ENTREVISTA | Visita à literatura nikkei com Oscar Nakasato 23/10/2025 - 09:53

Por Isa Honório

 

Quando o navio Kasato-maru chegou a Santos (SP), em 1908, trazendo 781 japoneses em busca de trabalho nas lavouras, surgiu o possível primeiro poema do estilo haicai no Brasil. Shūhei Uetsuka, supervisor de imigração e sob o pseudônimo Hyōkotsu, escre­veu: "Navio de imigrantes que chega ao porto olhando para o alto, onde as quedas-d’água já não correm mais". Desde a saída da embarcação do Japão, 50 dias antes, a melancolia e a saudade já tomavam conta das lembranças – e da discreta produção literária – desses imigrantes, que sem saber, viam pela última vez o pôr do sol na Terra do Sol Nascente. 

Duas gerações depois, Oscar Nakasato, escritor vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Romance por seu livro de estreia Nihonjin (2011), imprime em suas narrativas os mesmos sentimentos de distância e ausência, tão comuns entre os nikkeis – japoneses que vivem em outros países e seus descendentes. Nascido em Maringá em 1963, Oscar também é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e neto de japoneses que vieram para o Brasil no início do século 20, período em que o país buscava mão de obra estrangeira para se adequar ao sistema produtivo pós-escravidão.

Nihonjin, relançado neste ano pela editora Fósforo, acompanha a saga de uma família nipo-brasileira através das memórias do avô, Hideo Inabata, que imigrou para trabalhar nas fazendas de café no interior de São Paulo. Quem conta a história é o seu neto, Noboru, que como muitos nikkeis, carrega o conflito entre suas identidades brasileira e japonesa. No último romance de Oscar, Ojichan (2024) – que significa "vovô" –  o autor explora os dilemas da velhice inseridos no contexto cultural nipo-brasileiro. A narrativa acompanha Satoshi, que encara com dificuldade a solidão trazida por sua aposentadoria e pela perda de memória de sua esposa, Kimiko. 

Com três romances publicados e ampla pesquisa acadêmica em Estudos Literários, o escritor trabalha em um novo livro, que foge da temática nikkei e da forma romance. No momento, também comemora a chegada nos cinemas da animação Eu e Meu Avô Nihonjin, baseado em seu livro de estreia. Em entrevista ao Cândido, Oscar Nakasato reflete sobre as contradições entre história e memória, as experiências diaspóricas dos nikkeis no Brasil, literatura japonesa e sobre a recepção de sua obra pelo público e mercado editorial.

 

Oscar Nakasato
Oscar Nakasato

 

A solidão e a saudade são temas recorrentes na sua obra. De onde vem essa inspiração? 

Tem a ver com o processo de imigração. Porque veja, os japoneses vieram para o  Brasil em uma condição diferente de outros imigrantes e com uma cultura muito diferente. Os italianos, alemães e outros povos que vieram para cá, eram europeus e cristãos em sua maioria, falavam línguas mais próximas. Cultura, comida e religião diferente: daí vem a dificuldade de se adaptar. A língua diferente também foi um grande empecilho. Meus avós viveram a maior parte da vida aqui no Brasil, e eu nunca conversei sobre isso com eles, mas com certeza, eles viveram muito tempo sem se sentirem pertencentes a esse país, e acho que isso é uma tragédia. Eles viviam isolados, na língua, cultura, música, costumes. 

Para os imigrantes, não voltar [para o Japão] foi muito duro, porque eles vieram com a missão de trabalhar por alguns anos e ganhar muito dinheiro, porque foi vendida essa ideia para eles. Houve um acordo entre os governos japonês e brasileiro e tinham propagandas no Japão do tipo "venham para o Brasil", e "o café é o ouro brasileiro". Aí vieram para cá e perceberam que não era bem assim. As condições de trabalho eram quase de escravidão. Não conseguiram juntar dinheiro e pouco a pouco foram percebendo que não voltariam. Essas foram as condições de meus quatro avós. Imagino que deve ter sido muito duro para eles. Os japoneses, que naquele período eram muito nacionalistas – um nacionalismo quase doentio que existia, porque eles se consideravam uma raça superior – e essa foi uma das dificuldades de se adaptar ao Brasil e de se relacionar com as outras etnias que existiam aqui. O sentimento de não pertencimento tem muito a ver com a solidão, com certeza.

 

Qual a consequência desse isolamento linguístico para a produção literária de nikkeis no Brasil? 

Na minha pesquisa para Doutorado, pesquisei personagens nikkeis da literatura brasileira. Encontrei pouquíssimos. Aí eu vi também que não havia escritores nikkei. Essas pesquisas eu fiz a partir do final da década de 90 e encontrei a primeira escritora da década de 70, Eico Susuki. Ou seja, os japoneses haviam chegado já faziam mais de 60 anos e só aí encontramos essa escritora. Haviam poucos, e ainda não conseguiam muita expressão no cenário da literatura brasileira. Acho que isso se deve ao fato da língua, principalmente. Demorou muito tem­po para que os descendentes começassem a utilizar a língua portuguesa efetivamente. 

 

Quando falamos em literatura nipo-brasileira, geralmente o que vem à mente é a unidade temática das narrativas. Existe também uma unidade de estilo e linguagem?

Podemos pensar em literatura nikkei de duas formas principalmente: a literatura nikkei produzida por nikkeis, e a literatura com a temática nikkei. No meu caso, a minha literatura é nikkei porque eu sou nikkei e a temática é nikkei também, mas há a literatura feita por nikkeis que a temática não é nikkei, e pode haver também a literatura com temática nikkei que não é escrita por nikkei. Mas eu percebo, entre os escritores nikkeis que eu conheço, que há muitos que escrevem sobre esta temática.

 

Quais são as maiores diferenças que você enxerga entre a literatura brasileira e japonesa? 

Eu gosto de ler literatura japonesa por minha ascendência étnica, mas também porque gosto muito. Ela é difícil de sintetizar, porque há uma diversidade de escritores com características diferentes. Mas, se eu pudesse usar um termo para falar sobre literatura japo­ne­sa, seria uma certa  "contenção narrativa". Neste mo­do de narrar deles não há exagero, não tem muitas fi­rulas, eles se contém, são econômicos. 

Embora haja alguns escritores que usam uma linguagem poética também, eu vejo muito nos escritores mais recentes uma linguagem mais direta, bastante incisiva. Acho que talvez isso defina um conjunto de escritores japoneses. A contenção nos dois aspectos: narrativa e linguagem. Na literatura japonesa, eu não vejo grandes livros de 500 páginas, como nos clássicos russos, alemães e até mesmo brasileiros. A maioria tem cento e poucas páginas. O Haruki Murakami, mais contemporâneo e que sempre está na lista no Nobel, tem alguns livros maiores, mas não são todos. 
E as pessoas costumam apontar na minha literatura uma certa "niponicidade", elas percebem alguma identidade na minha narrativa e no meu estilo, talvez um estilo mais antigo, do Yasunari Kawabata e Natsume Soseki, acho que não tanto dos escritores contemporâneos.

 

Como é a recepção da literatura nikkei no mercado editorial?

Para o bem e para o mal eu faço literatura nikkei. Para o mal porque há um certo estranhamento. Os títulos, como Nihonjin e Ojichan, de repente as pessoas que veem na livraria não se interessem em comprar o livro, veem e nem sabem o que é. Tem o seguinte também: minha agente está sempre tentando vender os meus romances na Europa, e algo que ela me disse é que eles querem do Brasil algo que eles pensem que é característico do nosso país, ou eles querem uma literatura que não tenha uma identidade étnica. E aí como eles vão entender a história de imigrantes japoneses e o drama vivido pelos nikkeis no Brasil? Muitos deles nem sabem que existe uma comunidade grande de nikkeis aqui. Então tem essa resistência. 

Agora, para o bem, pelo fato de eu ter ganhado o Jabuti e ser nikkei, todo mundo acaba me conhecendo. Todos conhecem o Oscar Nakasato por causa do nome diferente, da característica da minha obra. 

 

O interesse na sua obra vem primordialmente de descendentes de japoneses ou de não-nikkeis? 

No ano passado lancei Ojichan e este ano foi relançado Nihonjin, pela editora Fósforo, que faz um excelente trabalho de divulgação, e tem muita gente lendo. Pessoas que não tem nada a ver com a comunidade nikkei. Vários grupos de leitura que tem pelo Brasil entram em contato comigo e me mandam fotos, e não tem nenhum nikkei. Eu quero isso. É lógico que a minha literatura tem a identidade nikkei, mas é uma literatura universal, porque fala de dramas do ser humano. 

Mas os descendentes de japoneses têm uma atenção particular. Nikkeis que nunca haviam lido, leram Nihon­jin, e muitos compram o meu romance para dar de presente. Existe esse interesse particular, mas ele está sendo muito lido, felizmente, por toda a sociedade brasileira. 

 

E como é a resposta dos nikkeis a sua obra? 

Eu acho que os relatos de nikkeis são relacionados a esses aspectos da identidade mesmo, eles se identificam com as histórias de alguma forma, porque a história dos imigrantes japoneses tem muitos pontos de conexão. Mas também por alguma característica mínima, por alguma coisa que eu menciono no livro, como o missoshiro, um tipo de sopa, que a pessoa lê no meio da história e se identifica porque gosta de missoshiro; ou alguma música japonesa, que a pessoa se identifica porque ouvia com o avô em casa. Existem pontos de identificação, e quando eles vêm conversar comigo, ge­ralmente é sobre isso. 

Acho bacana que tenham tantas pessoas interessadas. Quero que tenham mais nikkeis que escrevem, e que falem sobre essa identidade – mas não necessariamente só sobre isso. Nós somos brasileiros. Antes de ser descendentes de japoneses, nós somos brasileiros. Somos brasileiros com origem japonesa, o que nos faz ter uma identidade diferente de outras ascendências étnicas, mas não esperem que a gente escreva só sobre isso. Por exemplo, o meu próximo livro não tem nada a ver com identidade nikkei

 

Recomende autores para conhecer a literatura nipônica. 

O primeiro escritor é Natsume Soseki, do período Meiji, quando o Japão passou por um processo de ocidentalização. Eu li quatro romances dele, e o que mais gos­to é E depois (1910). Outro autor de quem gosto é Yasunari Kawabata, ganhador do prêmio Nobel. Gosto de sua linguagem contida, de seu estilo impressionista. O meu ro­mance preferido de Kawabata é A casa das belas ador­mecidas (1961). Por fim, gosto muito do romance O silêncio (1966), de Shusaku Endo, que aborda a perseguição sofrida pelos cristãos no Japão do século 17. As reflexões feitas nesse romance sobre deus e o cristianismo já valem a leitura. Este ano li um romance contemporâneo intitulado A fábrica (2025), da escritora Hiroko Oyamada, que também achei interessante por abordar o trabalho na atualidade, refletindo sobre a alienação e despersonalização do trabalhador.

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