ENTREVISTA | Micheliny Verunschk 30/05/2022 - 16:20

Onça Verunschk 

Prestes a completar 50 anos, a escritora recifense Micheliny Verunschk segue construindo uma trajetória que transita por praticamente todos os gêneros literários

Hiago Rizzi

 

“Usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor”, avisa o narrador nas primeiras páginas de O Som do Rugido da Onça (Companhia das Letras, 2021), romance de Micheliny Verunschk recentemente selecionado para o Books at Berlinale 2022. O evento, realizado em parceria pela Feira do Livro de Frankfurt e o Festival de Cinema de Berlim, reúne cineastas e autores de livros com potencial para serem adaptados para os meios audiovisuais. Única representante da América Latina na lista composta por dez títulos, a obra mistura antropologia e memória para contar a história de duas crianças indígenas raptadas por exploradores europeus e levadas para a Alemanha no começo do século XIX.

Prestes a completa 50 anos, a autora recifense — que em 2021 também figurou entre os finalistas do Prêmio Jabuti com os poemas de Movimento dos Pássaros (martelo, 2020) — acaba de lançar mais um livro. Desmoronamentos (martelo), sua primeira incursão pelos contos, é centralizado em histórias de mulheres, a exemplo de obras anteriores como Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá, 2014), romance premiado pelo São Paulo de Literatura em 2015.

Outros dois lançamentos marcam o ano editorial de Micheliny: ela assina um ensaio para a coletânea inédita Depois do Fim: Conversas Sobre Literatura e o Antropoceno (Instante, 2022), ao lado de autores como Itamar Vieira Junior e Paulo Scott, e reedita seu livro de estreia, Geografia Íntima do Deserto (poemas, 2003). Na entrevista a seguir, a escritora fala sobre seus desafios na trajetória como poeta e prosadora e revela sua ligação com o cenário literário do Paraná.

 

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Renato Parada / Divulgação

 

Geografia Íntima do Deserto (2003) é seu primeiro livro e colocou você em destaque com a indicação ao Prêmio Portugal Telecom (hoje Oceanos). Por que reeditá-lo, quase 20 anos depois? 

Existe uma grande procura por esse livro ao longo dos anos. Sempre recebo mensagens de pessoas procurando, conhecidas ou não. Há ainda uma curiosidade grande em torno dele, que reflete a própria vida do livro. É um livro de uma autora iniciante que teve algum reconhecimento na época que foi lançado e que, assim espero, se manteve relevante como poesia, não envelheceu. Aproveitando a efeméride, acho bastante apropriado esse relançamento.

 

Junto ao Geografia Íntima do Deserto houve um “lançamento surpresa” de O Observador e o Nada. Como isso aconteceu?

Os dois foram lançados na mesma semana, em 2003. Eu estava acompanhando o processo de publicação do Geografia Íntima do Deserto, mas não o de O Observador e o Nada. Na época eu mantinha um diálogo intenso sobre poesia com o jornalista e crítico Mario Helio e mandei O Observador para ele, que resolveu fazer uma surpresa e publicar o livro. Ele havia dito que ia publicar um livro meu, mas eu já estava publicando [o Geografia Íntima], achei que era brincadeira dele. Fiquei sabendo dias antes, porque o editor ligou para falar sobre o lançamento, e eu havia acabado de falar sobre o outro lançamento. Deu uma linha cruzada, era sobre O Observador e o Nada, das Edições Bagaço, de Pernambuco — e só soube qual livro era no dia do lançamento. Lancei os dois com dois dias de diferença.  

 

Você iniciou na poesia com o Geografias Íntimas em 2003, o primeiro romance saiu em 2014 (Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida) e Desmoronamentos é o primeiro livro de contos, publicado agora. Como é o seu trânsito entre prosa e poesia?  

Antes da publicação do Nossa Teresa eu não me sentia confiante para publicar prosa. Nem os contos, que já escrevo há bastante tempo, nem romance. É mais sobre amadurecimento pessoal do que amadurecimento da escrita — preciso estar pronta para aquilo, mesmo que aquilo já esteja pronto. É mais curioso ainda quando penso que publiquei contos depois de ter publicado vários romances. 

 

É um desafio diferente na escrita?

Escrever poesia não é fácil, mas como em determinada época da minha vida me dediquei mais a isso, achei mais apropriado publicar poesia primeiro. Tinha muita insegurança no romance, se aquilo estava pronto, na forma que eu queria. Precisava ler e reler até estar no ponto certo. Com os contos é a mesma coisa. Eu tenho um livro de contos inéditos que nunca vou publicar porque, embora os contos estejam prontos, gosto deles individualmente e até tenha publicado alguns avulsos em revistas e sites, não considero que ele esteja pronto. Venho me dedicando à literatura infantil há alguns anos, mas nunca me sinto pronta. Acho que está perto de me sentir pronta para isso. É muito das minhas próprias idiossincrasias.

 

Desmoronamentos tem 15 contos, todos sobre mulheres, e só um é narrado por uma voz assumidamente masculina. Por que essa escolha, de textos sobre mulheres e a partir de mulheres? 

Isso reflete meus interesses de leitura nos últimos anos. Como a maioria das pessoas da minha geração, a minha biblioteca por muito tempo foi essencialmente masculina. Só vim atentar para esse fato madura, e comecei a me dedicar com mais afinco tanto a um olhar para autoras quanto para suas obras nos últimos dez ou 15 anos. Essa escolha, que é uma escolha racional, reflete muito o olhar para a autoria, para livros escritos por mulheres e para a própria condição da mulher.

 

A capa de O Som do Rugido é de Jaider Esbell e a de Desmoronamentos, uma obra de Ana Elisa Egreja. Você participa das decisões gráficas dos livros?

Tenho um grande interesse nas artes plásticas e procuro participar da escolha de capas, desde os primeiros livros. Nem sempre bate, hoje em dia tenho muito mais participação, e gosto muito. No caso de O Som do Rugido da Onça foi uma feliz coincidência. A editora me perguntou sobre referências para a capa e mandei algumas em que eu pensava, mas a primeira que veio foi uma proposta que não tinha nada a ver com as referências que eu havia dado — é essa obra do Jaider. Só que essa obra tem uma relação muito íntima com a feitura do livro, coincidentemente. Quando vi a obra e a proposta de capa, fechei na hora. No caso do Desmoronamentos, o Miguel Jubé [editor] me passou algumas sugestões de artistas plásticos e me apresentou a Ana Elisa Egreja, que eu não conhecia. Fiquei absolutamente fascinada. Depois soube que a imagem que a Ana usou é da casa da avó dela, então ganhou um significado muito maior para mim. 

 

Um dos poemas de O Movimento dos Pássaros (2020) é dedicado a Assionara Souza (1969-2018). E você também já revelou em uma entrevista ser uma leitora de Wilson Bueno (1949-2010). Qual a sua relação com autores paranaenses, ou radicados aqui?

Eu participei do festival Perhappiness, muitos anos atrás. Tem a Jussara Salazar também. Tenho uma relação de afeto e de admiração com esses autores. Eu conversava muito com a Assionara, a gente tinha uma grande troca. Fiquei muito abalada com o falecimento dela, assim como com o do Wilson. Não o conhecia pessoalmente, mas conheço sua obra. Existe esse trânsito de afetos e referências com esses autores e com a literatura que é feita aí.

 

Wilson Bueno tem um texto no livro Boleros Bar (1986) em que diz que “um tigre é uma raiva”...

Essas referências “ferais”, vamos chamar assim, da literatura brasileira e latino-americana, sobre a onça, o tigre, o jaguar — que são todos o mesmo animal com diferentes denominações —, elas vão sendo assimiladas nesse corpo da onça de O Som do Rugido. Ao final do livro tem um pouco do caminho dessas referências que vão se agregando e compondo esse corpo.