ESPECIAL | Um presente para Saramago 30/03/2023 - 14:15

Jornalistas e escritores recordam a visita do Nobel de Literatura a Curitiba, há 23 anos

 

Juliana Sehn

 

Em 3 de dezembro do ano 2000, José Saramago, aos 78 anos de idade, chegou ao Brasil para uma turnê de lançamento de A Caverna. O autor português, premiado com o Nobel de Literatura há apenas dois anos, estava orgulhoso por conseguir terminar de escrever um novo livro ainda antes da virada do século, para deixar evidente sua opinião sobre o mundo em que vivia.

A Companhia das Letras promoveu a ida de quatro jornalistas paranaenses para uma coletiva de imprensa intimista com o autor, em um hotel em São Paulo. Entre eles estava Roberto Nicolato, na época responsável pelo setor de livros do suplemento de cultura Caderno G, da Gazeta do Povo. Ele lembra que os profissionais foram recebidos com carinho e atenção pelo escritor.

De volta à Curitiba, Nicolato produziu uma reportagem publicada na capa do Caderno G do dia 6, uma quarta-feira. A ideia era que o material incentivasse o público a comparecer a um evento do qual Saramago participaria na capital paranaense na sexta-feira da mesma semana.

Segundo o jornalista, José Saramago ficou tão satisfeito com a entrevista que chegou a comentar com Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, que não precisaria nem ir para Curitiba, já que o material havia resumido tudo o que ele gostaria de dizer. Brincadeira à parte, o autor não deixou de comparecer ao compromisso marcado com os curitibanos, que já haviam retirado os ingressos para o encontro, disponíveis em uma das lojas da rede Livrarias Curitiba. Saramago ainda não sabia que seria surpreendido com um raro presente.

Na sexta-feira, dia 8, o professor e bibliófilo Júlio Paulo Calvo Marcondes foi ao Centro de Convenções de Curitiba, na Rua Barão do Rio Branco, para ver o autor lusitano. Levou dois livros — um para ser autografado por Saramago e outro para presenteá-lo. O regalo era uma primeira edição autografada de Angústia, de Graciliano Ramos, um dos autores prediletos do português.

Também compareceu ao evento o estudante de Jornalismo e futuro escritor Pedro Carrano, convidado de última hora do amigo e mentor Paulo Venturelli, professor da UFPR e autor já estabelecido, com quem iria se encontrar no auditório.

Às 18h30, quando o evento começou, o Centro de Convenções estava lotado de leitores, estudantes de Letras, jornalistas e escritores. O ator Luís Melo, por coincidência ex-aluno de teatro de Venturelli, também estava lá. Não apenas para assistir à palestra, mas como responsável por abrir o evento lendo um trecho de A Caverna. Após essa introdução, Saramago deu início à “minipalestra” — como tinham prometido os jornais —, que acabou durando cerca de uma hora.

O escritor passou a maior parte de sua fala sério. Como ele mesmo repetia com frequência, o mundo não lhe dava muitos motivos para sorrir. “Ele não ia ficar se abrindo, como uma vitória régia, em um momento solene como aquele”, comenta Venturelli. Ainda assim, o palestrante manteve um tom de conversa entre camaradas, fazendo algumas brincadeiras vez ou outra, intercaladas entre críticas fortes e diretas sobre a injustiça que via no mundo desde criança.

O público curitibano, em geral, estava eufórico, rindo de vez em quando de comentários divertidos que o autor fazia. Por outro lado, quando o orador expressava opiniões políticas mais radicais, de esquerda, parte da plateia se inquietava, desconfortável, o que certamente não desencorajou Saramago, que manteve a fala crítica do início ao fim.

O português começou a intervenção dizendo que seu maior desencantamento era ter nascido em um mundo injusto — e que certamente morreria em um mundo injusto. Seguiu falando sobre a razão cega da humanidade, além de criticar o sistema capitalista, o próprio conceito de ser humano e os problemas ambientais. “Sou uma pessoa pessimista e cética em relação a esta coisa que nós chamamos espécie humana, em relação ao que estamos a fazer do mundo e de nós próprios”, diz uma anotação feita por Paulo Venturelli em sua agenda durante a palestra.

Para Carrano e Venturelli, é justamente uma frase nesse tom que ainda ecoa em suas memórias: “Quanto mais velho, mais livre, e quanto mais livre, mais radical” — assim o escritor descreveu o momento em que vivia. Saramago encerrou sua fala com um convite: “Se vocês, jovens, quiserem mudar a ordem injusta das coisas e saírem às ruas, podem me chamar”.

Finalizado o discurso, formou-se uma grande fila para que o público pedisse autógrafos. Porém, apenas aqueles que já haviam retirado uma senha conseguiriam a assinatura, o que não foi o caso dos amigos Paulo Venturelli e Pedro Carrano, que saíram então para tomar uma cerveja.

Júlio Marcondes, o bibliófilo que levou a edição especial para Saramago, também não tinha senha. Chateado, procurou Luiz Schwarcz e lhe explicou sua situação. Pediu ao editor que entregasse o presente ao escritor português. Schwarcz concordou e Júlio se dirigiu para a saída, conformado em ficar sem o livro autografado.

Saindo do prédio, encontrou com a mãe de uma aluna, que, por ter conseguido dois exemplares autografados, deu um a ele, que deixou o Centro de Convenções contente, com ambos os objetivos da noite cumpridos. Saramago, após conceder mais de 200 autógrafos, se retirou às 21h30 e continuou a turnê agitada pelos próximos dias.

Algumas semanas depois do evento na capital paranaense, Marcondes recebeu uma carta com o carimbo de Lanzarote, ilha em que Saramago residia com sua mulher. Era uma mensagem do escritor, imensamente agradecido ao morador de Curitiba que lhe presenteou com o exemplar precioso de Graciliano Ramos.

O autor atribuiu o tempo que levou para agradecer aos diversos compromissos cumpridos durante uma viagem repleta de congressos e entrevistas. A missiva terminava com um pedido: que Júlio Marcondes aceitasse receber o livro de volta. O escritor não se conformava em ser presenteado com tamanha joia literária, e considerava o professor seu verdadeiro dono, “por motivos de inteligência e do coração”.

O bibliófilo respondeu dizendo que gostaria que Saramago ficasse com o presente. Recebeu, então, uma segunda carta em que o português afirmava estar para sempre em dívida com ele, e esperava que pudessem se encontrar quando retornasse ao Brasil para a estreia da adaptação teatral de O Evangelho Segundo Jesus Cristo em São Paulo, no mês de novembro do mesmo ano. “Espero que possas dispor do teu tempo para ir gastá-lo a ouvir palavras que já conheces”, disse.

O professor de Curitiba e o escritor português nunca conseguiram se encontrar. Marcondes morreu em 2009, seguido por Saramago, em 2010. Restou, nas palavras do autor, “a recordação de um dos momentos mais belos” de sua vida.