Ensaio | Slavoj Zizek 28/09/2020 - 17:12
Por uma filosofia viral?
O filósofo esloveno Slavoj Zizek sugere que direita e esquerda se recusam a aceitar a ameaça real do novo coronavírus quando amenizam o fenômeno por meio de raciocínios tendenciosos
Trad.: Artur Renzo
Muitos comentaristas liberais e de esquerda notaram como a epidemia do coronavírus serve de pretexto para justificar medidas de controle e regulação populacionais que até então eram impensáveis em qualquer sociedade democrática ocidental — afinal, o lockdown completo realizado na Itália não é um sonho de consumo totalitário? Não é à toa que (pelo menos ao que parece agora) foi a China, que já praticava amplamente formas de controle social digitalizado, quem mostrou estar mais bem equipada para lidar com epidemias catastróficas. Isso significa dizer que, ao menos em certos quesitos, a China representaria nosso futuro? Estaríamos nos aproximando de um estado de exceção global, de forma que as análises de Giorgio Agamben passam a adquirir uma atualidade renovada?
Não é por acaso que o próprio Agamben tenha chegado a essa conclusão: ele reagiu à epidemia do coronavírus de uma forma radicalmente diferente da maior parte dos comentaristas[1]. Criticando as “medidas de emergência frenéticas, irracionais e absolutamente injustificadas adotadas diante de uma suposta epidemia de coronavírus”, que não passaria de outra forma de gripe, ele se perguntou: “por que a mídia e as autoridades se esforçam tanto para criar um clima de pânico, acarretando assim um verdadeiro estado de exceção, com severas limitações sobre o movimento e a suspensão da vida cotidiana e sobre atividades de trabalho em regiões inteiras?”.
Agamben avalia que o principal motivo por trás dessa “resposta desproporcional” se encontra na “tendência crescente de utilizar o estado de exceção como um paradigma normal de governo”. As medidas impostas permitem que o governo restrinja seriamente nossas liberdades por decreto executivo. Nas palavras dele: “É patente que essas restrições são desproporcionais à ameaça representada por aquilo que, de acordo com o NRC, é uma gripe normal, não muito diferente daquelas que nos afetam todo ano. [...] Podemos dizer que uma epidemia oferece o pretexto ideal para se ampliar tais medidas para além de qualquer limite”. O segundo motivo é “o estado de medo, que nos últimos anos se imiscuiu nas consciências individuais e que se traduz em uma verdadeira necessidade de estados de pânico coletivo, para os quais a epidemia, novamente, oferece o pretexto ideal”.
Agamben está descrevendo um importante aspecto do funcionamento do controle estatal na epidemia em curso, mas há questões que permanecem em aberto. Por que, afinal, o poder estatal teria interesse em promover um pânico desse nível, visto que ele produz desconfiança diante do próprio Estado (“eles não sabem o que fazer”, “não estão fazendo o suficiente”, etc.)? E pior: essa conjuntura estorva a reprodução de capital. Será mesmo de interesse do capital e do poder estatal provocar uma crise econômica global a fim de renovar seu domínio? E o que dizer dos sinais claros de que o próprio poder estatal, e não apenas as pessoas comuns, está em pânico, ciente de não ser capaz de controlar a situação — será mesmo que esses sinais não passariam de estratagemas?
A reação de Agamben é apenas a forma extrema de uma posição esquerdista amplamente disseminada de ler o “pânico exagerado” causado pelo alastramento do vírus como uma mistura de, por um lado, exercício de poder de controle social, e por outro, elementos explícitos de racismo (“culpe a natureza, ou os chineses”). No entanto, essa interpretação social não faz com que a realidade da ameaça desapareça. Será que essa realidade nos força a restringir nossas liberdades de fato? Quarentenas e medidas semelhantes evidentemente limitam nossa liberdade, e como vimos serão necessários novos Julian Assanges para trazer à tona os eventuais abusos nesse sentido. Mas a ameaça da infecção viral também deu um tremendo embalo a novas formas de solidariedade local e global, além de explicitar a necessidade de controle sobre o próprio poder. As pessoas têm razão em cobrar responsabilidade do poder estatal: “Vocês detêm o poder, agora nos mostrem o que podem fazer!”. O desafio diante do qual a Europa se encontra agora é provar que as ações da China podem ser realizadas de maneira mais transparente e democrática:
A China introduziu medidas que a Europa Ocidental e os Estados Unidos dificilmente tolerariam — e isso talvez para o próprio prejuízo deles. Dito de maneira direta: é um erro interpretar reflexivamente todas as formas de detecção e modelagem como “vigilância” e todas as formas de governança ativa como “controle social”. Precisamos de um vocabulário de intervenção diferente e mais matizado.[2]
Tudo depende desse “vocabulário mais matizado”: as medidas exigidas pela epidemia não devem ser automaticamente reduzidas ao paradigma usual de vigilância e controle propagado por pensadores como Michel Foucault. O que eu temo hoje, mais que as medidas implementadas pela China (e pela Itália, etc. etc.), é que essas medidas sejam aplicadas de uma forma ineficaz e não consigam conter a epidemia — e, além disso, que as autoridades manipulem e ocultem os verdadeiros dados.
Tanto a alt-right quanto a falsa esquerda se recusam a aceitar a realidade plena da epidemia quando amenizam o fenômeno em um exercício de redução social-construtivista — isto é, denunciando-a em nome de seu significado social. Trump e seus partidários repetidamente insistem que a epidemia é um conspiração do Partido Democrata e da China para fazer com que ele perca a eleição. Ao mesmo tempo, alguns na esquerda denunciam as medidas propostas pelos aparatos de Estado e de saúde como manchadas por xenofobia, insistindo assim em apertos de mãos, etc. — tal postura desconsidera o seguinte paradoxo: abster-se de apertos de mãos e isolar-se quando necessário é a forma atual de solidariedade.
Quem, hoje, poderá se dar ao luxo de trocar apertos de mãos e abraços? Os privilegiados. O Decamerão de Boccaccio é composto por histórias contadas por um grupo de sete jovens mulheres e três rapazes abrigados em uma vila em isolamento, nas imediações de Florença, a fim de escapar da praga que recaiu sobre a cidade. A elite financeira vai se recolher em zonas reservadas e se deleitar contando histórias à moda do Decamerão, ao passo que nós, pessoas comuns, teremos de conviver com os vírus. (Os ultrarricos já estão zarpando em seu jatinhos particulares para pequenas ilhas exclusivas no Caribe.)
O que é especialmente irritante para mim é como nossa mídia, quando anuncia algum fechamento ou cancelamento, tende a acrescentar uma limitação temporal fixa, a fórmula “escolas ficarão fechadas até o dia 4 de abril”. A grande expectativa é que, passado o pico, que deve chegar logo, as coisas voltarão ao normal — nesse sentido, já me informaram que um simpósio universitário do qual participarei foi apenas adiado para setembro... A questão é que, mesmo quando a vida eventualmente voltar ao normal, não será mais o mesmo normal que conhecíamos antes do surto: coisas com as quais nos acostumamos como parte da vida cotidiana não serão mais dadas como certas, teremos de aprender a viver uma vida muito mais frágil, repleta de ameaças constantes. Será preciso mudar completamente nossa postura diante da vida, diante de nossa existência como seres humanos convivendo com outras formas de vida. Em outras palavras, se entendermos “filosofia” como o nome para nossa orientação básica na vida, teremos de passar por uma verdadeira revolução filosófica.
Para tornar esse último ponto mais claro, permita-me citar desavergonhadamente uma definição popular de dicionário: os vírus são seres “quaisquer de uma série de agentes infecciosos, geralmente ultramicroscópicos, compostos de ácido nucleico, seja RNA ou DNA, no interior de um invólucro de proteína; eles infectam animais, plantas e bactérias e se reproduzem apenas no interior de células vivas; os vírus são considerados unidades químicas não vivas ou às vezes organismos vivos”. Essa oscilação entre vida e morte é crucial: os vírus não estão vivos nem mortos no sentido usual desses termos, eles são uma espécie de fenômeno morto vivo — um vírus é considerado vivo por conta de seu impulso de se replicar, mas trata-se de uma espécie de vida de grau-zero, uma caricatura biológica não tanto da pulsão de morte quanto da vida em seu nível mais estúpido de repetição e multiplicação.
No entanto, vírus não são a forma elementar de vida a partir da qual seres mais complexos se desenvolveram; eles são puramente parasitários, replicam a si mesmos infectando cada vez mais mecanismos desenvolvidos (quando um vírus infecta a nós humanos, simplesmente operamos como sua máquina copiadora). É nessa coincidência entre opostos — elementar e parasitário — que reside o mistério dos vírus: eles são um exemplo daquilo que Schelling denominou “der nie aufhebbare Rest”: um resíduo da forma de vida mais baixa que se manifesta como resultado do mal funcionamento de mecanismos de multiplicação mais elevados e continua a assombrá-los (infectá-los), um resíduo que nunca poderá ser reintegrado como momento subordinado de uma forma de vida mais elevada.
Aqui deparamos com aquilo que Hegel denomina o juízo especulativo, a afirmação da identidade entre o mais elevado e o mais baixo. O exemplo mais conhecido de Hegel é a proposição, feita no contexto de sua análise da frenologia na Fenomenologia do Espírito, segundo a qual “o Espírito é um osso”. Nosso exemplo aqui deveria ser: “o Espírito é um vírus”. Afinal, não poderíamos dizer que o espírito humano também é uma espécie de vírus que parasita o animal humano e o explora para a autorreprodução, e às vezes ameaça destruí-lo? Na medida em que o meio do espírito é a linguagem, não devemos nos esquecer que, em seu patamar mais elementar, a linguagem também é algo mecânico, uma questão de regras a serem aprendidas e seguidas.
Richard Dawkins alegou que os memes são “vírus da mente”, entidades parasitárias que “colonizam” a potência humana, valendo-se dela como forma de se multiplicar — ideia cujo promotor original foi ninguém menos que Liev Tolstói. Geralmente se considera que Tolstói é um autor bem menos interessante que Dostoiévski; um realista irremediavelmente ultrapassado, para quem basicamente não há lugar na modernidade, em contraste com a angústia existencial do autor de Crime e Castigo. Talvez, contudo, seja chegada a hora de reabilitar plenamente Tolstói, sua teoria singular da arte e do humano em geral, na qual encontramos ecos dessa noção de Dawkins sobre os memes.
“Uma pessoa é um hominídeo dotado de um cérebro infectado, hospedeiro de milhões de simbiontes culturais, cujos principais viabilizadores são os sistemas simbiontes conhecidos como linguagens.”[3] Essa passagem de Dennet não é puro Tolstói? A categoria básica da antropologia de Tolstói é infecção: um sujeito humano é um meio vazio passivo infectado por elementos culturais carregados de afetos que, tal como bacilos contagiosos, se disseminam de indivíduo para indivíduo. E Tolstói vai às últimas consequências: ele não opõe a esse alastramento de infecções afetivas uma pretensa autonomia espiritual verdadeira, nem propõe uma visão heroica de educar a si mesmo para constituir, ao livrar-se dos bacilos infecciosos, um sujeito ético pleno. A única luta é aquela entre boas e más infecções: o próprio cristianismo é visto como uma infecção, embora — para Tolstói — ela seja benigna.
Talvez essa seja a coisa mais perturbadora a aprender com a epidemia viral em curso: quando a natureza nos ataca com vírus, ela está, de certa forma, nos devolvendo nossa própria mensagem. Essa mensagem é: “O que vocês fizeram comigo, eu agora farei com vocês”.
Slavoj Zizek nasceu na antiga Iugoslávia, em 1949. Conhecido por misturar cultura erudita com referências do mundo pop, sempre com um jeito enfático de se expressar, o filósofo esloveno é um dos grandes pensadores da contemporaneidade. O livro Pandemia: Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo, de onde este ensaio foi extraído, foi lançado no Brasil pela Boitempo e o autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à organização internacional Médicos Sem Fronteiras.
———
[1] Giorgio Agamben, L’invenzione di un’epidemia [A Invenção de Uma Epidemia], Quodlibet, 26 fev. 2020. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia>; acesso em: 2 abr. 2020.
[2] Benjamin Bratton, em comunicação pessoal.
[3] Daniel Dennett, Freedom Evolves (Nova York, Viking Books, 3 2003), p. 173.