ESPECIAL | As filhas de Laura Santos 22/11/2024 - 11:17

O jornal Cândido publica um artigo especial do pesquisador e escritor Guilherme Zrenner, curador do perfil Mulheres Arquivadas, projeto de pesquisa pública que promove debates e destaca artistas mulheres no Paraná. 

A pedido da redação, Zrenner selecionou escritoras, negras e paranaenses, tendo como fio condutor a poeta simbolista curitibana Laura Santos (1919–1981). De acordo com  o pesquisador, “Laura Santos é um dos maiores símbolos da resistência preta na história de Curitiba". Escrevia sonetos desde pequena, mas somente em 1937 que estreou com o texto intitulado “História da evolução da aviação’’ (premiado em concurso literário de Curitiba). Entre suas publicações estão: Sangue tropical, Poemas da noite e Desejo, todas de 1953.

Pérola Negra, como era conhecida, talvez tenha sido uma das poucas mulheres negras que escreveu na Curitiba provinciana da década de 1950, explica Zrenner. “Sua escrita é con­duzida pelo movimento simbolista, sua expressão poética evoca as vozes do corpo enquanto receptor e emissor dos processos sensoriais, processos esses, discutidos por meio de temas subjetivos, como o amor, o sexo e o desejo”, pontua.


Semelhança

Laura Santos

O rio que nasce fino e manso
reflete uma paisagem delicada
de uma vida...

Mais adiante o rio se dilata,
e enraivecido arrebata
as flores das suas margens.

E assim como este rio que murmureja,
que ruge, estronda, e que coleia
é a alma da mulher pecado,
da mulher sereia…

Poemas (SEEC, 1990)

 

Laura Santos atuou como educadora e deu aulas de Português e Matemática. É uma das fundadoras da Academia José de Alencar, em Curitiba. e publicou nos jornais Gazeta do Povo e no Diário da Tarde até a década de 1980. Neste mesmo período, a Secretaria de Cultura do Paraná reuniu a obra da escritora, porém nun­ca mais foi feita uma reimpressão.

Para Zrenner, Laura Santos "continua viva porque sua vida distribuiu sementes, apesar do racismo perpetuado até os dias de hoje". No mês que marca a luta dos povos negros no Brasil, o Cândido faz um registro das autoras contemporâneas que levam adiante o le­gado de Laura Santos. 

O autor reuniu 11 escritoras: Adriana Alexandre, Amanda Crispim, Evelin Moreira, Gizele Carneiro, Nick Rodrigues, Poeta Vênus, Preta Macário, Rosane Arminda, Shirley Pinheiro, Sueli Crespa e Yohana Ro­sa. “As filhas de Laura Santos” são as mulheres que trazem a marca da liberdade presente na obra da escri­tora.


Vozes-Mulheres

Conceição Evaristo

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes,
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.

Poemas da recordação e outros movimentos (Malê, 2017)

 

 

As filhas de Laura Santos 

Guilherme Zrenner

 

As novas vozes da autoria de mulheres negras no Paraná

 

Adriana Alexandre é professora, escritora e liderança quilombola da Comunidade Quilombola da Restinga, na Lapa. “Escrevia para a família, aos poucos fui mandando uns textos aqui e ali e resgatando minhas inspirações e motivando muitas outras. Hoje vejo meus textos voando alto e ocupando espaços’’. Participou de diversas antologias, entre elas: Poesia brasileira (Ed. Vivara), Sangue sobre tela (Ed. Donizela, org. Ná Silva, 2023) e Pretas com poesia (Ed. Donizela, 2024).

 

Adriane Alexandre
Foto: Acervo pessoal / Adriane Alexandre| Edição Cândido

 

 

Amanda Crispim
Foto: Tami Taketani | Amanda Crispim

 

Autora do livro A poesia de Carolina Maria de Jesus (Ed. Malê, 2023), Amanda Crispim integra o conselho editorial Carolina Maria de Jesus, da Cia das Letras. Fas­cinada pela “escrevivência” de mulheres negras, linhagem da qual faz parte, diz que começou a escrever por necessidade, “assim como a maioria das mulheres negras”. Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e professora adjunta do curso de Letras-Português, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), começou a escrever para colocar para fora a potência e angústia de ser uma mulher negra na sociedade brasileira, além de poder divulgar essa produção literária. “Entendi o quão importante era para mim, uma mulher negra e periférica, poder me assenhorar da pena e falar. Como disseram Gloria Anzaldúa e Conceição Evaristo, a escrita para mulheres como eu é a única alternativa para me manter viva, porque ela com­pensa o que o mundo real não me dá. Escrever é como sangrar. Por isso, escrevo!’’

 

“Laura Santos foi uma das pioneiras da poesia pa­ranaense, apagada da história pelo racismo dos “estudiosos de nossa literatura”, declara Evelin Moreira, nordestina, autista, política, poeta e escritora. Integrante do coletivo "Pretas com Poesia", é coautora da primeira antologia homônima, e autora do recém-lançado livro Cemitério de coisas vivas (Donizela, 2024). 
Teve contato com a obra de Laura Santos a partir da monografia de uma de suas descendentes, e encontrou a inspiração lírica que precisava para abusar da liberdade poética: escrever sem julgamentos sobre corpo e erotismo, segundo ela. “Engana-se quem pen­sa que quando uma mulher negra escreve é para falar apenas sobre violências raciais. Somos múltiplas na ar­te e a obra de Laura Santos é uma prova disso’’, afirma Evelin.
 

Evelin Moreira
Foto: André Daniel | Evelin Moreira

 

 

Gizele Carneiro
Foto: Arquivo pessoal / Gizele Carneiro | Edição Cândido

 

Gizele Carneiro é professora e escritora. Integra o coletivo Membrana Literária, desde 2022. ”Costumo dizer que a minha escrita literária foi a partir da minha escrita acadêmica, na produção da dissertação de mes­trado. Foi ali que entendi o meu tom, que comecei a par­ti­cipar de oficinas de escrita e vi como um fazer possí­vel’’, conta a autora sobre seu início na literatura. Gize­le diz que este não é um lugar fácil de ocupar por todo o histórico a respeito das literaturas escritas por mulheres, porém essa confirmação vinda de outras, foi e continua sendo muito importante. “Porque a permanência aqui, no entendimento de que também sou escritora, precisa ser afirmado o tempo todo’’, ressalta.
 

 

A poeta, cantora e compositora Jô Macário integra a Roda de Samba Maria Navalha e é idealizadora do coletivo Pretas com Poesia. Organizou a antologia de mesmo nome e publicou seu livro de estreia, Prima mulier, em 2024. “Laura Santos é para mim a referência de escritora negra paranaense da poesia, sua escrita sobre a sexualidade e o desejo feminino é o ápice da força e da feminilidade escondida no tempo em que ela viveu e é até agora ain­da. A mulher preta é exemplo de militância e a escrita esperada é que seja apenas sobre a cultura afro e a luta contra o racismo. Mas Laura trou­xe outros sentimentos que a mulher preta também têm, a que percebe e vive suas paixões e desejos”, afirma Macário.
 

Jô Macário
Foto: Arquivo pessoal / Jô Macario | Edição Cândido

 

 

 

A multiartista, poeta, atriz e escritora Nick Rodrigues organiza o Slam Zumbi e Dandara, criado em 2019, em Curitiba. Utiliza sua arte como forma de expressão, denúncia e empoderamento para a comunidade negra e periférica, pois considera a cidade um lugar racialmente desigual quando se trata da valorização de artistas negros. “Ainda mais na poesia, que é uma arte mais elitista, o Slam Zumbi e Dandara veio como um movimento de poesia não só marginal, mas também como poesia negra, trazendo voz e protagonismo para quem antes não tinha espaço. É o primeiro slam de recorte racial do país, e este ano comemora cinco anos de existência e resistência”.
 

Nick Rodrigues
Foto: Sofia Ribeiro | Nick Rodrigues | Edição Cândido

 

 

Poeta Vênus
Foto: Danielle Freitas | Poeta Vênus | Edição Cândido

 

Rayra Caroline, conhecida como Poeta Vênus, é cientista social, poeta e slammer. Lançou seu primeiro livro, o e-book Eu já fui você, onde reflete sobre questões de gênero na sociedade, e também participou da antologia Pretas com poesia. Ela considera a representatividade essencial para construir uma trajetória. “A representatividade é muito importante, porque quando temos algum lugar para olhar durante o caminhar, o trajeto fica mais leve e tem um propósito. Laura Santos foi e sempre será referência e inspiração para continuarmos caminhando e construindo’’, diz a poeta.

 

 

Uma das vencedoras do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres em 2023, lançado pelo Ministério da Cultura (MinC) com seu livro de estreia, Ubuntu Mulheres (Ed. Humaitá, 2023), Rosane Arminda, frisa: “Pensar em ancestralidade é pensar na sabedoria das Iabás, maternidade, empoderamento, beleza, inteligência, todas em seu tempo, ao mesmo tempo. Não sou eu e sim elas que regem’’, reflete a autora. Rosane também é professora e investiga a escrita literária de cordel, com enfoque em mulheres pretas, além de ser especialista em educação quilombola, desenvolvendo contação de histórias africanas. "As escritas de Laura Santos, Conceição Evaristo, Paulina Chizi­ane, Jarid Arraes, Isabel Nascimento, Carolina Maria de Jesus, entre muitas outras, me fizeram entender o tem­po, e como mulher preta, é o que me inspira. Não é só ser mulher, é ser mulher preta. Não é só ser mãe, é ser mãe solo. E perceber que não estou só’’, ressalta.
 

Rosana Arminda
Foto: Arquivo pessoal / Rosane Arminda | Edição Cândido

 

 

Sueli Crespa
Foto: Sueli Crespa | Edição Cândido

 

Poeta, produtora e atriz, Sueli Crespa tem formação em Mediação Cultural, Artes e Letras pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). No teatro, atuou em: “Em busca de Laura Santos” (2023), onde foi responsável também pelo texto. Participou de antologias e lançou, em novembro deste ano, o livro de poemas A mulher de mil nomes (Ed. Donizela, 2024). “A ancestralidade me foi passada na oralidade, são as minhas mais velhas, mães, avós, Iyas, elas sempre me influenciaram com as falas e memórias", descreve. A primeira que leu foi Carolina Maria de Jesus; Conceição Evaristo conheceu há poucos anos, assim como Audre Lorde, Gloria Anzaldúa, Solano Trindade, Paulina Chiziane, Elisa Lucinda. “A literatura não é um espaço onde estas narrativas sempre estiveram, estas histórias sem­pre foram invisibilizadas", explica. Conheceu a obra de Laura Santos pela sua sobri­nha Will Amaral, em 2011, ao ser convidada para um sarau sobre a escritora. “A escrita de Laura Santos é única e singular devido à é­poca. Ser uma mulher negra vivendo em Curitiba e falar tão abertamente sobre as memórias do corpo, pois nossos corpos sempre foram falados escritos e desenhados por outros, em sua maioria homens, que sempre nos 'coisificavam' e nos objetificam. A narrativa de Laura é sobre o corpo dela, dito e escrito por ela’’.

 

 

Shirley Pinheiro
Foto: Arquivo pessoal / Shirley Pinheiro | Edição Cândido

 

“Fiz um poema falando sobre uma ancestral minha, do lado da minha avó paterna, que se chamava Simoa, nascida na Lei do Ventre Livre, e a partir dela começa nossa história”, conta Shirley Pinheiro, autora do livro Mercúria (Marianas Edições, 2018). A escritora também integra os coletivos: Marianas, Enluara­das, Vozes Escarlate, Oceânicas e Pretas com Po­esia, além de ter participado de diversas antologias. Formada em Estudos Sociais, fala sobre como lida com o preconceito. “Se eu já senti preconceito? Com certeza, mas não me abalei. Tenho o direito de estar aqui como qualquer outro ser humano. Aprendi a ocupar espaços! O mundo sindical me ensinou. A luta para criar meus filhos me deu forças e eu segui adiante. Sou também umbandista.’’

 

 

 

Ifáọlàdémọlà,
Foto: Arquivo pessoal / Yohanna Rosa


Yohana Rosa ou Ifáọlàdémọlà, é pesquisadora, educadora e poeta. Formada em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Bahia. Trabalha como educadora no Núcleo Educativo do Museu Paranaense (MUPA) e faz parte do Grupo de Capoeira Angola Zimba Curitiba, Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana (FPRMA) e do coletivo Pretas com Poesia. “Res­soando a voz de Suzanne Césaire (1915 – 1966)*, o processo de escrita chegou como exercício de liberdade, uma ação para o reconhecimento das emoções. Às vezes esquecemos, quase sempre é negado à comunidade negra, às mulheres negras e às pessoas marcadas como minorias sociais, o direito a reconhecer e co­locar para fora as emoções”. Iniciou na escrita obser­vando outras mulheres, “irmãs, malungas pretas, escre­verem, recitarem e cantarem, e pensei por que eu não?". Ganhou um caderno pequenino da su­a mãe, e começou a praticar. “No início vieram muitos cocos de roda, depois, como água que não pede licença, vieram as escritas do coração, da cabeça, do passado, do presente e do futuro. Quando notei, se tornou uma prática do cotidiano colocar minha dor, lamúria e lágrimas para fora. Ouso dizer que, tanta dor vem de outras pessoas e temporalidades que habitam em mim’’, conta sobre seu processo. “Não foi unicamente uma liberdade individual, a poesia é uma liberdade coletiva”, afirma.
 

Roda de leitura do Projeto Mulheres Arquivadas lendo Laura Santos
Roda de leitura do Projeto Mulheres Arquivadas lendo Laura Santos

 

 

Lauras

Rosane Arminda

 

Não é só uma opinião. É um fato!
O que banaliza e objetiva
como coisa de alguém
São marcas na história
de uma alma sem ninguém
E na imagem do corpo ideal,
um anonimato.

Pois bem! Não falo sozinha,
antes falarei da primeira
Curitibana de aspecto frágil,
observadora, ainda escrevia
Cheia de Desejos em uma sociedade racista,
formou uma academia
E o povo perguntando como é que pode?
Nem é militante só pode ser besteira

Sua aparência ia de humanas
a área mais exata
Foi lá na década de 50
À sombra de tanto preconceito
Fazia de seus textos uma doce luta
do amor sem defeito
Em um tempo que elogia era ser chamada
de mulata!

Jornalista da grande Gazeta,
mulher independente, idealista
Enfermeira que não realizou o sonho
de ir para 2º Guerra Mundial
Mas foi escrevendo:
Desejos, Poemas da Noite, Sangue Tropical
Textos para liberdade do corpo
e um padronismo machista
Corpo de uma mulher preta
presa no social imaginário
Sujeitas aos comandos de Senhores,
para ser a mulher ideal
Solidão da mulher preta
em um mundo tão desigual
Desde cedo colocada nesta posição,
sem sonho de dizer o contrário

Pois veja tantos anos,
é a cena da nossa realidade
O cara diz que não está pronto,
que não quer envolvimento com ninguém
Que o problema é com ele e
derrepente aparece com alguém
Aí você entende que o ninguém era você.
É esta a verdade!

O período colonial nos persegue no campo,
cidade qualquer área
Nos romances as gatas borralheiras
invadem um sonho caucasiano
Ao cairmos na realidade, escreve sonetos
sozinha no simbolismo parnasiano
E ainda neste tabu de tentar compreender
segue sempre solitária

Calma! Mas você é forte,
já passou por tantas, você aguenta
A liberdade que impede de falar
com filho no colo
Convenções sociais.
Tá aí, mais uma mãe solo
Liberdade de escolha, de direitos?
No solo o chicote esquenta
Princípios patriarcais,
qualquer tabu pode sim ser quebrado
Valorizar a importância da mulher, sem
receio de julgamento
Eu sei não é fácil! Mas se faz importante
nosso empoderamento
Dançar, escrever, tocar o corpo livre
e orgulhar do que foi herdado

Sim Laura, nós queremos a limpidez
ardente, do ser amada
Os melhores desejos do Poema da Noite,
corpo no meio da poesia
A inquietação do duelo do amor e pecado,
sem se sentir fria
Se eu tivesse tempo diria:
Laura Santos, você jamais será ignorada!

Ubuntu Mulheres (Humaita, 2024)

 

 

 

 

Foto: Arquivo pessoal / Guilherme Zrenner | Edição Cândido
Foto: Arquivo pessoal / Guilherme Zrenner | Edição Cândido

 

Guilherme Zrenner nasceu em Foz do Iguaçu e vive em Curitiba (Paraná). Trabalha com escrita, artes visuais e pesquisa sobre gênero e identidades. Desenvolve a curadoria do perfil Mulheres Arquivadas, projeto de pesquisa pública que promove debates sobre artistas e escritoras no Paraná (@mulheresarquivadas). Oferece oficinas de desenho, escrita e realiza rodas de leituras mensais para mulheres e pessoas trans em espaços diversos da cidade.