ESPECIAL | Vozes em movimento 30/07/2021 - 13:31

Antologias paranaenses dos anos 70 e 80 retratam a efervescência de uma geração marcada pela pluralidade

Hiago Rizzi

 

"Que voz tem voz pra falar por 27 poetas, versos diversos, conversos num só universo, pelo acidente de uma coleta / seleta? Por tudo isso (e pelo resto), VIVA A DIFERENÇA!”, escreve Paulo Leminski, com a própria caligrafia, na introdução da antologia Sangra:Cio. O livro, que completou 40 anos de lançamento em 2020, não se firma em torno de um tema. Todos os autores têm idades e são de grupos diferentes. Os nomes chamam a atenção: de Leminski, ligado à poesia marginal, a Luiz Edson Fachin, jurista e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sangra:Cio foi o terceiro livro de um movimento que começou dois anos antes, em 1978, nos corredores da PUCPR: o Sala 17. Em junho, um recital reuniu os autores Thadeu Wojciechowski, Edgar Yamagami, Paulo Venturelli, João Gilberto Tatára, Sonia Sandrini, Roberto Bittencourt, Artifex von Blauen, Zeca Corrêa Leite e Hamilton Faria, com o apoio do professor Leopoldo Scherner. Juntaram-se ao grupo Marcos e Roberto Prado, conhecidos da cena musical, a catarinense Jucira Vieira de Castro, Ubirajara Araujo Moreira (o “Bira”), Ney Pulido, Reinoldo Atem e Luiz Edson Fachin.

Ainda que tenha a universidade em sua origem, “o cerne do movimento Sala 17 eram os malucos, a juventude”, assinala Roberto Prado, com 19 anos à época. Além dos alunos da PUC, os irmãos Prado vinham do Colégio Estadual do Paraná, enquanto Venturelli e Corrêa Leite viviam na Casa do Estudante Universitário (CEU). O livro, também intitulado Sala 17, ainda tem um núcleo ligado à poesia engajada contra a ditadura militar, representado por nomes como Fachin, Atem e Faria. A foto de capa e as imagens que marcam as divisões dos autores, produzidas por Ivan Bueno, carregam o tom de contestação. A montagem é assinada por Key Imaguire, idealizador da Gibiteca de Curitiba, fundada em 1982. A primeira tiragem, paga com rifas, foi de 3 mil exemplares. Depois seriam impressas mais 2 mil edições.

A campanha para a divulgação do livro foi extensa, com mutirões na Rua XV de Novembro e em escolas e universidades. O nome “Sala 17” foi escrito, com giz, em diversos pontos da cidade — a intenção era aumentar a curiosidade, mas sem causar danos ao patrimônio. Sala 17 foi lançado em 20 de outubro de 1978, na Casa Romário de Andrade. O evento lotou o Largo da Ordem. “Foi colossal, com milhares de pessoas”, lembra o articulador do grupo, Antonio Thadeu Wojciechowski, o “Polaco da Barreirinha” — autor, músico e agitador cultural atuante até hoje, aos 70 anos.

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Capa e contracapa do livro Sala 17 (1978)

 

“Até o Leminski apareceu e aproveitou para vender seus livros”, revela Roberto Prado. A proporção do evento foi tanta que amigos tiveram de ajudar atendendo interessados, servindo e comprando bebidas.

O vigor do movimento repercutiu. Em dezembro saiu mais um livro, Reis Magros. Surfou a onda do antecessor, mas teve um alcance menor. Novos nomes se integraram à seleta: Alberto Centurião, José Roberto Scandelari e Wanderley Spirlandelli. “A partir do Sala 17 começamos a aparecer muito em revistas, anexos e cadernos de jornais, tanto em Curitiba quanto no interior”, conta Prado. “E o Sangra:Cio vem disso, é uma farra em forma de livro”, completa.

 

Da PUC ao Largo da Ordem

Sangra:Cio foi lançado no dia 17 de outubro de 1980, no Sesc Portão, com um recital. Mais que isso: uma reunião de multiartistas — “Era o pessoal do rock, da academia, da poesia engajada e também o da mais convencional. Tinha um aspecto agregador, de tolerância”, aponta Prado. O projeto gráfico e a diagramação são de Luiz Antônio Solda: “Não existia um projeto editorial, cada um chegava e apresentava sua ideia. Eu fiz o paste-up [organização dos textos e imagens nas páginas], mas todos ajudavam”, afirma Solda. Os autores definem aqueles anos como “efervescentes”, com trabalhos marcados pela pluralidade de linguagens.

Os poemas foram encenados, com música e projeções, sob a direção de Aníbal Marques, que também assina uma seção de fotografias no livro. Além de Leminski, Thadeu, Fachin, Aníbal, Solda, Marcos e Roberto Prado, participaram da publicação Alberto Centurião, Antonio Fernando Costa, Bira, Carlos Dala Stella, Clauber Carvalho Cruz, Dilson Naressi, Edival Perrini, João Gilberto Tatára, Mancha, Sérgio Andrade, Martins Dagostim, Ney Pulido, Nelson Ari Cardoso, Paulo Venturelli, Luiz Rettamozo, Roberto Bittencourt, Ronald Magalhães, Rui Werneck de Capistrano, Tânia Bassetti, Vitor Hugo e Zé Arrabal — alguns destes conhecidos em outras áreas além da literatura.

O recital de Sangra:Cio teve outras edições. No rastro do livro veio o espetáculo Fita-crepe, dirigido por Aníbal, com Marcos Prado e Monica Prado Berger interpretando textos de Leminski e Wojciechowski. A publicação também virou tema para Poemas da Meia-noite, peça encenada por um grupo de teatro de São Paulo. Solda e Thadeu ainda lançariam 69, livro em miniatura com 69 poemas e paratextos de Leminski. Para Prado, nessa época várias linguagens e artistas eram agregados em torno da poesia. Todos estavam muito envolvidos com o projeto, daí o sucesso, segundo Aníbal.

 

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Tânia Bassetti no lançamento do Sangra:Cio, em 1980. Fotos: Arquivo pessoal

 

Tânia Bassetti é a única mulher na lista com 26 homens, o que não foi um problema: “Não causou constrangimento, era o meu trabalho sendo divulgado”, relata. Ela era aluna da pós-graduação na PUC, mas não circulava com a turma aglutinada pela figura de Thadeu (“ponta de lança” de vários encontros, na definição de Aníbal). Na sua apresentação para o Sangra:Cio, a autora crava: “Tenho vários motivos e uma certeza comigo: quem escreve abre mão do resto”. Depois de se aposentar como pesquisadora e professora na Universidade Tuiuti do Paraná, Tânia retomou o interesse pela poesia, e agora planeja lançar uma seleção com seus textos.

 

Na Rua das Flores

Não é possível falar em livros dos anos 1970 e 1980 sem pensar no ambiente em que foram publicados — uma Curitiba planejada, ainda sob a sombra da ditadura. Parte da comunicação do mundo pré-internet, em que o telefone era um luxo, acontecia numa sala anexa a um café na Rua XV de Novembro, em frente à galeria Ritz. “Eu morava no Capão Raso [região sul de Curitiba] e Marcos e Roberto Prado no Bacacheri [norte da cidade]. Quando estava no Centro, deixava um bilhete avisando sobre o local e o horário de um encontro no painel do café. Se eles vissem, nos encontrávamos no dia seguinte”, relembra Aníbal.

“Curitiba era pacata, hoje é uma metrópole. Todos éramos boêmios e gostávamos da vida: cinema, literatura, arte… E compartilhamos tudo isso com muita gentileza”, conta Solda. Ele e Leminski podiam ser vistos em bares da região central, como o Kapele, depois do expediente em agências de publicidade. “Se você sentasse na Rua das Flores, se enturmava”, diz Prado. “Agora está tudo desconcentrado: tem muitas coisas e ninguém sabe como encontrar elas.”

Como as produções envolviam várias linguagens diferentes, além dos autores, outros nomes rondavam os projetos. “Tem o pessoal que participava e o que dava pitaco”, segundo Prado, que dividia mesas do Bar Cometa com o escritor Wilson Bueno. Solda trabalhou no teatro com o dramaturgo Manoel Carlos Karam. Os Prado tiveram como ponte para o Sala 17 o músico Daniel Faria. Fachin organizava concursos literários de estudantes e eventos com a presença de convidados como Ferreira Gullar, Chacal e Bernardo Vilhena. Aníbal Marques foi proprietário da livraria e locadora Zeppelin, outra parada do circuito cultural.

As parcerias continuaram. Em 1985, Marcos, Roberto, Thadeu e Edilson Del Grossi lançaram OSS, com direito a resenha de Leminski na Folha de S. Paulo. Perolas aos Poukos e Erdeiros do Azar saiu em 1987, assinado por Marcos, Roberto, Thadeu e Sergio Viralobos. Nos últimos anos, o trio vem desenvolvendo projetos com outros colaboradores — como a série de vídeos com a narração dos Doze Trabalhos de Hércules e traduções do poeta Gerrit Komrij. Os trabalhos seguem o espírito do Sangra:Cio, que foi além do livro enquanto objeto: “Criamos uma situação em torno dele, um movimento cultural”, avalia Roberto.

 

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Paulo Leminski ao lado do cartaz de lançamento do Sangra:Cio. Foto: Julio Covello

 

Leia a seguir alguns poemas publicados no livro Sangra:Cio (1980)

 

MALDIÇÃO

 

é simples ter

ter como algo que re tem

a estrela que perdeu sua noite eterna

           por isso, crianças,

           em nada se toque

           tudo está vivo e consagrado

 

Antonio Thadeu Wojciechowski

 

*

 

ASSIM

 

bem mais duro e forte, aqui dentro

há um monstro

bem mais duro e forte

que se contenta com rosa

e já cedo é guindaste de ferro e aço,

que a cada metro engolido vai

todos os operários vai

deixar à vista reluzente novo edifício fumê;

esse monstro realiza o fim dessa fome,

enganosamente,

e muito tempo depois, sei,

vai me largar contando histórias

de futebol, mulheres e guerras,

nos bancos da praça Osório.

Só e vazio, assim.

 

Luiz Edson Fachin

 

*

 

o velho leon e natália em coyoacán

 

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia

o céu vai estar limpo e o sol brilhando

você dormindo e eu sonhando

 

Nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia

apenas você nua e eu como nasci

eu dormindo e você sonhando

 

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia

silêncio nós dois murmúrios azuis

eu e você dormindo e sonhando

 

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia

nada como um dia indo atrás de outro vindo

você e eu sonhando e dormindo

 

Paulo Leminski

 

*

 

           para Tiago

           agora mais perto

 

saudade aqui é mato

apesar desse cimento

e eu desarmado

 

Roberto Prado

 

*

 

INSPIRAÇÃO

 

Início

pronunciação

novos sonhos…

inspiração.

Tudo flui na mente do poeta.

Alma de mulher.

A fonte da vida.

Cantar, correr, transbordar…

Final de sonho.

Nada reproduzido.

Morrer, calar, morrer.

Abandonada a poesia.

Só a mente vazia.

Sem alma, a mulher.

 

Tânia Bassetti