ESPECIAL | Janela indiscreta 28/06/2021 - 10:52

Autores contam como a crônica, gênero das ruas e da observação, sobrevive durante o isolamento social

Jonatan Silva

A crônica, a bossa nova da literatura brasileira, é — por essência — um gênero de observação. É a literatura do sujeito que sai à rua a flanar, que vive a cidade através da sua quase invisibilidade. Esse escritor é arauto do cotidiano e das pessoas comuns. Com a chegada do coronavírus, sua investigação ficou minguada, reduzida à janela indiscreta de casa. E o cronista de apartamento é como um canário na gaiola: canta, mas sempre em um tom mais triste.
 
De início, há um bloqueio total. Mas, pouco a pouco, o cronista deve reaprender a ler e a escrever. Longe das ruas, do papo de bar e da conversa entreouvida, é preciso se adaptar à rotina de casa e àquilo que se tem em mãos: a própria família. “Com o tempo, fui aprendendo a dialogar com o gato, escrever sobre a rotina e usar as frases delirantes da Irene, minha filha de 4 anos, pra salvar as crônicas”, explica Xico Sá, que mantém uma coluna no jornal El País.

A crônica em tempos de pandemia, para além do olhar para si, é uma entrega ao outro, à descoberta de uma solidariedade compulsória. Para o cronista Yuri Al’Hanati, autor de A Volta ao Quarto em 180 Dias — livro que prefigura uma reflexão sobre a imobilidade social —, a solução foi usar a escrita como opção ao tédio. “A pandemia me mostrou, sobretudo, que não nos livramos do senso de coletividade nem mesmo em nossa solidão em comum”, comenta. “Dependemos uns dos outros para não nos infectarmos e enfrentamos os mesmos ataques psicológicos dentro de nossas casas.”

Reflexão e leveza

Na enxurrada de texto que brota todos os dias, quase que numa jornada monotemática, como é possível escapar dos lugares-comuns aos quais convidam as quatro paredes do escritório? A resposta, segundo Carolina Vigna, cronista do jornal Rascunho, é criar um texto que, ao tratar de um assunto doloroso e urgente, seja capaz de combinar doses de reflexão e leveza. Mas não é fácil. “Infelizmente, nem sempre eu consigo. Há um vício muito grande na escrita. A gente tende a escrever sempre a mesma coisa e do mesmo jeito”, diz. “Venho tentando fugir de mim mesma.”

Nesse sentido, a crônica é também a arte da miudeza, de se convidar para uma conversa, uma cerveja ou um café. O papel do cronista, avalia Xico Sá, é o de proximidade, de criar laços e oferecer afeto. “A crônica tem esse espírito de puxar um papo, oferecer o ombro amigo, às vezes até colo. Sem ser autoajuda, afinal de contas estamos ao rés do chão, como disse o Antonio Candido, cumprimos esse papel de alento”, defende.

Entre a ilusão e a verdade escarrada, a crônica se ocupa de um intervalo tênue. Tratá-la como remédio aos medos pode soar exagerado, mas imaginá-lo como um escape simplório também. Al’Hanati não oferece uma solução para essa equação, porém aponta um caminho mais sóbrio e, por vezes, realista. “A crônica não é um fármaco que tira a dor da frente das vistas, ela está mais pra um daqueles tratamentos primitivos em que, diante de um estresse e dores imensas, é possível sublimar a agonia. Uma ponte dolorosa, mas, com sorte, alentadora”, pondera. E completa: “O difícil é ler sabendo que você pode estar num caixão de plástico daqui a 15 dias”.

Duplo sentido

O mundo sempre foi um lugar para tensões, um espaço perfeito para que o caos se propague com velocidade. No começo do século passado, a gripe espanhola varreu países e deixou seu rastro de morte e destruição. Há quatro décadas, o HIV disparou o medo e a sensação de finitude. Na visão de Vigna, as urgências carregam consigo sempre um espírito de duplo sentido, em que nada é apenas positivo ou negativo. Os significados se ampliam e adquirem novas formas modelos.

“A humanidade — e as artes que criamos — é mais maleável do que imaginamos. Nada será como antes assim como esse antes já foi completamente diferente do seu antes e assim vamos indo até chegar no Neandertal”, considera. “Trabalharemos de forma mais híbrida e mais remota, o que é bom. E seremos ainda mais solitários, o que é ruim.”


Jonatan Silva é jornalista, crítico e escritor. Trabalhou no jornal Tribuna do Paraná e colabora regularmente com diversas publicações — entre elas Rascunho e Escotilha. É autor dos livros O Estado das Coisas (2015) e Histórias Mínimas (2019).