ESPECIAL | O poeta não cabe na rotina 29/11/2021 - 16:00

“Versão definitiva” de Toda Poesia ajuda a iluminar a obra de Ferreira Gullar, que se mantém pulsante e foi escrita em momentos de arrebatamento

 

Mateus Baldi


Em outubro de 2016, poucos meses antes de morrer, Ferreira Gullar compareceu à Livraria Leonardo da Vinci, ponto emblemático no centro do Rio de Janeiro, para uma conversa com o jornalista Miguel Conde. O evento daquela tarde celebrava a nova edição de Poema Sujo, obra-chave da poesia de Gullar, concebida no exílio durante a ditadura militar. Mais de 100 pessoas se acomodavam no espaço recém-reformado, que transformara a antiga Da Vinci em uma livraria do século 21, embora conservasse o espírito que a consolidou como endereço seguro para os que buscavam obras de qualidade. 

Conde se recorda daquela tarde em detalhes por um motivo especial: à época, já havia iniciado as conversas com a Companhia das Letras — e o próprio Gullar — para escrever a biografia do homem nascido José Ribamar Ferreira, em São Luís, no Maranhão. “Foi engraçado, uma das suas últimas aparições públicas. Ele disse que tinha relido o livro e não lembrava que tinha um teor político tão forte. Parecia um pouco cansado, mas logo foi se animando e parecia iluminado na cadeira”, conta.

O projeto de biografar Ferreira Gullar foi retomado em 2017, sob o comando da editora Alice Sant’Anna, responsável pela obra do poeta na casa paulistana. E agora, em 2021, a versão definitiva de Toda Poesia — reunião de sua obra poética completa — chega às livrarias. Alice conta que o livro passou por muitas versões desde a sua primeira publicação, em 1980.

“No decorrer dos anos, Gullar fez mudanças, correções e lançou novos livros, que foram incorporados à edição da poesia completa. É um caso muito especial de uma reunião que foi cuidada, trabalhada e retrabalhada ao longo de décadas pelo próprio poeta. Na edição da Companhia, a 22ª, procuramos respeitar as escolhas do autor e o modo como ele queria que a sua obra fosse lida”, explica a editora.

 

Capa Toda Poesia
22ª edição do livro Toda Poesia (Companhia das Letras), de Ferreira Gullar, reúne a produção poética de quase sessenta anos do autor maranhense.

 

Para Miguel Conde, a obra tem na extemporaneidade um de seus pontos fortes, pois trata-se de um poeta muito ligado nas grandes questões do seu tempo, um intelectual público e não apenas alguém que debatia as questões que estavam em voga. “Ele criou formulações teóricas importantes, influentes. Era essa pessoa que estava, de alguma forma, no meio dos acontecimentos, do turbilhão da História. Mas, ao mesmo tempo, a sua melhor poesia não se deixa reduzir ao momento histórico em que foi escrita, nem ao nosso momento histórico atual. Acho interessante pensar o Gullar no começo dos anos 1950, a época pensada como um sonho feliz de modernização e democratização do Brasil, com Bossa Nova, Seleção e JK, e como ele estava ali, escrevendo um livro tão soturno, dramático e radical como A Luta Corporal. Mais que isso, imbuído de um ímpeto moderno, de experimentação, que não aponta como apontou em algum momento do Modernismo para um projeto utópico de uma instalação do novo”, afirma.

O poeta Antonio Cicero, autor do posfácio da nova edição de Toda Poesia e membro da Academia Brasileira de Letras, na qual Gullar ocupava a cadeira 37, considera a obra do maranhense um impressionante retrato do período que estamos vivendo. Apresentado à sua poética pelo colega Alex Varella no Instituto de Filosofia da UFRJ, Cicero acredita que o poeta — ou melhor, a poesia — é que constrói o personagem Gullar.

Alice Sant’Anna concorda. Fã incondicional desde a primeira leitura de Poema Sujo, aos 15 anos, ela considera a produção “espantosamente atual”. O exemplo que serve de ilustração é “Não Há Vagas”, poema do livro Dentro da Noite Veloz, em que Gullar escreve: “o preço do feijão não cabe no poema”.

“É uma poesia muito atenta ao seu contexto, totalmente atrelada ao momento em que foi escrita. Por um lado, Gullar narra suas experiências de um modo muito pessoal e íntimo — suas memórias de infância em São Luís, o trenzinho caipira — e por outro descreve experiências coletivas, com as quais estabelecemos uma identificação imediata. É uma poesia com forte preocupação social, profundamente brasileira”, explica Alice.

 

Gullar na Flip
Gullar tem forte ligação com a sua cidade natal, São Luís, no Maranhão, e isso transparece em alguns de seus poemas. Foto: Divulgação / Flip.

 

Esses mesmos versos que desfiam o que não cabe no poema estão na gênese da relação que Miguel Conde desenvolveu com seu biografado. Ele estava na escola quando leu uma espécie de antologia poética improvisada com poemas de Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar.

“Fiquei com aquilo na cabeça porque me parecia esquisito, é um poema que tem uma dimensão meio ‘meta’, discutindo aquilo de que os poemas são feitos, e falando de coisas que supostamente não são tema de poesia — o preço dos alimentos, o desemprego, a fome. Mas para a criança que eu era naquele momento, o poema falando de feijão com arroz era uma coisa muito esquisita”, lembra.

Por sua vez, as memórias maranhenses de que fala Alice Sant’Anna demoraram a aparecer. O biógrafo explica que São Luís aparece de maneira muito cifrada nos primeiros poemas, e só retorna, como uma espécie de assombração, em Dentro da Noite Veloz. “A memória aparece como a recordação de alguma coisa que volta já perdida, que não se tem como recuperar. Ao mesmo tempo, numa chave muito ambivalente, uma espécie de busca pela vida, pelas próprias experiências definidoras da infância. Uma constatação de finitude, de coisas mortas. Isso se faz sentir sobretudo no Poema Sujo. Acho que é impossível pensar o Poema Sujo sem pensar o que foi essa experiência de infância e juventude e o que foi essa experiência do exílio, estar como à beira da morte, pisando uma linha de separação entre a vida e a morte.”

Antonio Cicero recorda Vinicius de Moraes e sua afirmação de que Gullar era o último grande poeta brasileiro. O acadêmico pontua que talvez não seja o último, mas é, certamente, um dos maiores poetas brasileiros de nossa época — e por isso é importante ler sua Toda Poesia.

Miguel Conde ajuda a iluminar o modus operandi da criação dessa obra monumental. “Quando alguém perguntava ‘Você é o Ferreira Gullar?’, ele dizia: ‘Às vezes’. Essa ideia tinha um sentido mais literal, concreto, que é o fato de esse nome ser um pseudônimo inventado. Ele sempre bateu na tecla de que escrever poesia não era uma atividade que se podia executar com hora marcada, dentro de uma rotina. Escrever poemas demandava certo estado de ânimo, um arrebatamento imprevisível que não se podia controlar muito bem.”

Após mais de uma dezena de entrevistas, e escrevendo sobre a juventude de Gullar, nos anos 1940, Conde ainda se mostra entusiasmado com as descobertas. As informações mais interessantes vieram, muitas vezes, de pessoas anônimas do grande público, amigos próximos que estiveram presentes ao longo da vida do poeta. A pesquisa já se estendeu para além dos limites da hemeroteca da Biblioteca Nacional: há arquivos no Maranhão e em Brasília, onde Gullar dirigiu uma fundação cultural na década de 1960.

Para o biógrafo, há uma camada de otimismo em sua produção poética. Dentro da Noite Veloz, por exemplo, continua sendo interessante para pensar poesia e política no Brasil — e, em certo sentido, por ser um livro que pode soar distante do nosso tempo. 

“Há uma poesia feita ali sob o signo de uma expectativa de transformação radical do mundo, da história humana. Tem um grau de ambição, de esperança, nisso que acho que parece quase impossível para nós, hoje, entendermos como foi possível existir esse sonho em algum momento da História, não só do século 20, mas do Brasil, especificamente. É como se houvesse uma aposta de que a própria arte teria de criar as condições de possibilidade daquilo que estava sendo entrevisto naqueles poemas e que talvez não estivesse dado como fato na sociedade da época”, diz Conde.

O biógrafo completa: “Hoje vivemos um momento histórico em que esse tipo de aposta parece muito fora do nosso campo de possibilidades. Quem lê poesia contemporânea no Brasil, mesmo que não esteja lendo a obra do Gullar, de alguma maneira está lendo a obra do Gullar. Parece aquilo que o Auden falou sobre a morte do Yeats: seus poemas estão espalhados por centenas de cidades, são palavras que estão entranhadas e processadas de maneiras diversas na escrita de uma série de poetas vivos”.

 

Mateus Baldi é escritor e jornalista. Criou o site Resenha de Bolso, voltado para a crítica de literatura contemporânea, e organizou as três edições literárias da revista Época, da qual também foi colunista. Mestrando em Letras (PUC-Rio), pesquisa a obra de Caetano Veloso.