ESPECIAL | Fantástica ruptura 31/05/2022 - 12:39

Especialistas discutem o bom momento editorial experimentado por autoras latino-americanas contemporâneas — um movimento comparado por muitos com o boom do realismo mágico dos anos 1960 e 70

Luiz Felipe Cunha

 

“Eu me reclinei na grama entre árvores caídas e o sol que aquece a palma da minha mão me deu a impressão de ter uma faca com a qual ia me esvair em sangue com um corte ágil na jugular. Ao fundo, no cenário de uma casa entre decadente e familiar, podia sentir as vozes do meu filho e do meu marido. Os dois nus. (...) Como é que eu, uma mulher fraca e malsã que sonha com uma faca na mão, era mãe e esposa desses dois indivíduos? O que fazer? Escondi o corpo afundando na terra.”

Assim começa o romance Morra, Amor (Instante, 2019), da argentina Ariana Harwicz. E já nessas primeiras linhas é possível perceber alguns aspectos recorrentes na obra da autora, como a violência, o desprezo pela ideia de maternidade e família e um clima de loucura iminente. Conduzidas pela crueza das palavras, e com um pezinho no tradicional realismo mágico — em que situações estranhas são tratadas com normalidade —, essas características também estão presentes em livros de outras escritoras da América do Sul, como a argentina Mariana Enriquez, a colombiana Pilar Quintana e a chilena Lina Meruane, entre outras.

Coincidência ou não, alguns críticos enxergam aí o surgimento de um possível movimento literário nomeado “novo gótico latino-americano” ou literatura de los hijos, por se tratar de autoras que presenciaram, na infância, as mazelas das ditaduras em seus países e ressignificaram, em suas produções, a violência dessa época. Similar ao boom latino-americano dos anos 1960 e 1970, encabeçado por nomes como Gabriel Garcia Márquez e Júlio Cortázar.

No entanto, alguns especialistas e as próprias autoras parecem discordar dessa associação com os nomes clássicos da produção latino-americana de 50, 60 anos atrás. “Gosto desse tipo de narrativa, mas simplesmente não é a que me interessa, porque me parece que hoje, de onde estou, o fantástico pode ser narrado de outra maneira, e não creio estar marcada pela tradição local a não ser por alguns aspectos”, disse Mariana Enriquez à revista Literartes, em 2021. Ela é autora de, entre outros livros, A Nossa Parte da Noite (Intrínseca, 2019), que conta a história de um homem e seu filho em uma viagem de carro da Argentina até as Cataratas do Iguaçu, durante a ditadura. A narrativa é repleta de lendas, espíritos e magia — elementos que a autora utiliza para mostrar o lado mais sombrio daquele período.

 

boom
Gabriel Garcia Márquez e Mario Vargas Llosa, representantes do boom latino-americano, dos anos 60 e 70

 

Uma das diferenças entre esse bom momento da literatura latino-americana e o primeiro boom está no fato de que as novas autoras não têm, necessariamente, um compromisso estético-literário: mesmo os temas convergindo, cada autora trabalha a linguagem de modo diferente uma da outra. “Toda literatura é feita de pontos de divergência, daí seu caráter autoral. Ainda que existam temas afins, os tratamentos dados a eles são absolutamente singulares”, diz Mariana Sanchez, jornalista e tradutora especialista em literatura latino-americana contemporânea. “Há autoras que seguem uma linha mais realista, outras mais alegóricas, experimentais, com um trabalho radical de linguagem. Na verdade, creio que os únicos pontos de convergência entre estas autoras são o fato de serem mulheres e de escreverem na América Latina.”

A editora Laura Del Rey acredita que há um novo cenário literário, mas é reticente ao dizer que existe um movimento estético organizado. “Essa tentativa de encaixar diversas autoras contemporâneas sob um mesmo rótulo acaba achatando escritas bastante heterogêneas entre si, ao mesmo tempo que ignora a trajetória de tantas escritoras brilhantes ativas na década de 1960 e 70”, diz. “Cabe comentar que o primeiro boom também tinha a ver com uma movimentação de mercado, principalmente no sentido de vender para a Europa autores latino-americanos e um certo ‘exotismo’ daqui. O que me parece estar em jogo agora é uma ascensão do interesse geral por obras de autoria de mulheres”, completa.

Laura está por trás da Incompleta, editora que tem em seu catálogo o fantástico e macabro Terra Fresca da Sua Tumba, de Giovanna Rivero, primeira publicação da autora boliviana no Brasil. A empresa também produz a revista Puñado, que traz contos, ensaios e entrevistas com escritoras latino-americanas e caribenhas contemporâneas, como a chilena Andrea Jeftanovic, autora de Não Aceite Caramelos de Estranhos (Mundaréu, 2020).

 

Questões femininas

O fato é que, de 2015 até os dias de hoje, as prateleiras nas livrarias foram tomadas por essas escritoras sulamericanas e um dos motivos para o grande sucesso pode estar ligado ao feminismo, capaz até de resgatar autoras esquecidas, como aponta a salvadorenha Christy Najarro Guzmán, doutora em Literatura pela UFSC. “Essa visibilidade de autoras e a possibilidade de que elas ocupem os lugares de enunciação permitiu um retorno às escritoras dos anos 1940, 50, e 60”, diz. “Tudo isso, me parece, está atravessado pelos debates que o feminismo tem encampado tanto no campo político como no artístisco-literário”, completa, salientando que, embora muitas tratem de questões femininas, nem todas as escritoras vão reivindicar o seu lugar numa militância feminista.

O feminismo também influencia a literatura produzida por mulheres no Brasil, mas talvez de forma mais assumidamente combativa. Christy acredita que a escrita produzida por mulheres brasileiras compartilha características com as publicações de suas pares hispano-americanas. Um exemplo seria o movimento Slam das Minas, marcado pela realização de encontros com “batalhas de poesia autoral” e por carregar uma voz poética política que problematiza o lugar da mulher. “A gente não pode negar que a produção literária brasileira hoje está marcada por uma presença muito forte das mulheres e por um discurso combativo. Não apenas a partir de uma militância assumida, mas também a partir de uma linguagem que presentifica a ruptura, a fragmentação e a fragilidade das identidades”, diz.

 

Outras latitudes

Escritoras argentinas, chilenas e mexicanas são as mais traduzidas no mercado editorial brasileiro. Mariana Sanchez atribui essa presença ao sistema editorial mais desenvolvido desses países e à atuação no Brasil de grandes grupos espanhóis como Santillana / Alfaguara e Anagrama. “Talvez um levantamento concreto diga que a Argentina publica até mais ficção do que o Brasil. Mas é fundamental que as editoras brasileiras realmente interessadas na literatura da região saiam de suas zonas de conforto, busquem autoras e autores de outras latitudes, mais periféricas, e ampliem seu radar de publicações”, afirma Sanchez.

No Brasil, algumas editoras se dedicam a trazer essas novas vozes, como a já citada Incompleta, a Relicário (com sua coleção Nos.Otras, que já publicou E Por Olhar Tudo, Nada Via, da mexicana Margo Glantz) e a Moinhos, que recuperou a autora argentina Sara Gallardo. A mais nova do segmento é a Peabiru, criada em janeiro deste ano. A casa editorial surgiu a partir de um inconformismo com os preços dos livros e de um entendimento de que é necessário estreitar os laços culturais entre o Brasil e a região. “Precisamos romper com colonialismos eurocêntricos que emperram nosso desenvolvimento social e compor uma identidade, como povo, que faça mais sentido para nós”, diz René Duarte, escritor e editor.

A editora acaba de lançar Cerco Animal, da colombiana Vanessa Londoño, que se divide em quatro capítulos narrados por personagens diferentes — como, por exemplo, uma mulher que teve as pernas cortadas por um motosserra, ou uma menina cuja língua foi arrancada para que ninguém saiba quem tirou sua virgindade. “É um livro que usa a violência contra os corpos não só como um sistema de explicação para a perda, mas também como uma forma de evocar a empatia e compreender a ausência, a morte, a injustiça e a brutalidade com que o poder procura administrar as existências, as dores e os desejos, hoje, na América Latina”, diz René.

Sobre o termo “novo gótico”, Duarte é categórico. Para ele, grande parte do êxito desse movimento está justamente no fato de que ele faz sentido no contexto violento em que vivemos. “Infelizmente, é impossível falar da América Latina sem falar de sombras, de morte”, afirma o editor.