ESPECIAL CAPA | Fantasmas à espreita 23/10/2025 - 14:41
Lendas urbanas são motor para a literatura de terror; nas sombras de Curitiba o real se mistura com o imaginário criando uma terceira opção: o assustador
Por Bianca Weiss
O terror na literatura é um gênero que pode vir em variados formatos, seja num plano mais psicológico, utilizando da própria natureza humana como motor, ou com personagens fantásticos e figuras mitológicas. Lobisomens, fantasmas, assombrações de todo tipo e até mesmo os vampiros são alguns exemplos de seres marcantes nessas narrativas, que causam tensão constante, medo e aquele pulo que a gente dá quando acha que viu vulto em uma sombra escura, numa noite qualquer.
Lendas urbanas: um motor para a literatura de terror
A origem do gênero "terror" remonta as histórias folclóricas e religiosas, lendas passadas oralmente por famílias e povoados, mistérios aparentemente sem solução que foram ganhando uma roupagem quase mística conforme foram sendo recontados. As histórias sobre monstros e demônios sempre foram utilizadas como ferramentas para diferir o certo do errado, tanto nas civilizações mais antigas como nos próprios contextos vividos pelos antepassados que hoje moram nas cidades — aqueles avós que contavam inúmeras histórias de lobisomens para afastar as crianças da mata durante a noite.
Carlos Panhoca, editor da revista Pé-de-Cabra, atua com quadrinhos independentes e conta que já trabalhou no Arquivo Histórico de Araucária, trazendo coisas que ocorriam no trabalho de resgate da memória oral. "A gente acaba escutando muita coisa de lenda. Você está escutando ali a história da imigração de alguém, daí aparece um lobisomem. Aí você se dá uma perguntada extra, não é todo dia que você tem um lobisomem no meio da história", comenta.
Essas lendas e contos de fada, intrincados nas histórias dos mais antigos, propiciam um ambiente fértil para que a imaginação se solte para todos os lados, inclusive dando vazão ao grotesco, aos pensamentos insólitos e a facetas do ser humano que são explicitadas pelos monstros e figuras mitológicas das histórias de terror. Sendo um gênero que busca causar medo, nada melhor do que o imaginário popular ou o próprio ser humano para dar início a uma boa história.
"As lendas servem de inspiração para escritores curitibanos", comenta Luciana do Rocio Mallon, autora de livros sobre lendas paranaenses. Ela ainda traz o exemplo de Dalton Trevisan, um dos escritores símbolos da cidade, apelidado de Vampiro por conta de seu livro O Vampiro de Curitiba (1965), se tornando ele mesmo uma própria lenda curitibana, também por sua postura reservada e aura de mistério. "Essa inspiração das lendas urbanas é de extrema importância para a cultura do estado e da cidade. Uma comunidade também é feita de tradições, costumes, lendas e pessoas. Além disso, é uma forma de mostrar parte dessa cultura para o resto do Brasil e do mundo" ressalta a autora.
Uma Curitiba com fantasmas à espreita
A relação de Curtiba com o gênero envolve não só pessoas e histórias popularmente difundidas, mas também abarca os locais. A jornalista Luciana Penante é idealizadora do tour Curitiba Sombria, que passa por locais, muitos deles históricos, relacionados com lendas urbanas e aterrorizantes, e comenta um pouco sobre a relação do terror com a cidade. "O nome do tour é uma brincadeira com o clima e a temática, mas isso também influencia a produção cultural local", afirma.
Ela também trouxe na conversa referências a Dalton Trevisan como um grande incentivador dessa onda de produções de terror que a cidade vive e até mesmo um potencializador de seu próprio interesse no gênero quando era mais nova. "Grande parte da nossa produção cultural se entrelaça com um imaginário do terror, do mistério", explica.
Ao ser perguntado sobre a cidade e o gênero, Fábio Vermelho, quadrinista que tem o terror como um de seus temas, comenta: "De certa forma acho propício à melancolia, o que pode sugerir uma temática mais sombria, e consequentemente, ir para o terror". Seu interesse em mangás — que o lançou no mundo dos quadrinhos junto ao grande volume de filmes de terror gore e explícitos que foram lançados nos anos 2000 — o aproximou do gênero, e atualmente aplica em suas obras.
Um dos braços do projeto Curitiba Sombria é o clube do livro, que surgiu de um interesse dos próprios participantes de outras edições do tour. Em um grupo feito para manter o contato entre os interessados em terror que participaram do tour, a ideia de expandir o convívio para além de sessões de cinema conjuntas que começaram a organizar veio por meio da literatura.
Em entrevista ao Cândido, Luciana conta que as indicações foram surgindo entre os participantes. Um exemplo é o livro Uma moeda ou um beijo, de Leonardo Melo e Andre Caliman, uma homenagem à figura de Gilda, travesti que se tornou inesquecível para o povo curitibano. "Eu comentei sobre o livro quando falo sobre a Gilda no tour e o Leonardo estava em uma sessão. Depois tivemos a ideia de ser uma de nossas próximas leituras com o clube do livro", conta.
O terror e o mistério em Curitiba vão além do gênero, adentrando a memória da cidade com suas lendas que inspiram histórias novas e reacendem chamas antigas. A Loira Fantasma, Maria Bueno, Pirata Zulmiro e muitos outros não só trazem uma ótica assustadora para histórias, mas também mantém viva parte da cultura e tradição oral que vem se perdendo no mundo globalizado.
A cena independente
O terror curitibano encontra muito fôlego no meio independente, seja no cinema, nos livros ou nos quadrinhos. As histórias em quadrinhos têm se popularizado por anos na cidade, com um crescimento claro que pode ser visto até mesmo pela proporção da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, com edições cada vez maiores. A Editora Pé de Cabra, de Carlos Panhoca, existe desde 2017 e traz temáticas variadas dentro do humor, mas também com trabalhos no gênero terror. "Quando eu passo por esses eventos, como a Bienal de Quadrinhos, ali tinha um stand só de quadrinistas de Curitiba, e eu já não conhecia a metade deles", comenta Panhoca sobre a expansão da cena na cidade.
"Acredito que não devemos depender de editoras ou incentivos para fazer arte e quadrinhos", opina Fábio Vermelho. "Acho que o meio de quadrinhos é mais independente, mas não vejo isso de forma ruim, muito pelo contrário. Apesar disso, gosto também que aqui há locais de encontro e de troca, como a Itiban e a Gibiteca, esses sim são espaços importantes e que devemos valorizar", pontua.
"Como sou um cara que veio da biblioteconomia, tem algumas diretrizes em que duas delas dizem: ‘para cada livro o seu público, para cada público o seu livro’. Eu não acredito que qualquer manifestação artística, cultural, vai ser única e que só você se interesse naquilo. Alguém vai se interessar. Por mais esquisita que seja, por mais extrema ou genérica", diz Carlos Panhoca.
O terror pode não falar com todos ou ser olhado de lado em seu valor artístico em muitos momentos, mas a produção de arte dentro do gênero ferve em Curitiba. Ao final daquele dia cinza e chuvoso, todos gostamos de procurar os vampiros escondidos nas sombras e as loiras fantasmas em táxis — quem sabe agora estejam também em ubers.
Bianca Weiss nasceu em Arapongas, no norte do Paraná. Formou-se em Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e colabora com o jornal Cândido. Publicou o conto "Paranoias de Papel" na coletânea Todas as histórias monocromáticas que contamos (2024), organizada pelo Selo Editorial Coletivo Cine-Fórum.






