ENTREVISTA | Julia Dantas 29/02/2024 - 16:09

A constância da autodescoberta

A escritora e tradutora Julia Dantas fala sobre sua trajetória na literatura e a presença da autodescoberta em suas obras

 

Escritora Julia Dantas
Escritora Julia Dantas. Foto: Eduardo Fernandes

 

 

Beatriz Ponte

 

Seja por um mochilão pela América do Sul sem data para voltar ou por uma caminhada incessante pelas ruas de Porto Alegre, as obras de Julia Dantas exploram a busca que todo mundo tem, teve e terá ao longo da vida: entender quem somos – e com um toque ainda mais personalizado dentro da realidade latino-americana.

Nascida em 1985, em Porto Alegre, Julia é autora de Ruína y Leveza (Dublinense, 2015), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e Ela Se Chama Rodolfo (DBA, 2022), vencedor na categoria Romance do Prêmio Livro do Ano da AGEs e do Prêmio da Academia Rio-Grandense de Letras. Além disso, é cofundadora da Baubo, empresa que auxilia escritores a levarem adiante seus projetos literários.

Na entrevista para o Cândido, ela compartilha um pouco sobre sua trajetória na escrita, suas vivências, referências literárias e sobre as temáticas levantadas em suas obras, como os laços de amizade depois dos 30 anos e as inteligências artificiais.

 

 

Vamos começar falando sobre a sua trajetória na escrita. Li em uma entrevista para o Zero Hora que você entrou no mestrado em Escrita Criativa por incentivo de professores, embora não se sentisse muito segura para isso. Pode contar mais?

Quando veio o incentivo, eu estava na faculdade ainda. Fiz Jornalismo de 2003 a 2008, e o mestrado foi em Escrita Criativa, que estava começando naquela época. Fiz uma oficina com Luiz Antonio de Assis Brasil, que foi quem começou a me dizer que eu deveria fazer o mestrado. Só que nem formada estava. A ideia ficou na minha cabeça, mas fui morar fora para saber outras coisas. Realmente achava que ainda não estava preparada para seguir nesse mundo acadêmico. Então passaram alguns anos e quando voltei para o Brasil, em 2014, decidi que iria tentar aplicar. Mas na primeira vez que fiz o processo seletivo não passei. Acho que a minha impressão de não estar pronta era real. A banca de avaliação também achou que eu não estava. No ano seguinte (2015), tentei de novo e aí entrei. E aí passou a fazer sentido. Acabei me emendando com o doutorado e fiquei na PUCRS por seis anos.

 

E o que você estudou no mestrado? Qual foi seu foco de pesquisa?

É um mestrado bem diferente do habitual, justamente porque o foco é dividido em uma obra criativa e um trabalho mais acadêmico. Foi quando escrevi Ela Se Chama Rodolfo. A minha pesquisa era ligada ao estudo de narrativas em pequenos capítulos e tentativas de pensar em como criar o silêncio. Ao mesmo tempo que tinha um outro lado – da pesquisa teórica – de associar a trama que estava criando com as narrativas tradicionais de contos de fadas. Na minha cabeça, o meu livro tinha uma coisa muito ligada aos contos de fadas, como: a figura misteriosa que é um pouco mentora e um objeto mágico que vai mudar o rumo da história, transformando a vida da pessoa. Além disso, o próprio livro tem capítulos curtos.

 

Quais as suas referências literárias? Autores(as) que te inspiram. Principalmente em se tratando de América Latina, que parece ser um tema central dos seus livros.

Sempre gostei muito da literatura latino-americana. No tempo que morei fora, fui nos países vizinhos aqui da América do Sul e vi que nossa literatura é muito própria. Pensando desde o realismo mágico, que é uma coisa muito sul-americana, e tanto Gabriel Garcia Márquez e Julio Cortázar, sempre gostei muito. Mais recentemente também fui ler Diamela Eltit, Mariana Enriquez, Giovanna Rivero. Tento ler muitos autores contemporâneos, para ver o que essas pessoas que estão no mesmo território que eu e vivendo o mesmo período estão dizendo, o que estão enxergando e que soluções estão achando para lidar com o mundo atual, com todos os seus problemas. Porque, por mais que as literaturas de formação sempre nos acompanhem, acho que existem questões hoje em dia que o Cortázar não tinha que se preocupar. Há também as autoras brasileiras (porque falamos de latino-americanos e esquecemos que também fazemos parte), como a Carola Saavedra e Maria Helena Morán – que é venezuelana, mas mora aqui. Enfim, acho que temos contemporâneos realmente muito talentosos na América do Sul e estamos em momento muito bom da literatura latino-americana.

 

Ainda sobre localidade, você é natural de Porto Alegre. Em Ruína y Leveza (2015), a cidade é a mesma da personagem Sara, e em Ela Se Chama Rodolfo (2022), a capital é o grande cenário no qual a história se passa. Como foi essa escolha e também o processo de retratação da sua cidade de origem? Diria que Porto Alegre é uma das personagens de seus livros?

De alguma forma, sim, embora não consiga traçar qual seria o arco narrativo de Porto Alegre. Mas, sem dúvidas, é muito mais do que apenas um cenário. Isso estava ligado ao que eu estava vivendo, que foi o período em que voltei para a cidade, depois de cinco anos fora. Era como ser uma pessoa estrangeira na minha própria cidade, e eu queria aproveitar esse olhar que "desautomatizou".

 

Você morou em Cusco (Peru) por um período. Pode compartilhar um pouco sobre a sua conexão com o país e de que forma essa experiência te inspirou em outros escritos?

Quando saí de Porto Alegre, morei antes na Argentina, com um namorado da época. Ficamos lá por um ano, sem nenhuma motivação específica. Depois disso, eu estava em um momento que tinha conseguido largar um emprego horrível e podia trabalhar de tradutora em qualquer lugar que os pesos argentinos me sustentassem. E no Peru dava certo, então fomos para Cusco. Lá é o tipo de lugar que encanta, porque é uma cidade pequena, mas, ao mesmo tempo, muito cosmopolita, tem gente de todos os lugares. Mistura, por exemplo, construções dos templos incas, com ideias muito contemporâneas. É uma cidade muito charmosa e ao mesmo tempo atravessada por essas influências culturais de diferentes lugares, de diferentes pessoas. Em um momento você está conversando com israelense que está passando o ano dando a volta ao mundo, em outro a gente está conversando com uma senhora que passeia com suas lhamas para tirar foto com os turistas.

 

O Peru também é cenário do Ruína y Leveza. O que da tua experiência pessoal inspirou a escrita do livro?

Me inspirei muito no cenário e no contexto cultural. Muitas pessoas me perguntam se é autobiográfico, mas em termos de história, das coisas que a Sara vive, não tem nada. Agora, sobre as descrições dos lugares, como as montanhas, mercados públicos, e afins, sim. São descrições que são colocadas de modo que enxerguei na época que morei lá. De resto, acho que tem esse contexto maior de que a Sara também encontra muitos viajantes em trânsito, cruzando uns com os outros, naquela tradição de narrativas de estrada, que muitas vezes se dão com esses encontros rápidos, mas significativos. Alguém encontra alguém, fica por um tempo e depois cada um segue pro seu rumo, mas aquilo significa algo.

 

Em Ela Se Chama Rodolfo, percebo que a temática principal é sobre amizade já na fase adulta, com mais de 30 anos. Vemos na mídia vários artigos que falam da dificuldade em encontrar laços nessa fase da vida. O que te fez trazer essa temática à literatura?

Acho que é uma temática não tão valorizada na literatura, como as relações românticas, por exemplo. Se fala pouco a respeito do que significam as amizades, como se constroem e até como se desfazem, como que se despede e que isso não diminui necessariamente o que foi. E acredito que isso tem muito a ver com a cultura geral da vida. As pessoas falam muito mais a respeito das relações românticas. Por exemplo, namoro há cinco anos e tenho amigas que conheço há 20. Como vou dizer que a relação com o meu namorado é mais importante do que a com a minha amiga, que cresceu junto comigo, só porque a relação que tenho com ele é romântica? Acho um pouco injusto o modo como nós, coletivamente, tratamos as amizades e colocamos o casamento como algo acima disso. Até nas expressões dizemos algo como, “a gente é só amigo”. Como se ser amigo fosse pouca coisa. Amigo aguenta a gente no melhor e no pior. Sobretudo para as mulheres. Há vários estudos que mostram isso, que tem um apoio de outras mulheres para passar pelos perrengues. Tem algo aí que é fazer uma mudança nessa cultura. E aí entram as novas formas de amor, quando isso vira uma pauta coletiva e começamos a questionar as formas de relação. Isso abre espaço para mostrar que as amizades também importam, têm um valor e são transformadoras. Talvez mais transformadoras do que de qualquer relação romântica.

 

Achei interessante que você falou sobre as mulheres se apegarem às amizades. No entanto, o protagonista do livro é um homem. Trazer essa temática foi uma tentativa de discutir a masculinidade?

Foi total. Acho que o machismo e o patriarcado prejudicam os próprios homens e dificultam de terem amizades. Vejo com o meu namorado e outros amigos homens próximos como é frequente que eles vão ter relações mais profundas de amizades ou conversas com outras mulheres e não com outros homens. Claro que tem exceções, de relações super profundas entre homens, mas é mais fácil ter essa franqueza com outras mulheres. E o Murilo é isso. Ele foi criado de um modo bruto para "ser homem", como a maioria dos homens da minha geração. Vejo muitos homens fazendo um movimento consciente para quebrar esse padrão, de aprenderem a ser amigos verdadeiros, de serem alguém para conversar sobre a vida, não apenas alguém para fazer atividades juntos.

 

E continuando nas amizades de Murilo (Ela Se Chama Rodolfo), a transsexualidade é uma pauta abordada no livro. Na entrevista para a TAG Livros, você comenta que enxerga nessas pessoas a “essência da coragem”, de não se submeterem a serem o que não são. Poderia contar um pouco mais sobre isso e o desenvolvimento do assunto na trama?

É duríssimo, sobretudo no Brasil, se colocar publicamente como uma pessoa trans e passar pelo processo da transição física, pois é algo que não dá para esconder. É sempre importante lembrar que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, ou seja, fazer isso no lugar onde a gente vive exige muita coragem. Não quero romantizar a situação, mas acho que tem algo muito bonito nisso. Acho que nas pessoas trans isso fica muito concreto, embora seja um desafio achar o seu caminho quando o tempo todo a sociedade quer mudar as pessoas. Na trama é sobre gênero, mas poderia ser qualquer movimento que questiona a norma. Eu sou uma mulher hétero branca e poderia tranquilamente vestir a máscara da norma, mas penso em como posso ajudar a desmontá-la e construir um mundo melhor para todo mundo. Creio que colocar uma personagem trans no livro veio muito daí. De fato eu aprendo muito com essas pessoas e esses movimentos (negro, sindicalista, LGBTQIAP+) num geral, que me interessam, e que eu queria colocar de alguma forma na ficção.

 

A autodescoberta parece ser um tema recorrente em suas obras. Em Ruína y Leveza por exemplo, a gente vê a trajetória da Sara com o mochilão. E em Ela Se Chama Rodolfo, acompanhamos a jornada do Murilo para achar um lar para a tartaruga. O que te inspira a trabalhar com essa temática?

Quando eu era criança, tinha uma certa ilusão ingênua de que ia chegar um momento da vida que ia estar tudo entendido. Aquela coisa de criança que pensa “ah, quando eu tiver 30 anos vou ter uma casa, um emprego, dois filhos e eu vou saber tudo a meu respeito”. E aí a gente vai envelhecendo e vai se dando conta de que esse processo de autodescoberta não acaba nunca. Assim, ninguém diz “ah, agora eu me conheço”. Ou se você chega nisso, dura muito pouco tempo, fica meio entediante, e vai fazer outra coisa. E começa de novo. Enfim, acho que meus livros passam por aí, é realmente o trabalho eterno da vida, que se renova o tempo todo. De estarmos a investigar a nós mesmos e, de preferência, ter a generosidade de deixar que os outros também se descubram, se transformem e virem as outras pessoas que elas querem virar.

 

Em Ela Se Chama Rodolfo, uma das personagens principais é a tartaruga Rodolfo que, embora seja um animal, tem muita personalidade. Como foi o processo de construção deste personagem, visto que é um ser “irracional”?

É, ele é uma tartaruga e ponto. Não fala e nem faz nada muito excepcional. E era meio que isso que eu queria, que ele pudesse ser o que a gente faz com frequência com os animais: ser um animal no qual o Murilo poderia projetar, evidentemente, a si mesmo. Eu precisava, sobretudo, de um animal que fosse pequeno para que o Murilo pudesse agarrar, levar no ônibus, etc. Em termos de personalidade, estava buscando isso que os animais têm pela sua natureza, de estarem no momento presente e não estarem preocupados. Ao contrário de todos os humanos ao redor deles.

 

Um conto seu chamado "Sabrina é um nome bonito", de 2020, sobre um menino que mantém conversas em bate-papos online, traz uma discussão a respeito do comportamento das inteligências artificiais. Até li algumas resenhas que chamam o seu conto de “premonitório”. Pode contar um pouco de como foi a escolha da temática?

Minha inspiração foi quando a Microsoft lançou no Twitter [atual X] a Tay, uma robô de inteligência artificial que interagia com os usuários e aprendia com este ambiente, e que depois de 24 horas tiveram que desativá-la porque ela estava reproduzindo discursos de ódio. A partir disso, fiquei pensando que o maior risco das IA's é elas aprenderem com as pessoas erradas. Eu não quis – e acho que nem conseguiria – ir para uma coisa muito macro, como impactos no planeta, mas quis pensar em um cenário pequeno, pensando no diálogo espelhado que o Jacó começa a desenvolver com ela. Além disso, também mostra esse isolamento que a rede social cria com essa inteligência artificial.

 

Como você enxerga o uso das IA’s no cenário literário? É otimista ou pessimista com relação a isso?

Não me preocupo muito. Por mais que apareçam notícias, como o da escritora [Rie Kudan] que ganhou um prêmio e admitiu que utilizou o ChatGPT para escrever uma parte. Volta e meia isso vai acontecer, mas não acho que o trabalho de escritores estão em risco – pelo menos por enquanto – porque a inteligência artificial não cria, mas, sim, remonta a partir de probabilidades já existentes. Tenho sérias dúvidas de que as IA's consigam criar textos com boas metáforas, por exemplo. Confio, sobretudo, na criatividade dos escritores para lidar com esse novo mundo, seja ele qual for.

 

Para finalizar: você está trabalhando em algum projeto novo? Poderia contar um pouco mais sobre o que está por vir?

A situação atual é que tenho um livro escrito durante o doutorado que ainda não considero pronto, mas a história envolve uma menina que acaba matando uma pessoa sem querer durante uma tentativa de assalto contra ela. E tem outro que começou como um conto e acabou virando romance. É sobre uma escritora que vai mostrando coisas que escreve e também de sua vida, pegando algo ali da pandemia e confrontos com a idade. Aborda aquele período em que as mulheres se deparam com o questionamento de se vão querer ter filhos ou não, por conta da natureza biológica. E a partir disso, ela vai se deparando com o que ela deseja - ou não – e toda a fantasia que vai criando na cabeça. Já está praticamente pronto para mandar para a editora

 

 

Beatriz Ponte é jornalista, nascida e criada em Curitiba. Atualmente atua como gerente de comunidade e redatora em uma foodtech de empreendedorismo gastronômico. Escreveu o livro Rotulados como Trabalho de Conclusão de Curso. Tem interesse pelo universo da literatura e escrita, e já fez cursos livres relacionados às áreas.