ESPECIAL | Fronteira fascinante 28/02/2023 - 14:12

Reedição crítica de Mar Paraguayo (1992) reafirma a complexidade da trajetória literária e pessoal de Wilson Bueno

Hiago Rizzi

 

Este pode ser um breve resumo biográfico sobre Wilson Bueno: nasceu em Jaguapitã (PR), em 1949. Viveu com a família em Curitiba de 1955 até 1968, quando mudou-se para o Rio de Janeiro — onde chegou aos 19 anos e passou parte da ditadura. Voltou em 1977, um dia depois da morte de Clarice Lispector. Começou a editar o jornal Nicolau em 1987, parou de beber em 1990 e deixou a redação em 1995. Foi assassinado em sua casa, no bairro Tingui, em 2010. Isso tudo sem falar nos seus mais de 20 livros.

A obra mais conhecida de Wilson, Mar Paraguayo (1992), esgotada há anos no Brasil, acaba de ganhar uma reedição especial, pela Iluminuras, em comemoração aos 30 anos de lançamento. O monólogo da marafona, uma prostituta que vive em Guaratuba, no litoral paranaense, é escrito em português, espanhol, guarani e portunhol — a língua extraoficial da fronteira. Com o aparato de textos críticos, notas de apoio e uma revisão bibliográfica sobre outras publicações do autor, o livro tem organização do escritor Douglas Diegues e do tradutor Adalberto Müller.

Mar Paraguayo também é uma amostra da complexidade de Wilson Bueno. Além da multiplicidade de línguas, a narrativa poética e o enredo são híbridos — “Não é um romance para se contar ao telefone”, avisa o poeta argentino Néstor Perlongher no prefácio. Antes da sua publicação, capítulos esparsos foram publicados no Nicolau, quando Bueno o editava. No evento de lançamento da reedição, realizado no último mês de março, a poeta Jussara Salazar disse que Wilson “era maior que Curitiba”. Douglas Diegues completou: “Mas também era um pé-vermelho”. Mar Paraguayo também é fruto desse cruzamento.

Depois de sua morte, em 2010, foram lançados quatro livros inéditos: Mano, a Noite Está Velha (2011), Mascate (2014, no lado paraguaio da fronteira, pela cartonera de Diegues), Novêlas Marafas (2018, no Uruguai) e Ilhas (2017). Nesse mesmo período, Mar Paraguayo também teve reedições na Argentina e nos Estados Unidos — somadas às que já existiam no Chile, México e França. Ainda assim, pode surgir a impressão de que pouco se fala sobre sua obra.

Para Luiz Manfredini, que biografou o amigo de infância, não há um apagamento do escritor — Wilson Bueno não é conhecido pela natureza da sua obra, desvinculada de modismos. O evento de sua morte, traumático, aumentou o interesse do público, a que se seguiu o lançamento de Mano, a Noite Está Velha, no ano seguinte, pela Planeta. Em A Pulsão Pela Escrita (2018), Manfredini reforça que Wilson passou os últimos anos da sua vida se dedicando completamente ao trabalho.

Jussara Salazar recorda que ele era escritor em tempo integral, consciente sobre seu trabalho, produzindo de forma metódica. Por outro lado, o moralismo em torno de seu assassinato, envolvendo um garoto de programa, caiu como uma bomba: “De forma involuntária, as coisas vão se calando, o que está vivo é mais forte. Curitiba se calou”. Há, ainda, a implicação de gerações que não conheceram ou não tiveram acesso facilitado aos seus livros.

 

Inevitável desbunde

 

Wilson construiu seu próprio mito, era performático. Passada a curta infância em Jaguapitã, juntou-se a Manfredini e outros amigos na Alameda Augusto Stellfeld, na região central de Curitiba. Logo veio o primeiro jornal, aos 11 anos, em parceria com Manfredini — uma única edição, de quatro páginas, impressa pela Biblioteca Pública do Paraná. Durante a adolescência, a dupla frequentava o Centro Juvenil de Letras do Paraná e a Boca Maldita, ponto de encontro de políticos, escritores e jornalistas da cidade, onde eram os mais jovens.

Muito cedo, Bueno conheceu personalidades como Dalton Trevisan e Jamil Snege, outra amizade duradoura. Na mesma época, procurou Francisco Pereira da Cunha, dono da Gazeta do Povo, e garantiu sua primeira coluna em um jornal. “Wilson era meio andarilho”, lembra Manfredini. Assim chegou ao Rio de Janeiro, em maio de 1968. No ano seguinte foi preso, quase por engano. Como em toda a sua vida, Wilson não era engajado politicamente, mas sem saber estava hospedado em uma pensão ocupada por membros da Ação Libertadora Nacional, fundada por Carlos Marighella.

 

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Vilma Slomp

No cárcere por menos de um mês, foi vítima de tortura psicológica — seu algoz foi anistiado em 2013. Trabalhou em diversas rádios e jornais, além de colaborar com o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Nas redações, teve contato com Nelson Rodrigues e João Antonio — os dois trocaram mais de 200 cartas ao longo dos anos. “Mais que a relação entre eles, as cartas revelam questões, angústias, ansiedades e inseguranças literárias que Wilson vivia em cada época”, comenta Manfredini sobre o acervo.

Em paralelo, a cidade lhe trouxe a convivência com figuras icônicas — há registros de encontros com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Burle Marx e até mesmo Madame Satã. Bueno foi um dos moradores do Solar da Fossa, espécie de república hippie em Botafogo por onde passaram Gal Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Ruy Castro, entre outros. O alcoolismo e a marcação da ditadura, no entanto, o impediam de continuar nos empregos.

No final de 1977, voltou a morar na casa da família no Tingui. Em cartas a João Antonio, titubeava sobre o desejo de voltar ao Rio de Janeiro — chegou a fazê-lo em outro momento, mas por pouco tempo. Para Curitiba, levou o desbunde carioca: continuou a usar batom e a encontrar parceiros noite afora, só atenuando o comportamento na frente dos pais. “Não existia nenhuma crise no universo íntimo dele”, afirma Jussara sobre sua sexualidade, que conheceu em outra fase, em 1995, quando já havia trocado as regatas e tamancos por moletons e tênis esportivos.

Antes de ser funcionário comissionado pela Secretaria de Estado da Cultura, órgão que editava o Nicolau, trabalhou na Grafipar, editora de quadrinhos e revistas eróticas, e na coordenação da assessoria de comunicação do Teatro Guaíra. Também engrenou colaborações para os jornais O Estado do Paraná, Gazeta do Povo e Jornal do Brasil. O lançamento do seu primeiro livro, Bolero’s Bar (1986), e o surgimento do Nicolau, em 1987, colocaram seu nome em um novo patamar.

 

Quadro de intensidades

 

O Nicolau foi um dos jornais culturais mais importantes do país. Entre 1987 e 1998, suas 60 edições tiveram a colaboração de centenas de jornalistas, escritores e artistas e dezenas de embates públicos entre representantes do jornal, leitores e o poder público, somados a incontáveis dramas de bastidores que vêm à tona de tempos em tempos. Wilson Bueno foi a peça central de quase todos esses acontecimentos.

Já com o prêmio de melhor veículo de divulgação cultural recebido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, o jornal enfrentou sua primeira crise em 1989, com a saída de toda a equipe, exceto Wilson. A formação de um conselho editorial sem a presença de representantes da própria redação motivou a debandada, que incluiu Josely Vianna Baptista, assistente editorial, e Luiz Antonio Guinski, responsável pelo projeto gráfico. Para alguns leitores, foi o começo do fim.

O temperamento e o alcoolismo de Bueno têm parte nessa história. Um ano depois, parou de beber. Com uma nova equipe, o Nicolau manteve-se angariando prestígio e prêmios até 1994, quando começou a intervenção de Eduardo Rocha Virmond Bueno, então novo secretário de Cultura do Paraná. Sob a premissa de se tornar um jornal mais plural, o Nicolau desmontou-se: a equipe restante se demitiu no início de 1995. Saíram mais cinco números sem a presença de Bueno, até a publicação ser oficialmente extinta, em 1998. Circula a informação de que há uma última edição dos tempos áureos nunca publicada, guardada por colaboradores.

Wilson se aposentou do jornalismo e passou a se dedicar exclusivamente à escrita, no que a superação do vício tem papel substancial. Apenas seu primeiro livro, Bolero’s Bar (1986), foi lançado enquanto enfrentava a dependência. “Os grandes livros vieram depois. Mar Paraguayo é o desbocado”, reforça Jussara Salazar. A morte do amigo Paulo Leminski, causada por uma cirrose hepática, inspirou uma mudança radical. Continuou a ser divertido e cercado por amigos, mas investindo em hábitos saudáveis, com atividade física e análise regular.

Nos relatos sobre ele, existem algumas constantes: 1) Era uma pessoa muito sedutora, 2) apesar do círculo social amplo, sentia-se só, e 3) sua morte foi uma tragédia anunciada, inclusive pela sua obra. Para Jussara, as experiências intensas do escritor foram colocadas na literatura. “Wilson Bueno fez parte de uma geração que não existe mais, junto com Hilda Hilst, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. Ele não perdeu o lado transgressor, mas o domesticou”, afirma. Dos hábitos do passado, preservou apenas as idas a saunas.

 

Fora das sombras

 

Em 2014, grupos de teatro de Curitiba foram convidados pela atriz Nena Inoue a construírem dramaturgias a partir de autores paranaenses. À Selvática Criações Artísticas coube lidar com as mutações de Wilson Bueno. O poeta e artista Francisco Mallmann se baseou em Bolero’s Bar, Mano, a Noite Está Velha e relatos sobre a vida do escritor para montar Pinheiros e Precipícios, com direção de Ricardo Nolasco.

A peça teve uma leitura em 2015 e foi apresentada oficialmente no Festival de Teatro de Curitiba do ano seguinte, com a participação de Claudete Pereira Jorge (1954-2016), em uma de suas últimas atuações. Mallmann não chegou a ter trocas literárias com Bueno antes de sua morte, mas o veterano tornou-se uma inspiração para seus trabalhos, seja em linguagem, ao pensar gênero ou na relação com a cidade. A lacuna da convivência, no entanto, instiga a aproximação. “Desejar saber é o que me aproxima da obra”, afirma.

Jussara acredita que os temas de Bueno — hibridez, gênero e linguagem — continuam presentes porque estão em crise, e têm seus discursos em constante atualização. “Avançamos muito, mas também vivemos um claro retrocesso. O conservadorismo saiu do armário com o progressismo”, pontua. Outro autor diretamente influenciado por Bueno é o amigo Douglas Diegues. Ele também adotou a hibridez em sua obra, sendo um filho da fronteira. Quando começou a escrever, se perguntava como escrever portunhol sem copiar Mar Paraguayo — então nasceu o "portunhol selvagem", por onde segue sua produção.

Para os que pegaram o bonde andando, caso de Francisco, há um duplo desafio: tomar Wilson Bueno como contemporâneo, em sua radicalidade, sem responsabilizá-lo anacronicamente por demandas atuais, como as discussões sobre identidade de gênero, por exemplo. “Sei o que me chega a partir da obra, os ruídos e imagens não normativas, mas não sei como ele articulava isso enquanto vivência. Que tipo de projeção eu faço sobre essa figura? É muito delicado”, pondera.

bueninho
Vilma Slomp

 

Mano, a Noite Está Velha (2011), é um acerto de contas com a família, escrito após a morte da mãe, em 2007, segundo relato do analista que o atendeu por duas décadas. Numa narrativa confessional dirigida ao irmão, que poderia ser do próprio Bueno ao irmão Nilson, também falecido, o personagem retoma a infância e o afastamento condizente ao crescimento dos dois, com mágoas e interditos do ambiente doméstico. Seu pai morreu em fevereiro de 2010, meses antes de sua própria morte.

O evento afetou não apenas os leitores, escritores e pessoas próximas, mas particularmente pessoas LGBTQIA+. A tragicidade tende a marcá-lo como um escritor maldito, mesmo que não seja condizente com sua biografia e produção. Esteve mais para um enfant terrible.

 

Bolero curitibano

 

Guilherme Gontijo Flores, então estudante de Letras da Universidade Estadual do Espírito Santo, ficou curioso ao esbarrar em Amar-te a Ti Nem Sei Se Com Carícias (2004) em um saldão das Loja Americanas. Ele não havia sido apresentado ao autor em aulas, e o livro seria finalista do Jabuti em 2005. “A linguagem de Mar Paraguayo não tem nada a ver com Meu Tio Roseno, a Cavalo. Se comparado a Amar-te a Ti, tem outro salto de linguagem. Assim como com os poemas e as crônicas”, aponta o escritor e pesquisador.

Para Gontijo, a recusa de uma assinatura ou do desenvolvimento de um único estilo como uma marca registrada é a maior potência de Wilson Bueno. Meu Tio Roseno (2000) dialoga com Guimarães Rosa, enquanto Amar-te a Ti (2004) referencia Machado de Assis. Em A Copista de Kafka (2007), a narradora convive com o autor alemão. Em suas experimentações, tem destaque ainda os bestiários Manual de Zoofilia (1992), Jardim Zoológico (1999) e Cachorros do Céu (2005), com excertos poéticos sobre diferentes espécies de animais, e as obras com tankas e haicais Pequeno Tratado de Brinquedos (1996) e Pincel de Kyoto (2007).

Há também ao menos três conjuntos inéditos em poesia: 35 Poemas de Amor, 13 (sonetos eróticos) e mais de 50 tankas sob o título Casa do Poeta. Para o público infantil, escreveu Os Chuvosos (1999) e O Gato Peludo e o Rato de Sobretudo (2009). Novêlas Marafas (2018) faz uma ligação com Mar Paraguayo, acrescentando ao elucidário, como nomeou seus glossários, termos em árabe. Em 2007, junto à reedição aumentada das crônicas ficcionais sobre Curitiba de Bolero’s Bar, a Travessa dos Editores publicou Diário Vagau, com relatos mais afinados com a realidade, em suas palavras.

Para Adalberto Müller, Bueno é um vanguardista, mas difere de Leminski, dos irmãos Campos ou de James Joyce. “Mar Paraguayo fala de um indígena que vai se formando agora, preocupado com sua ancestralidade, mas que se coloca diante de uma sociedade contemporânea e questiona, por exemplo, sua sexualidade. Hoje temos lideranças indígenas, como a ministra Sônia Guajajara. Há uma mudança de paradigma e ele estava atento a isso”, afirma o pesquisador.

Não por acaso, diversos trabalhos acadêmicos continuam a surgir investigando diferentes facetas dessa vasta produção — existem pesquisas a partir dos bestiários, das questões fronteiriças, pela perspectiva de gênero e das relações com a cosmogonia indígena. “Tudo o que Wilson Bueno escreveu é contemporâneo”, completa Manfredini.