ESPECIAL | O entusiasta 31/01/2024 - 12:07

Em entrevista especial para o Cândido, Ruy Castro discute a ciência e arte da biografia, e dá seus votos para que as pessoas escrevam mais

 

por Francisco Camolezi

 

Medalhão do jornalismo brasileiro, Ruy Castro atingiu o posto de autor. Notável pelas biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda e livros de reconstituição histórica, como Chega de Saudade (1990), A Noite do Meu Bem (2015), e Metrópole à Beira-mar (2019), Ruy lançou, em 2022, A Vida por Escrito, livro quer pretende dar conta dos seus 25 anos de trabalho ministrando cursos sobre biografia no Instituto Estação das Letras, no Rio de Janeiro, e no Centro Cultural ba_rco, em São Paulo. Em entrevista, Ruy conversa sobre seu trabalho como biógrafo, seus posicionamentos em relação aos debates metodológicos que rondam as biografias e se declara entusiasta da escrita da memória.

 

Em A vida por Escrito, você sobrevoa gêneros comumente confundidos pelos leitores e por alguns estudiosos com a biografia. Ensaios biográficos, livros-reportagem, perfis e memórias são alguns deles. Curioso é que o livro ultrapassa a proposta de “curso de biografia" e se aproxima de uma espécie de mémoire. É voltado para seu exercício profissional, mas sem deixar de se misturar com o sensível. O título, inclusive, parece uma sugestão. Era a intenção?

Sim. Nunca pensei num livro meramente didático, embora vá adorar se ele for adotado em cursos de jornalismo. A melhor maneira de ensinar é, creio, pelo exemplo, e, nesses 35 anos no ramo, acho que passei pelos desafios possíveis que a biografia apresenta. Todas as técnicas de investigação, pesquisa e entrevista que descrevo tive de aprender por conta própria, e, por isso, minhas descrições podem parecer mémoire. Mas é assim que funciona a cabeça do biógrafo — contando uma história.

 

Ao pensar em uma historiografia da cultura, memória, reconstrução e, para além do prazer do leitor, quais os frutos da publicação de uma biografia?

Quando era estudante aqui no Rio, nos anos 1960 — fiz Ciências Sociais na antiga FNFi (Faculdade Nacional de Filosofia), atual IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais) da Universidade Federal do Rio de Janeiro —, tínhamos de estudar não pelos fatos, mas pelos modelos sociais, políticos e econômicos. Se os fatos não se encaixassem nos modelos, pior para os fatos. Como já era jornalista e, neste, o material são os fatos, nunca me conformei com aquilo. Daí a biografia e a história me atraírem muito mais – trabalhamos com o concreto, o objetivo, que são os fatos. As interpretações e análises ficam por conta dos ensaístas. Se o leitor perceber isto, poderá passar a ter uma visão melhor da realidade.

 

Como você enxerga as relações da biografia com os campos da literatura e do jornalismo?

Convenci-me, desde cedo, que, se houvesse um curso de biografia na universidade brasileira, ele deveria comportar aulas nas faculdades de Jornalismo, Letras e História. Acho que A Vida por Escrito tem a ver com todas essas disciplinas. O jornalismo ensina a apurar, as letras dão uma base para a escrita e a História fornece uma visão do conjunto, indispensável quando se mergulha no particular. Precisei muito da história em O Anjo Pornográfico, Estrela Solitária, A Noite do Meu Bem, Metrópole à Beira-mar e até Ela é Carioca. As pessoas não vivem num vácuo.

 

Você relaciona a Biografia com as faculdades de Jornalismo, Letras e História. No livro A Vida por Escrito você afirma que a biografia não é lugar de literatice. Mas é literatura? Jornalismo? História? Ou é bobagem pensar em algo como uma categoria para a biografia?

Quem disse que Letras só ensinam literatice? Ensinam literatura. E não há o menor problema para quem escreve conhecer literatura. Biografia é um gênero híbrido, sempre disse isso. Aliás, o ser humano também é.

 

Os seus parâmetros para um conceito de biografia são bastante próximos daqueles discutidos pela academia, no entanto, suas justificativas são mais práticas e, por isso, soam mais como instruções do que regras. Qual é sua tolerância com biografias de pessoas vivas e escritas em ordem não cronológica?

Sou um leitor chato de biografias porque, sabendo como elas são feitas, vejo imediatamente quando o biógrafo está navegando no azul, “adivinhando” o pensamento do biografado, confundindo o leitor com uma cronologia “criativa” ou se submetendo à vontade do biografado vivo. Por sorte, isso hoje acontece cada vez menos. O pessoal está mais rigoroso.

 

É possível chamar de biografia um livro biográfico escrito sobre alguém vivo?

Só se for independente e à revelia do biografado.

 

O termo "Autobiografia". Aberração ou simplesmente possível?

Já reparou que o autor de uma biografia é um biógrafo, mas o de uma autobiografia não é um “autobiógrafo”? Talvez porque essa categoria não exista, assim como o gênero. Em contrapartida, sou fascinado pelos que põem no papel suas memórias, observações e opiniões sobre sua própria vida ou época. Acho que todo mundo devia contar sua história, desde que admita que aquela é apenas a sua versão sobre sua própria vida. Pode ser útil no futuro para os biógrafos “de verdade” que queiram biografá-los.

 

Você conta que muita coisa mudou em questão de técnica e estética entre as biografias de Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico, 1992) até Carmen Miranda (Carmen - Uma Biografia, 2005). Se fossem escritas hoje, pensa em diferentes escritas, abordagens, apurações?

Não. Acho que, desde o começo, estabeleci para mim mesmo um método de trabalho que acho correto até hoje. A diferença é que, no caso das biografias, se fosse fazê-las hoje, eu tentaria ouvir ainda mais gente e mais vezes. Isso pode parecer absurdo, sabendo que algumas das biografias me tomaram cerca de mil entrevistas com pelo menos duzentas pessoas, ao vivo, por telefone ou por escrito.

 

Todas as suas biografias foram escritas e publicadas antes da reafirmação do ditado popular "cala boca já morreu", sobre a liberdade de expressão, pela Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, em 2015 Se fosse o contrário, que diferença faria?

Carmen Lúcia prestou um grande serviço à história do Brasil e já tive o prazer de agradecer pessoalmente a ela. Sua medida não me afetou pessoalmente porque nunca pedi autorização para biografar ninguém, nem pediria. Ao contrário, sempre levei pelo menos seis meses em cada uma delas para me aproximar dos herdeiros ou da família dos biografados. Acho que se deve manter uma relação cordial com eles --- afinal, podem possuir material exclusivo, como documentos, fotos, histórias. Mas nada pode ser feito em troca da independência do biógrafo. Paga-se o preço. Isso me custou a inimizade de morte dos filhos não reconhecidos do Nelson Rodrigues, das herdeiras do Garrincha e das sobrinhas da Carmen Miranda. Mas não os impediu de se beneficiarem do que meus livros fizeram por seus parentes.

 

Há 14 anos, no programa Provocações, da TV Cultura, você falou sobre o desejo de biografar Carlos Lacerda. Hoje, daria a mesma resposta para a pergunta de Antônio Abujamra?

Não. O Lacerda está hoje em muito boas mãos, do Mário Magalhães, que, depois de quase dez anos, deve estar terminando seu livro. E esse foi meu principal motivo para deixar Lacerda de lado: o tempo absurdo que, para ficar bom, ele iria tomar. O Mário que o diga. A ideia de biografar Lacerda, que conheci bem em Lisboa no ano de 1973, vem desde que lancei o Estrela Solitária em 1995. Pensei muito também em Leila Diniz. Mas só os abandonei por Carmen quando me deu o estalo, em meados de 2000.

 

Em 2025, sua última biografia, Carmen, completa 20 anos. Pensa em voltar?

Posso voltar, sim, por que não? Basta me ocorrer um personagem que me fascine tanto quanto as épocas que estou gostando de levantar. O passado está cheio de histórias, e elas não se limitam a uma pessoa em particular. Podem envolver todo um povo, uma cidade e uma época.

 

Hoje, visitam a sua cabeça possíveis nomes para uma biografia? Quais?

Há muita gente implorando por biografias de verdade. Todos os presidentes do Brasil; Roberto Marinho; Guimarães Rosa; Glauber Rocha; Oscar Niemeyer; e agora o Pelé. Mas não serei eu a fazer nenhuma. E há três possíveis grandes biografias a caminho: Drummond, pelo Humberto Werneck; Villa-Lobos, pelo Rodrigo Alzuguir; e Carlos Lacerda, pelo Mário Magalhães.

 

Por fim, peço que indique biografias de escritores brasileiros publicadas recentemente. É possível mapear uma nova geração de biógrafos brasileiros?

Nessa eu não caio [risos]. Há toda uma nova geração de ótimos biógrafos brasileiros, e eu não gostaria de deixar ninguém de fora. Eles me procuram muito, porque sabem que podem contar comigo para trocar ideias, dar palpites e sugerir pistas e nomes. Adoro biografias e, como não posso escrever todas que gostaria de ler, torço para que elas sejam feitas, e bem feitas, para que eu possa lê-las. Aliás, este é o objetivo secreto de A Vida por Escrito.