por parte da cena literária e até de amigos escritores quando você se tornou um autor pop, por assim dizer?
Eu fico pensando. Se Clarice Lispector estivesse viva, ela teria redes sociais. Ela teria Instagram. Todas as fases do Instagram seriam como se fosse um diário. Não significa que seriam a sua obra, a sua ficção. Tem gente que confunde muito o avatar com o autor. Há uma confusão. Até porque a gente vive em um período absolutamente diferente do que já foi canônico. Você vai colocar os tuítes, as postagens como se fossem obra reunida? Não dá! Você escreve simultaneamente ao próprio tempo e a todos os tempos. O que eu guardo de convicção é: a minha poesia é para todos os tempos, é quando converso comigo mesmo sem concessões. Desde As Solas do Sol até Todas as Mulheres não há concessões, há um propósito literário. Já não dá para colocar na mesma frequência os meus aforismos, minhas frases. Então, tem um mergulho de obra que é um mergulho que talvez nem eu próprio alcance e que acho benéfico. E fica aquela dúvida: vai durar ou não vai durar? Acho isso bom. Nenhum autor escreve com a certeza de que será lido. Quer maior valentia do que essa? Não há. Você escreve para talvez nunca ser lido.

 

E quanto ao preconceito de outros autores e editores pelo fato de você se comunicar mais abertamente com o público e ser um autor muito popular? Você sente algum?
Se eu sinto algum preconceito?

 

Isso.
Não. Acho que eles são educados e não me falam (risos). Valorizo essa gentileza. O meu papel público é o de confundir, de estar onde ninguém imagina que eu possa estar. Não quero ser previsível. Também não quero me imortalizar pela vaidade só fazendo aquilo que é alto, nobre e lúcido, como diria Fernando Pessoa. Eu vou lá e respondo os leitores sobre encrencas emocionais. Eu vou lá responder, porque ninguém espera que eu vá fazer isso. E, assim, confio sempre na visão de quem leu a obra. Essa coisa de acompanhar o Instagram, Facebook ou ler uma entrevista e julgar e achar que conhece o que há por trás daquele pensamento não dá.

 

E isso é o que mais acaba acontecendo.
Exato. É criticar uma superficialidade sendo superficial. E algo que tenho na minha vida é: se vou falar de um autor, no mínimo preciso ter lido duas obras dele. Nunca uma só. Não tentar construir um sistema de avaliação a partir de uma obra só. É preciso sempre ter o que esse autor quer passar a partir de uma linha de tempo. O que acontece é muita crítica isolada de livro; não crítica de obra. Até porque seria preciso perder tempo, ir atrás, saber das referências. Mas é o critério de uma justiça pessoal.

 

Vamos brincar de futurologia, já que está na moda. No fim de toda essa situação pela qual estamos passando, qual será o grande aprendizado?
Espero que pelo menos recolher o cocô do cachorro. Só isso e já vou ficar bem feliz.

 

Jocê Rodrigues é escritor, jornalista e host do podcast Indiciário. Vive em São Paulo (SP).