ESPECIAL | Marafona soy yo 28/02/2023 - 13:50

Novas leituras da obra de Bueno levantam debates sobre questões identitárias e de linguagem

Hiago Rizzi

 

Há alguns anos, os alunos da disciplina de Teoria Literária da Universidade Federal Fluminense (UFF) leem, regularmente, Mar Paraguayo — os debates partem tanto da ancestralidade indígena guarani quanto das questões de gênero, na língua e identidade. O professor, Adalberto Müller, inclusive percebe que os jovens veem a marafona, protagonista e narradora do livro, como uma travesti ou uma mulher trans.

Quando Mar Paraguayo foi lançado, há 30 anos, a identidade de gênero e a sexualidade já tinham precedentes literários contemporâneos nacionais, como Stella Manhattan (1985), de Silviano Santiago, e toda a obra de João Silvério Trevisan e Cassandra Rios, por exemplo. Wilson, entretanto, “é de uma geração que não sai do armário ostensivamente, na literatura, especialmente em Curitiba”, nota Müller.

O entrave surge a partir das leituras que sugerem um hibridismo em diferentes instâncias de Mar Paraguayo: as fronteiras geográficas, culturais, de gêneros literários e de linguagem e — por que não? — de identidade de gênero da personagem. A pesquisadora Nádia Florentino, em tese defendida para o doutoramento em Letras na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em 2016, conclui que este hibridismo “não é inédito no sentido dos caminhos que foram escolhidos para a construção desse romance, mas reflete uma tendência e estabelece diálogos significativos com outras obras, em uma constante ruptura e re-leitura da tradição literária e cultural”.

Uma das entradas para essa linha de raciocínio é o uso do termo cuñambatará, descrito por Bueno em seu elucidário como “prostituta; mulher de vida desregrada”. Para o poeta e etnógrafo Gregorio Gómez Centurión, consultado por Adalberto Müller, a partir das fontes de pesquisa de Wilson para o espanhol e guarani, cuñambatará equivale a “indefinida, indecisa, ou de caráter ambivalente” e, ainda, uma “ave multicolor”.

“Mas acho que ele usa a marafona como subterfúgio para colocar questões homoafetivas, sobretudo o olhar dela para o jovem musculoso que anda pelas praias de Guaratuba, e por quem desenvolve uma espécie de viagem a um universo ao mesmo tempo da sexualidade e arcaico, ancestral”, pontua Müller. Segundo ele, o olhar para o corpo masculino, as cenas de violência e sequências com teor sexual encarnadas pela prostituta fogem da normatividade heterossexual e cisgênera indiciando uma figura queer, a partir da teoria da filósofa Judith Butler — além de um binarismo feminino / masculino.

Em entrevista ao jornal Rascunho, Wilson disse que a personagem é inspirada em todas as marafonas argentinas que conheceu em bordéis do Rio de Janeiro e Curitiba. “Antes de escrever esse livro, pensei: ‘Vou criar uma personagem bem escrachada, que não tenha nada a ver com essa literatura empolada, de terno e gravata, machista, que se impõe com um viés de fundo autoritário’”, relatou. O que não é uma resposta definitiva. “A grande genialidade do Wilson Bueno como escritor é exatamente deixar isso na sugestão. Não é algo inequívoco, garantido — e não cabe a nós decidir. Assim como não cabe a nós decidir se Capitu traiu Bentinho. É essa tensão, essa indecidibilidade, que fascina”, afirma Guilherme Gontijo Flores.

A marafona de Mar Paraguayo tem um paralelo com a figura de História de Joia (2019), de Gontijo. Porém, ao contrário do monólogo de Wilson, Joia é vista exteriormente, descrita na maior parte do tempo por pessoas que não se interessam por ela. “A marafona é uma dessas personagens fascinantes porque é ambígua, como todo ser humano é ambíguo”, conclui. A inadequação à norma e a instabilidade das personagens é o que aproxima as duas obras.

Em 2016, o pesquisador norte-americano Christopher Larkosh, da Universidade de Dartmouth, em Massachusetts, teve um artigo publicado na revista Transgender Studies Quarterly com uma parte traduzida de Mar Paraguayo. Além do cruzamento entre a autoria masculina e o protagonismo presumivelmente feminino ou transgênero, ele investiga como o texto atravessa as fronteiras de países latino-americanos que viveram ditaduras num mesmo período e faz ligações com o assassinato de Bueno, um latrocínio.

Depois da marafona, não há personagens que tensionam a identidade de gênero em sua obra, reforçando o distanciamento de Wilson do desejo de perpetuar uma estética atemporal. A leitura é de Jussara Salazar, que vai além: "Marafona pode ser um homem, o que é muito mais visceral”. Na condição de mulher, Jussara também tem a impressão de que a personagem é vítima de outra forma de violência, como a doméstica, o que poderia ser investigado nas falas da marafona frente a outras leituras sobre o tema.

“Eu vejo coisas dentro do Mar Paraguayo que Wilson dizia na vida. Muitas saídas, ganchos, nós, laços, questões que ele amarra dentro da própria lógica em momentos que não estava falando do livro. Marafona é uma persona, um conceito, uma atitude. Como ele faz com a língua, faz com o gênero. A leitura do livro, somada às construções híbridas de linguagem, narrativas e gêneros, me faz crer que precisamos começar a ler o Mar Paraguayo de novo”, completa.