ESPECIAL NICOLAU | A solidão do anarquista 29/02/2024 - 15:23

Roberto Freire

 

"Por que não nasci eu um simples vaga-lume", disse um dia o genial prosador Machado de Assis.
Pois é, não somos simples nem temos o lume-do-vaga-lume: somos essencialmente sós e nós.
Sobre esse fantasma, a solidão, fala aqui, especialmente para Nicolau, o somaterapeuta Roberto Freire.
A solidão escura e a outra, a solidão necessária para se amar, para se criar: a solidão sem mágoa, a solidão sólida,
plena, a solidão solar.
É preciso, mesmo a sós, aprender a ser sol.

 

Antes, era a grande solidão sem mágoa.

 

Assim começa a letra do Hino a Brasília escrito pelo Vinicius, com música de Tom e encomendado por Juscelino. O poeta se referia ao Planalto Central antes da construção da cidade. Para mim, entretanto, sempre foi outro o significado desse verso: a solidão também pode ser algo desejável, necessário, bonito, saudável e, sobretudo, voluntário.

A solidão sem mágoa é coisa própria da Natureza, reflete o jeito de ser e de estar das pessoas em relação ao todo da vida do Universo, fora e dentro de si mesmas. Sinto que a solidão sem mágoa dos homens faz mais parte de sua natureza mineral, porque parece imóvel, incomunicável e eterna, do que da orgânica que é pulsátil, móvel, transformável, comunicável e fátua.

É através desse tipo de solidão que podemos avaliar, sem interferências externas, nossa própria inteireza como ser e como pessoa, podemos conviver com o que nos é realmente próprio, original e único. As outras oportunidades para isso seriam o momento de criação e o instante de amor, porém nessas ocasiões não estamos sós e ocorrem interferências, geralmente boas demais para permitirmos a solidão, mesmo sem a mágoa.

Por isso é que os melhores amantes e os melhores criadores necessitam da solidão que libera e alimenta seus potenciais de amor e de criatividade. É essa razão porque os grandes amantes e os grandes criadores são pessoas muito e satisfatoriamente solitárias. Fica assim bem distinta a maneira com que vejo a solidão sem mágoa da solidão produzida pela discriminação, pelo preconceito, pelo medo e pelo ódio de um lado e, de outro lado, pelo abandono, pela fuga, pelo desterro e pelo ostracismo. Há ainda outra fonte para a formação da solidão com mágoa, que são a perda da pessoa amada, a falta de saúde, os defeitos físicos, a pobreza, a neurose e a velhice.

Entretanto, nada me parece mais solitário (não sei se com mágoa ou sem mágoa) que um homem morto. Muito, mas muito mais solitário que aqueles que o amaram e o perderam. A solidão do morto é essencial e completamente mineral.
Quando vejo as pessoas não conseguindo se livrar da solidão com mágoa e, ao mesmo tempo, sendo-lhes impossível alcançar a solidão sem mágoa. fico lembrando o quanto isso foi difícil para mim também: embora nos últimos anos tenha começado a viver mais solitariamente, cada vez com menos mágoa e aprendido a encarar e enfrentar o que gera mágoa em minha solidão particular.

Aprendi com poetas e com cientistas solitários que a duração da vida é mais vertical que horizontal e que esta se passa fundamentalmente dentro de nós, não fora. É isso o que chamo viver: eu comigo mesmo, vivendo minha solidão que só pode ser, originalmente, sem mágoa. A vida que se passa fora de nós depende da que se passa dentro, claro, porém é mais horizontal, é mais troca de vida já vivida, que pode agradar e encantar nossa solidão, mas pode também desagradá-la e desencantá-la criando a mágoa.
Não existe mais diferença hoje entre um poeta e um cientista, assim como é impossível separar energia de matéria. O cientista me provou que sou um ser original e único no universo. Nunca houve, não há e nem haverá também nunca ninguém igual a mim. A minha vida é uma mensagem específica e especial, de cuja resposta do meio ambiente e dos outros homens depende o futuro da espécie.

O poeta entende e me explica isso de uma forma que me faz sentir esse poder em mim, sem que precise entendê-lo. Ele me diz que a solidão primordial é produzida por tudo o que nos afasta, na vida pessoal, social, amorosa, profissional e política de nossa originalidade única, ou seja, daquilo que só eu posso ser e que, se não for, nada do que seja e faça me significa, me explica, me satisfaz e me recompensa. O resultado é a solidão de mim mesmo. Com mágoa. É uma sensação permanente ou recorrente de incompetência ou de impotência para o amor e para a criatividade. Uma capacidade de sujeição e de submissão aos padrões, à medida, à mágoa.

Uma das coisas que mais me espanta e entristece é o observar na sociedade contemporânea a dificuldade para o amor e, sobretudo, quando alcançamos, a dificuldade ainda maior para mantê-lo vivo e inteiro. Acho que através das idéias que defendo nestas reflexões, entendo que no instante da revelação do amor ou no momento da sedução, abrimos para o parceiro a nossa originalidade única, como se a vivêssemos de fato, sempre.

Acredito mesmo ser nisso que reside o nosso poder de sedução e é isso mesmo que sentimos ao nos apaixonar. O encantamento do namoro e dos primeiros tempos da relação amorosa deriva da exposição de nossa originalidade única, coisa que só os amantes apaixonados podem exibir e podem com ela se comunicar. Porém, nossos bloqueios e medos, apesar do amor, acabam por ocultar de novo aquilo que somos originais e únicos e retornamos à velha solidão com mágoa, proporcionando decepção, desencanto e mágoa a nós mesmos e aos companheiros. E a solidão se impõe, sozinhos ou acompanhados, porém sempre com mágoa, sempre maior, porque a cada namoro e a cada paixão, embora durem pouco tempo, sentimos o gosto inesquecível, porque essencial e vital, da solidão sem mágoa a dois.

Assim entendida, a solidão é fruto do autoritarismo que impede a liberdade individual e a formação de sociedades que entendam a liberdade individual como apenas o singular da liberdade social e esta como apenas o plural da liberdade individual.

Só numa sociedade socialista libertária isso seria possível. Enfim, a solidão sem mágoa é coisa do coração, da alegria e do tesão anarquistas. E isso explica por que, mesmo já velho, continuo amando muito e me divertindo com a vida. E, parafraseando George Moustaki, já não me sinto mais sozinho se tenho a minha solidão por companhia.

 

Roberto Freire, somaterapeuta e escritor, e autor de Cleo e Daniel (Global, 1972). Coiote (Guanabara, 1986), Sem tesão não há solução (Guanabara, 1987) e A alma e o corpo (Primeiro livro da soma — uma terapia anarquista, a ser lançado em outubro pela Guanabara), entre outros.