ENTREVISTA | Jeferson Tenório 28/01/2022 - 17:54

Uma entidade que fabrica as próprias armas

Vencedor do Prêmio Jabuti com o romance O Avesso da Pele, Jeferson Tenório fala sobre racismo, decolonialidade, abandono e adianta o tema de seu próximo livro

Luiz Felipe Cunha

 

jeferson tenório
Foto: divulgação / Cia das Letras

 

Seis mil quatrocentos e dezesseis. Este foi o número de pessoas mortas pela polícia em 2020, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Um recorde nacional. Dessas mortes, 78,9% foram de mulheres e homens negros. É difícil individualizar ou mesmo humanizar a situação quando os números são tão elevados. Mas não é o que acontece no livro O Avesso da Pele, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, do carioca radicado em Porto Alegre Jeferson Tenório.

Em pouco mais de 190 páginas, o narrador recupera, através da memória, a trajetória de Henrique, seu pai, morto pela polícia. A brutalidade da história e a escrita contundente e poética de Tenório compõem uma estrutura narrativa sofisticada. Ou, como disse o escritor gaúcho Paulo Scott: “Estamos diante de um escritor que, correndo todos os riscos, sabe arquitetar uma boa trama e encantar o leitor”.

E embora O Avesso da Pele trate de assuntos políticos como o racismo, o livro é essencialmente sobre relações humanas. Junto com os outros dois romances do autor — O Beijo na Parede (2013) e Estela sem Deus (2018) —, a obra forma o que o pesquisador Alen das Neves Silva nomeou de A Trilogia do Abandono.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Cândido, Tenório falou sobre a construção de O Avesso da Pele, as impressões de seus leitores e os conceitos de pós-colonialidade e decolonialidade (em voga nos últimos anos e geralmente associado à produção recente de escritores e artistas negros), entre outros temas.

 

Como e quando surgiu seu interesse por literatura e escrita?

Foi tudo meio por acaso, por circunstâncias da vida. Na infância eu não pensava em ser escritor. Isso aconteceu tardiamente, por volta dos 25 ou 26 anos. Muito estimulado por professores, me tornei primeiro um leitor e depois surgiu a necessidade de escrever. O primeiro gênero em que me aventurei foi o poema.


O personagem Henrique, do livro O Avesso da Pele, viveu no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, assim como você. Em se tratando de racismo, já que este é um dos temas presentes no livro, quais as diferenças entre Rio e POA? O narrador descreve a capital gaúcha como um ambiente bem hostil.

Vivi no Rio de Janeiro até os 13 anos de idade e depois voltei muitas vezes para passar férias e visitar parentes. O que posso dizer é que tanto o Rio como São Paulo passam uma ilusão de ter pessoas negras naturalizadas nos espaços. É possível ver negros em vários espaços pela cidade, especificamente nas praias, onde pessoas brancas e negras dividem os mesmos lugares. No caso de Porto Alegre, o território já é mais demarcado. Se você der uma volta pelo centro, vai perceber os guetos de pessoas negras em determinados bairros e guetos de pessoas brancas em bairros mais sofisticados. É uma segregação silenciosa, mas que está a olho nu. Me parece que o racismo é visual e mais escancarado. E passei essas impressões para o meu personagem Henrique, que é negro e se sente estranho na cidade em que morou a vida toda.


Durante os dois anos escrevendo O Avesso da Pele, qual foi a maior dificuldade durante a elaboração da narrativa? E como foi o processo de publicação do livro?

Foi o primeiro romance que escrevi sob encomenda. A Companhia das Letras me deu o prazo de dois anos para escrever um livro. No começo, eu não tinha o livro, só tinha uma ideia do que seria e sabia o que queria fazer. E a maior dificuldade foi elaborar os arranjos de idas e vindas presentes na narrativa para tornar o romance mais sofisticado. O trabalho de edição, tanto do Emilio Fraia, que foi meu editor, quanto do Luiz Schwarcz, foi fundamental para que eu pudesse olhar para o livro depois de finalizado e então começar a fazer esses arranjos.


Pelo que percebi nas redes sociais, o livro O Avesso da Pele, além da qualidade literária, ganha o leitor negro pela identificação. Nesse sentido, que efeito o livro causa em leitores brancos?

Tenho recebido muitas mensagens sobre o livro no meu e-mail. Ao perceberem como o Brasil ainda é racista, os leitores negros têm tido essa identificação, olham para O Avesso da Pele como uma espécie de bandeira. Com os leitores brancos acontece de eles ficarem surpresos com o tipo de racismo presente no romance, que é esse racismo cotidiano, mais subjetivo e recreativo. E esses leitores brancos dizem que nunca tinham pensado nisso. Mas há também um processo de identificação com o personagem justamente porque o livro não é sobre o racismo, é um livro sobre relações pessoais. Ali temos a relação entre homem e mulher, na figura de Henrique e Martha, e a relação entre pai e filho. E essas situações, por serem relações humanas, causam identificação tanto em negros como brancos.


O tema do seu mestrado aborda, entre outras coisas, os “niilismos na obra de Mia Couto”. Pensando nesse conceito, você enxerga algum personagem de O Avesso da Pele como niilista? Pode se atribuir uma dose de niilismo na atitude de Henrique durante a abordagem policial no fim do livro?

Temos que ver de quais niilismos estamos falando. O que eu tenho imprimido nos meus personagens é uma vida existencialista. No meu mestrado, o conceito tem a ver com a identidade — ou seja, é uma possibilidade de recusa de você ser identificado pelo colonizador, é um modo de libertação de você mesmo, libertação para dizer se você é ou não africano ou o que significa ser africano. No caso dos meus personagens, eles seguem uma certa doutrina existencialista, no sentido de serem responsáveis pelas suas atitudes e pelas suas consequências. E o Henrique, de certo modo, no momento em que é assassinado, está tendo uma postura niilista ou existencialista quando se recusa a fazer aquilo que os policiais estão mandando. Ele “toma as rédeas da própria vida”, só pra usar uma expressão sartriana, do existencialismo, e depois lida com as consequências — a própria morte, no caso.


Uma outra abordagem possível da sua tese de mestrado é a desconstrução dos arquétipos enraizados no imaginário ocidental sobre a África e seus povos por meio de uma das obras de Mia Couto. De que modo você utiliza esse conhecimento na sua produção ficcional?

O Mia Couto é um autor que na minha visão consegue, de maneira honesta, descrever e representar pessoas negras, além conseguir inserir uma discussão sobre raças — o que é muito difícil para um autor branco — em sua obra. Ao mesmo tempo, ele não idealiza esses personagens negros africanos. A discussão no meu trabalho foi o quanto algumas pessoas negras olham para a África como grande berço da sua identidade, ou seja, vão buscar sua identidade no continente africano. O que discuto, e o Mia Couto também, é que a identidade não está na África, a identidade está onde você é e está. E acabo colocando isso nos meus personagens. O Henrique e a Martha, por exemplo, são personagens que pensam diferente até mesmo sobre o movimento negro e lutas antirracistas. É um artefato que uso para mostrar que pessoas negras pensam diferentes umas das outras e que a gente não deve cair nesses estereótipos.

 

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Foto: divulgação


 

Em textos mais acadêmicos sobre a sua obra, pesquisadores ligam seus livros ao conceito de literatura pós-colonial. Pode falar um pouco sobre esse conceito e como a sua obra se encaixa nessa perspectiva?

Tenho trabalhado mais com a ideia de decolonialidade, que é um pouco diferente de pós-colonial, mas que acabou se entrecruzando. São narrativas que vão se contrapor às narrativas canônicas. Nelas é possível ver uma análise de autores, de histórias, romances, que não só se contrapõem, mas também fazem uma leitura crítica dessa própria literatura canônica. Então, uma revisão pós-colonial ou decolonial significa não jogar fora o conhecimento eurocêntrico, mas olhar com crítica suficiente para que se possa fazer uma contraposição e, mais do que isso, manter uma postura “ogunica” — que vem do orixá Ogum, uma entidade que fabrica as próprias armas. Nesse sentido, defendo que devemos criar as nossas próprias teorias. E isso também tem a ver com o fazer ficcional e estético: o fato de eu criar um narrador que é em primeira pessoa e onisciente contrapõe a teoria da literatura que diz o contrário. Isso é uma tentativa “ogunica” de criar e contrapor os narradores canônicos.


Esse conceito de pós-colonialidade, aliado a uma ótica de pós-modernidade, o que gera? Para qual caminho aponta?

A pós-modernidade já vinha apontando para uma fragmentação. Hoje em dia não se consegue mais olhar para a arte ou a literatura e dizer qual é o segmento. Há uma possibilidade de várias vozes e é isso que a ideia de pós-colonialidade mostra: é preciso ampliar as vozes narrativas. Antes havia apenas uma voz (do homem branco europeu canônico) e a pós-colonialidade mostra que existem outras vozes que precisam ser ouvidas não só no sentido político, mas no sentido de ampliar nossa visão enquanto humanos, para mostrar que existem outras narrativas e elas nos completam enquanto pessoa.


Na introdução de Estela sem Deus você diz que “aquele livro era uma obsessão”. Que obsessão era essa? Você costuma produzir literatura com alguma obsessão em mente?

O escritor argentino Ernersto Sabato, no livro O Escritor e seus Fantasmas, diz algo mais ou menos assim: um escritor precisa escrever com uma vontade doentia. Mas não costumo escrever assim. Costumo escrever da maneira mais lúcida possível. No caso de Estela sem Deus, é um livro que eu perseguia há muito tempo porque queria contar a história da minha mãe, sentia necessidade disso. Mas não conseguia encontrar o tom para escrever essa história, então acabei entrando nesse processo de obsessão para encontrar essa voz narrativa. Tinha que ser em primeira pessoa, tinha que ser uma mulher adolescente narrando a história. E eu convivi com a personagem durante muitos anos, como em uma espécie de obsessão mesmo, até conseguir chegar no tom exato do Estela sem Deus.
 

No livro O Beijo na Parede você utiliza um artifício que não é tão comum na literatura contemporânea: ter uma protagonista criança narrando em primeira pessoa. E apesar da linguagem da narrativa ser elevada demais pra uma criança de 11 anos, ainda assim é muito convincente. Como fazer para soar tão verossímil? Há um trabalho de observação mais atenta, por exemplo, do seu filho ou dos sobrinhos?

Tem a ver com a minha profissão, que foi, por muitos anos, professor de escola pública. Convivi com alunos do quinto e sexto ano por mais de 10 anos. É fruto dessa observação. Muitas frases do meu filho João poderiam estar facilmente na boca dos meus alunos. Quando se vive em um ambiente periférico e violento, as crianças passam, obrigatoriamente, a ser mais maduras, é uma questão de sobrevivência. Então quando alguém olha para o João [personagem principal do livro O Beijo na Parede] e acha que ele é maduro demais para a sua idade, é justamente porque o garoto vive em um ambiente que o faz agir daquele modo. A questão da verossimilhança passa por essa observação enquanto professor e, claro, pelas leituras literárias que fiz, como por exemplo, de Oliver Twist, entre outros livros com narradores infantis.

 

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Li um artigo que diz que O Avesso da Pele, depois de O Beijo Na Parede e Estela sem Deus, conclui a Trilogia do Abandono. Como o abandono está presente nas três obras?

Na verdade isso foi um estudo, se não me engano, de doutorado de um rapaz lá de Minas Gerais sobre meus livros. Ele escreveu um artigo falando que havia ali uma trilogia. No início eu não concordava, pois me pareciam romances bem diferentes. Mas depois do artigo ele me convenceu. Acredito que há elementos que ligam os livros e um deles é o abandono. De certo modo, existe ali um discurso não só do abandono compulsório, mas de um abandono ativo, ou seja, alguém que decide abandonar alguma coisa para o seu bem. É o caso da Estela que decide abandonar a ideia de Deus para se tornar filósofa, por exemplo.


O seu nome está presente em algumas antologias de contos. O que pensa do gênero? Pretende lançar um livro de histórias curtas?

O conto é um gênero bastante difícil para mim. Eu não sento em frente ao computador e penso: “Vou escrever um conto”. Produzo só quando me pedem, sempre sob encomendas. Mas estava olhando aqui na estante e devo ter uns sete ou oito contos em coletâneas. Futuramente, é provável que eu lance um livro de contos e então vou produzir novas histórias. Por enquanto, os projetos em que estou envolvido são a defesa da tese de doutorado e o próximo romance.


Pode adiantar algo sobre esse próximo livro?

Já venho escrevendo-o desde o ano passado. É um romance em que vou narrar a trajetória de três estudantes universitários no início dos anos 2000, com a implantação das cotas raciais. São três personagens negros dentro de um ambiente acadêmico. Esse é o meu projeto. No momento estou fazendo entrevistas com estudantes que foram cotistas — eu mesmo já fui cotista. Acho que é uma narrativa que precisa ser contada. A entrada de pessoas negras nas universidades não foi pouca coisa e ela causou uma transformação na sociedade em termos de mentalidade. Hoje em dia, a gente está muito próximo desse vocabulário antirracista, as pessoas falam em privilégio branco, sobre lugar de fala, etc. Ou seja, há um ganho, mas para chegar a esse ganho aconteceu muita coisa dentro da universidade e eu quero contar essa história.