ESPECIAL | Cartas de um não lugar 29/09/2023 - 12:29

A septuagenária e outsider Ledusha se consagra como referência para toda uma geração de poetas pela sua ousadia e experimentação 

 

Por Francisco Camolezi

 

 

“calada descobri como é ser nada

despida estar à toa em minha ilha

vestida o banho em cascata de calha

o gosto do sublime ao ficar muda

 

tarde descobri como sou tímida”

 

 

A lobiswoman brasileira nasceu em Assis, interior de São Paulo, de um mau humor peculiar. Era 12 de julho de 1953 e seu nome é Ledusha, registrada Leda Beatriz Abreu Spinardi. Na minibiografia da primeira edição do seu segundo livro de poesias, Finesse & Fissura (Editora Brasiliense, 1984), “tivesse nascido no Rio de Janeiro, chegaria ao mundo deleitada”. Entre trevas, brinca. Sua poesia é atravessada pela síntese do riso com a melancolia, o desbunde carioca — morou no Rio de Janeiro por nove anos durante as décadas de 1970 e 1980, onde publicou seu primeiro livro, de forma independente, Risco no Disco (1981) — e pela sua personalidade-enigma, ora expansiva, ora tímida, mas sempre divertida. 

Em seus lançamentos recentes, como Lua na Jaula (2018), a ousadia persiste. O extra, aqui, é a passagem do tempo. A poeta dá risada e tira sarro do processo que é assistir seu corpo envelhecer, cravando não só a influência, mas sua presença na poesia contemporânea. Ledusha se assustava com a possibilidade de que seus leitores/as não a entendessem, mas encontrou, no entanto, uma geração de poetas sedentos/as que a devoram como quem come pão e não clama a Deus. 

O que acontece é que Ledusha gosta de se retirar. É bissexta, um tanto reclusa. Conserva, desde criança, uma sensação de despertencimento. Por mais que mantenha relações e semelhanças, frequentemente diz não fazer parte da chamada Geração Mimeógrafo, que contou com nomes como Ana Cristina César e Chacal. A crítica discorda. Para Aline Rocha, Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o sair de cena é uma poética que faz coro em Ledusha. Estela Rosa, poeta, tradutora, curadora da plataforma Mulheres que Escrevem, amiga e leitora ávida de Ledusha, diz que esse afastamento é justificado pela personalidade da poeta. Estela acredita que ela “não estava interessada em discutir a literatura com L maiúsculo, mas em curtir o momento e as pessoas”. Agarrava-se muito mais ao fazer.

Para Aline, não há uma unidade que faça da Geração Mimeógrafo a Geração Mimeógrafo. Existem, no entanto, traços que os aproximam em torno daquilo que se convém chamar de poesia marginal, como a publicação independente e o desbunde. Roberto Nicolato, poeta, romancista e doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), acrescenta a esses traços a urbanidade. A poesia marginal é altamente ligada à cidade, aos vínculos que esses poetas mantinham entre si e aos espaços comuns pelos quais circulavam.

De acordo com Aline, Ledusha detém uma voz poética que, corajosamente, escancara sua própria fragilidade — vinculada à experiência na cidade —, a partir de cenários que fazem parte do cotidiano. A descrição das vivências materiais nos grandes centros urbanos ressoa tanto com a Geração Mimeógrafo como com a poesia contemporânea. Além disso, é justamente no contexto da poesia marginal que se dá a migração de Ledusha de Assis para o Rio de Janeiro, seguida pelas suas primeiras publicações.   

Apesar de sua presença física e semelhança estética com demais poetas da sua geração, as hipóteses para esse distanciamento de Ledusha são várias. As mais contundentes dizem respeito à persona misteriosa da poeta. Vejamos, por exemplo, sua presença nas redes sociais. O Instagram de Ledusha é quase uma biblioteca. Na contramão do que exige o mercado, posta mais os versos de outros poetas que gosta e cachorros para adoção do que vende o próprio peixe. Uma outra possibilidade é a de que os seus vínculos mais intensos se deram não exatamente com outros nomes da poesia marginal, mas com sujeitos ligados à música e à prosa, como Cazuza e Caio Fernando Abreu. 

Para Estela Rosa, Ledusha faz parte de uma geração de poetas que autoriza outras pessoas a escrever. Não é preciso cerimônia. Brincam com a palavra e levam o humor a sério. É isso que faz de Ledusha uma camaleoa, camuflada, consciente e inconscientemente, nos versos de poetas contemporâneos. 

 

O Disco no Risco

 

Foi por volta de 2013 que Estela descobriu os poemas de Ledusha. Na época, percebia que grande parte das mulheres lidas estavam mortas. Por isso, decidiu travar uma busca intensa por poetas contemporâneas, e acabou mergulhando em Ledusha. Gostava da piada e da capacidade da poeta de mesclar o riso e a melancolia e impressionou-se com o “prefiro toddy ao tédio”, estampada nas camisas de Cazuza. Na fome de poesia, a frustração se deu pela ausência da reedição dos seus livros, Risco no Disco (1981) e Finesse & Fissura (1984), que, logicamente esgotados, não seriam encontrados em qualquer livraria.                    

No final de 2016, Estela publicou dois poemas na terceira edição da revista Grampo Canoa, "um caroço de abóbora japonesa" e "chá de camomila". A revista, editada pela Luna Parque, foi lançada em dezembro de 2016, em São Paulo, no Quinto Café, coincidentemente no mesmo dia da reedição de Risco no Disco, um marco na sobrevida que o trabalho de Ledusha ganhou nos últimos anos. Por algumas horas, Estela e Ledusha dividiram os mesmos metros quadrados. “Parecia que eu estava vendo a Xuxa”, disse. 

 

 

Cazuza
Foto: Reprodução

 

Era a primeira vez que Estela, vinda de uma cidade pequena do interior do Rio de Janeiro, recitava em público. Quando chegou no café, Ledusha já estava lá, assinando livros e bebendo Prosecco. Passou a tarde matutando estratégias para interagir com a poeta, e foi só no final do evento, nos últimos minutos de portas abertas, que tomou coragem: levou sua cópia para Ledusha assinar. “Qual seu nome?”, “Ah, é Estela”. Neste momento, o humor de Ledusha, que é sempre enigma, ocupava um lugar indecifrável entre a eletricidade e a timidez. Na assinatura, ao invés de Estela, escreveu “Estala Rosa”. “Ai meu deus! Olha aí, tá vendo? A velha louca e bêbada errou seu nome!”, conta. Para Estela, não poderia ser melhor. Ledusha transformou seu nome em um verbo. E que verbo! “Estala Rosa, estalemos! Beijo, Ledusha”. 

É a partir desse episódio que nasce o vínculo entre ambas. Mantiveram contato pelas redes sociais, o que fez com que Estela contasse sempre com a presença da poeta que, ao lado de Adélia Prado, formam o seu panteão poético. Anos mais tarde, em 2023, no contexto dos 70 anos de Ledusha, essa relação deu forma ao álbum Disco no Risco, que desponta como uma pérola no grande oceano que é a música brasileira. 

 

Em 2021, a fim de homenagear Ledusha em seu aniversário, Estela publicou no Instagram alguns de seus poemas. Dimitri BR, que é músico, escritor e performer, viu a postagem e decidiu musicar “moço bonito”, dedicado a Cazuza e publicado pela primeira vez em Finesse & Fissura. A versão de Dimitri chegou até Gustavo Galo, cantor e compositor conhecido de Ledusha, que também se interessou em compor a partir dos seus poemas. “Imagina? A gente faria o Disco no Risco!”. O projeto, que se deu por meio de uma parceria com o estúdio Pequeno Imprevisto e conta com a participação de Juliana Perdigão, Bianca Zampier, Natasha Felix, Júlia Rocha, Peri Pane, Bruna Lucchesi, Mariano Marovatto e Luca Angel, deslanchou, porém, era pandemia, e as dificuldades impostas pelo isolamento físico para a produção cultural são mais que conhecidas. Tentaram lançar o disco em 2022, sem sucesso, e foi só em 2023, quando se deram conta do aniversário de 70 anos de Ledusha, que o álbum foi publicado. 

A poeta acompanhou toda a produção de Disco no Risco. No começo, tinha medo do resultado final. Aos domingos, escutava faixa por faixa, quando Gustavo Galo e sua mãe, Leninha, levavam as produções para que Ledusha palpitasse. Ao final, estava encantada. Quase não acreditava no que estava acontecendo.

O lançamento aconteceu na Megafauna, charmosa livraria no térreo do icônico Copan, em São Paulo. A princípio, dada sua dificuldade com a esfera pública, Ledusha não queria ir. No entanto, de acordo com Estela, é visível como, durante o evento, a poeta transitou do desconforto ao êxtase. “Eu tinha muito medo de não gostar, e agora tô me sentindo elétrica”, teria dito Ledusha. 

Passado o lançamento, foram a um bar. Conversaram sobre a forma que Ledusha, mesmo disfarçada, como uma camaleoa ou como um rio que corre debaixo do asfalto canalizado pela memória, dá as cartas para a escrita de toda uma geração bem humorada de poetas contemporâneos.