ENTREVISTA | Ronie Rodrigues 15/07/2024 - 11:17

Homem Fantasma

Por Juliana Sehn

 

Em seu último lançamento, o artista transdisciplinar e professor de língua francesa Ronie Rodrigues destruiu Harmada (1993), de João Gilberto Noll, para criar um novo livro. Lançado em junho pela Telaranha Edições, João (2024) é o resultado de um experimento do autor, no qual ele se desafiou a escrever uma obra pelo ato de apagar palavras com um corretivo e reorganizar páginas arrancadas. O desafio de não adicionar nenhuma palavra que já estivesse presente no título original provocou uma série de escolhas difíceis durante o processo. Ronie Rodrigues apagou “Gilberto Noll” e deixou “João” à deriva em uma nova narrativa, marcada pelo fantasma de Harmada, que assombra o novo romance com vestígios do erotismo, da violência e da ternura de Noll.

O livro será lançado em São Paulo no dia 2 de agosto.

 

De onde veio essa vontade de arrancar as páginas de um livro?

Surgiu no contexto de uma Especialização em Escritas Performáticas que eu fiz, que durou dois anos, e também de uma oficina de escrita com a artista Lia Duarte, que também escreve a quarta capa [do livro]. Ela tinha proposto um experimento em que a gente escrevesse um texto sem utilizar nenhuma palavra que não estivesse na própria página. Então, a gente poderia trabalhar com apagamento ou edição.

A princípio, eu comecei a trabalhar com caneta, mas não me interessei por esse efeito e fui para o corretivo. Fiz o experimento em duas ou três páginas e comecei a me interessar muito. Aí me propus, como procedimento, de arrancar e trabalhar todas as páginas, sem saber ainda se isso ia se tornar um livro ou se seria um poema ou se seriam cartas. Eu tinha como restrição que eu não apagaria a palavra “João”, porque na parte superior de cada página tinha o nome do João Gilberto Noll. Então, eu sempre apagava o “Gilberto Noll” e deixava o “João”, como se fosse realmente uma carta para o João, e eu compunha os textos a partir disso. Comecei a estudar sobre o palimpsesto, essa prática da Idade Média que consiste em raspar pergaminhos para reutilizar o papiro. Comecei a perceber que o João também acabava sendo uma forma de palimpsesto para mim.

 

Por que você escolheu Harmada de João Gilberto Noll como a sua “vítima”?

O Noll é um dos meus autores brasileiros preferidos. Mas acho que naquele momento não foi muito consciente. Eu não lembrava da história, tinha lido o Harmada há muitos anos. Eu não tinha muito um apreço pela fisicalidade do livro, nem gostava muito da edição. Gosto muito da escrita do Noll, mas eu não gostava nem um pouco daquela edição do livro, nem da capa. Então eu tive facilidade em arrancar as páginas daquele livro. Mas a escolha do Noll foi pela escrita dele. Então, ao mesmo tempo, foi desafiador. Porque, por ter um apreço pela escrita, era difícil de apagar. Foi por isso. Eu sabia que, de alguma maneira, a escrita dele me provocaria.

Uma das coisas que me atraem no Noll, e que acho que tem no João, é um erotismo. Acho que o erotismo atravessa as páginas. E tem algo que é de uma violência. Tem violência e tem ternura. Então, tem um vestígio dessa obra original e do projeto do Noll de escrita, que é violência, ternura, e algo das páginas que vão se atravessando, quase como se fosse uma deriva. Os personagens vão caminhando para algum lugar, mas a gente não sabe direito para onde. E tem quase uma ideia de fuga. Acho que essas palavras “fuga”, “violência”, “erotismo” e “ternura” de alguma maneira estão no João.

 

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Capa da primeira edição de Harmada (Companhia das Letras, 1993)

 

Como foi o processo de “destruir” um livro de um autor que você gosta?

Assim, foram quase dois anos. Foi um ano e meio até acabar todas as páginas do livro. Mais meio ano pra fazer esse processo de montagem, de entender que se tratava de um romance. E tive colaboração de outras pessoas. Mas o que eu ia percebendo conforme eu ia fazendo, é que o meu desafio era tentar comunicar alguma coisa que estava me movendo, que estava me causando desejo de comunicar dentro daquelas páginas. Eu ia percebendo que algumas coisas que estavam acontecendo na minha vida, que eu fui atravessando — inclusive, um processo de separação muito difícil que eu vivi durante o projeto —, apareceram dentro do livro. Então, de alguma maneira, eu consegui fazer uma elaboração ou uma sublimação de um processo de separação através das palavras do Noll e desse apagamento. Tem um personagem específico que aparece que tem até o próprio nome dessa pessoa com quem eu me relacionei. Então, tinha uma coisa meio louca assim, quase mística, durante o processo. E tem essa pergunta, né? Que foi realmente como eu terminei essa relação, com uma pergunta: Quem é essa pessoa? E essa pergunta aparece no livro: Quem é essa pessoa? Nesses quase dois anos, eu brinco que esse João, pra mim, é um homem fantasma, que me acompanhou e ainda me acompanha.

 

Você tinha ideia do que você queria que o livro se tornasse no fim do processo?

Eu tinha a ideia do que não gostaria que ele se tornasse ou como eu não gostaria que fosse o processo. Ele se construiu muito em colaboração, em conversas com os editores, a Bárbara [Tanaka], o Guilherme [Conde Moura Pereira] e com a Maria Alice [Sá], que assina a capa e projeto gráfico. Teve um diálogo que durou um pouco mais de um ano, principalmente com a Bárbara e com o Guilherme. Eles foram muito sensíveis com o material original. Nós fomos, juntos, entendendo o que seria esse livro. Em princípio, a gente pensava que seria uma caixa, depois a gente imaginou que ele estaria dentro de um “falso livro”. Começamos a pensar sobre as cores, até que a gente entendeu que cada página seria uma fotografia, porque escanear as páginas arrancadas não traria a mesma qualidade da imagem, das marcas do corretivo, dos traços da página rasgada. A fotografia permitiu mostrar as diferenças entre as páginas. Então, acho que eu imaginava mais ou menos como ele seria, só que isso se modificou graças a esse diálogo com os editores.

 

E o que você não gostaria que ele se tornasse?

Não gostaria que João se tornasse poemas ou fragmentos postais. Mas, acima de tudo, estive aberto para que o próprio processo do trabalho revelasse o que ele gostaria de ser. Ou seja: não gostaria que meu desejo se sobrepusesse ao desejo do processo.

 

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Capa de João (Telaranha, 2024)

 

Qual a relação do livro com o “palimpsesto” que você mencionou?

Acho que foi a Raïssa de Góes — uma pessoa muito importante, uma das professoras com quem eu estudei, artista visual e escritora carioca — a primeira pessoa a falar comigo sobre palimpsesto, quando viu uma parte do processo do João.

O que me interessou no palimpsesto é a ideia de um texto que é totalmente raspado, às vezes ainda ficavam traços do primeiro texto, mas o interesse do raspar é realmente se aproveitar para uma outra escrita.

Pelo contrário, no João, para mim, a ideia de raspar ou passar corretivo, é para tentar mostrar o que a raspagem pode revelar do próprio texto que ali existia. O que pode se revelar num raspar. E tinha algo que eu li do palimpsesto que me interessou também: que essa raspagem também se dava numa pele de animal. Eu fiquei pensando como é ver o livro ou esse material que eu estava imaginando como uma pele de bicho, o que eu posso escrever em uma pele de bicho, o que essa pele de bicho revela. Então eu pensava na folha e olhava para o livro como um objeto-bicho, um objeto-animal, como objeto orgânico. E o que esse objeto orgânico pode revelar. Então, tem algo metafórico que eu achava interessante, do papel, da pele, da raspagem. Acho que foi isso que foi me interessando.

 

Qual foi o momento mais marcante durante esse processo de destruição e criação?

Acho que foi a finalização. Quando eu percebi que todas as páginas tinham sido arrancadas, que eu tinha terminado uma etapa. Porque foi [uma etapa] longa e eu tinha dúvidas se realmente eu ia conseguir chegar até o final. Esse foi o momento da primeira partilha também, no final da especialização. Eu tive esse olhar público, a gente fez uma leitura pública. Eu li o trabalho todo, com pessoas com quem eu tinha uma troca muito especial, artistas que eu admiro, como Aline Bei, uma escritora que eu admiro e que também estava junto comigo nessa especialização. Então, foi um momento importante do trabalho para mim, de ver que ele realmente já existia.

 

Você diria que o livro tem uma narrativa singular ou os leitores podem interpretar diversas histórias a partir do texto?

Eu acho que ele tem uma narrativa, mas ela é construída junto com a leitora ou leitor. Ele pode ter diferentes leituras. Mas eu acho, sim, que ele tem uma narrativa. E eu acho que tem um desejo meu de que ele seja visto como um romance. Então, a partir do momento que eu digo que ele é um romance, eu percebo que as pessoas entram no livro esperando um romance. Pode ser que elas se frustrem ou não. Mas se eu dissesse: “Não, é um livro de poesia”, as pessoas entrariam com um olhar. Então, me interessa provocar um pouco e até mesmo provocar essa pergunta de: “Será que realmente é um romance?”. Me interessa se as pessoas ficarem com essa dúvida, ou esse questionamento, ou discordarem, pensando: “Não, talvez não seja um romance”. Então a pergunta mesmo me interessa: O que é um romance? Eu acho que o João, de alguma maneira, faz essa pergunta. Até nos dois sentidos da palavra “romance”, porque acho que tem um romance dentro das páginas.

 

No lançamento do título em Curitiba, você fez uma fala bem emocionante sobre a decisão de dedicar ou não o livro a alguém. Como foi esse processo?

Uma das decisões difíceis que eu tive que tomar, quando o livro já estava finalizado, foi a dedicatória. Teve várias decisões difíceis e vários acordos que a gente foi tecendo ao longo do processo. Mas eu lembro da Bárbara me ligar, um dia antes de levar o livro para a gráfica, perguntando se eu gostaria se tivesse uma epígrafe ou dedicatória. Eu não tinha pensado sobre, então fiquei: “Meu Deus, eu preciso decidir isso”. Eu tinha a restrição de não incluir nenhuma palavra minha, que não fossem palavras que estivessem dentro do próprio livro Harmada, ou as palavras da Raïssa, que assinou o posfácio, mas que vem depois, porque eu não queria nem um prefácio, não queria nada que estivesse antes do texto.

Enfim, eu fiquei nessa dúvida. A primeira coisa que eu pensei foi que gostaria de usar o mesmo procedimento. Apagar, talvez, alguma dedicatória que o Noll tivesse feito nesse livro. Então eu perguntei para a Bárbara se tinha, porque eu estava sem o original em mãos. Não tinha, ele não dedicou esse livro a ninguém. E aí eu pensei que gostaria de dedicar este livro ao meu pai. Por um ato de amor e de reconhecimento, por tudo que ele já fez por mim e por ele estar passando por um momento muito frágil, de tratamento de quimioterapia. E foi isso, foi um gesto de carinho. Eu lembrei, falo disso no lançamento, da frase do Guimarães Rosa: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Então, é esse o gesto de dedicar ao meu pai. E depois, relendo o livro, essa figura aparece em vários momentos, inclusive, a imagem de um pai que morre. Então, ele aparece também. De alguma maneira, inconscientemente ou não, a figura do pai está no livro.

 

Juliana Sehn nasceu em Curitiba e é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Já escreveu reportagens especiais e realizou entrevistas para o Cândido em 2022 e 2023. Atualmente é assistente editorial na editora independente Telaranha Edições.