ENTREVISTA | Força Estranha 23/10/2024 - 09:39
Por Luiz Felipe Cunha
A pesquisadora Mariana Carolo teve acesso às anotações pessoais de David Foster Wallace sobre a obra Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy; o resultado é um extenso ensaio que será publicado por uma editora curitibana
Movida por um desejo latente de destrinchar o máximo de um assunto, a professora e pesquisadora Mariana Carolo se propôs a montar um mapa que conectasse seu autor preferido, David Foster Wallace, a outros autores que o influenciaram. Então, inicialmente, deu uma chance para o Arco-íris da gravidade (1973), de Thomas Pynchon, mas o livro não a impactou como ela esperava. Nesse meio tempo, seu marido a presenteou com um exemplar de Meridiano de Sangue (1985), de Cormac McCarthy, um épico brutal sobre a gênese dos Estados Unidos, completamente distinto do universo ansioso e dos cenários urbanos de Wallace. Certo dia, ela comentou com o parceiro sobre estar obcecada pela leitura do Meridiano, mas que gostaria de continuar seu projeto pessoal na busca pelos escritores que influenciaram Wallace. Então, o marido “fez o óbvio” (nas palavras dela): pesquisou despretensiosamente no Google "Cormac McCarthy e David Foster Wallace", e nisso apareceu uma foto, toda pixelada, no X (antigo Twitter), das anotações que Wallace havia feito à mão na edição surrada que ele tinha de Meridiano de sangue. Pronto, era o que Mariana precisava. Cismou que queria traduzir aquelas anotações e fazer um estudo. O resultado dessa imersão é o ensaio Meridiano infinito: notas de David Foster Wallace sobre Cormac McCarthy, prestes a ser lançado pela editora curitibana Madame Psicose.
Mas, embora o mergulho no árido deserto texano de McCarthy, cercado por reflexões de Wallace, tenha sido um alívio intelectual, Mariana não contava que a produção do livro fosse sobreposta por um crime ambiental. Moradora de Canoas, no Rio Grande do Sul, uma das cidades mais atingidas pelas enchentes no início de 2024, ela passou meses convivendo com o ruído constante de helicópteros sobrevoando sua casa e com tudo ao seu redor submerso. Em entrevista, Mariana revela como o processo de escrita foi uma âncora em meio ao caos: a literatura não só a ajudou a atravessar o momento conturbado, como também lhe ofereceu uma forma de sublimação da tragédia.
Como foi o processo para conseguir acesso a essas anotações pessoais do David Foster Wallace em alta resolução?
No final de 2023, entramos em contato com o centro de pesquisa Harry Ransom Center, que detém os direitos sobre as coleções do Wallace, e conseguimos as fotos das anotações em alta resolução. Comecei a estudar e analisar aquelas cópias e fiz uma primeira versão de um ensaio. Eu não tinha o intuito inicial de publicação, fiz aquilo apenas pelo gosto de pesquisar e estudar, de pensar exaustivamente um assunto, acabei enviando o texto para algumas revistas. Foi negado. Então, eu soube do trabalho da editora Madame Psicose (cujo nome faz referência a um personagem do livro Graça Infinita), enviei o texto para publicação no blog da editora e deu certo. Nesse meio tempo, meu marido conseguiu a segunda parte das anotações, e o João Lucas Dusi, que está por trás da Madame Psicose, falou: “Vamos fazer um livro!”. Depois disso, iniciou-se um processo super burocrático para conseguir autorizações, tanto por parte dos detentores dos direitos autorais do Foster Wallace quanto do Cormac. O livro seguia bem, estávamos na fase de refinar o texto bruto. Então veio maio.
Foi quando começou as fortes chuvas no Rio Grande do Sul, certo?
Exato. E, sinceramente, eu ainda não consigo expressar verbalmente. Eu tive muita sorte, fui privilegiada. Moro em Canoas, uma das cidades mais atingidas pelas enchentes, mas fiquei apenas 21 dias sem água. Foi desesperador, basicamente metade da região ficou submersa. E como sou professora, pelo menos tive a segurança de ter um emprego público fixo. O meu prédio abrigou, por duas semanas, um grupo de refugiados climáticos; e ver o desespero das pessoas, ouvir o barulho dos helicópteros a todo momento, ter que pegar água em garrafas pet… foi horrível. Mas, nesse momento inicial, confesso que escrever o livro me ajudou a ter foco, me ajudou a sublimar toda a tragédia. Tragédia não, crime ambiental, melhor dizendo.
Depois a escola na qual eu trabalho passou a servir como abrigo para as pessoas que ainda estavam desabrigadas. Ouvi várias histórias de pessoas que perderam tudo o que tinham, foi a coisa mais triste do mundo. Nós [os professores e funcionários] fomos convocados a trabalhar nesses abrigos, e a função que me foi dada era a de ficar na portaria. Eu, basicamente, registrava as entradas e as saídas, e isso me permitiu continuar com a produção do livro, que me ajudava a manter a sanidade. (Você deve ter percebido minha luz piscando, peço desculpa; por aqui estamos entrando numa segunda fase de temporal. Se acontecer alguma coisa, foi a minha luz que caiu de novo).
E de que modo escrever te ajudou?
Como eu disse, não fui atingida, mas a dor do outro não tem como ser ignorada. Foram dois meses desesperadores. Só que ao mesmo tempo tenho dois filhos, tinha a louça para lavar, coisas para resolver. Eu tinha que estar bem para trabalhar no abrigo, pois era um ambiente pesado; as pessoas à minha volta perderam tudo e eu sentia que não podia me dar ao luxo de surtar. Por isso a produção do Meridiano infinito foi importante. Gosto muito de estudar, pegar um tema, pensar nele e entender o máximo que eu puder. E, ao fazer isso, fico extremamente focada. No caso da leitura do Meridiano de sangue, embora tenha semelhanças com a questão da formação do Brasil e o genocídio dos povos indígenas, a história era distante, não contemporânea, e isso me ajudou a distanciar um pouco a cabeça. Naquele momento, eu estava pensando em outras questões, não tinha tempo para pensar na realidade terrível que estava me cercando.
Na apresentação do seu livro, você comenta que o crítico Harold Bloom abandonou, inicialmente, a leitura do livro Meridiano de sangue por considerá-lo muito violento. Pensando nisso, qual foi a sua impressão após a primeira leitura da obra?
Pode soar esquisito, mas a minha primeira impressão foi de um livro muito bonito. Sim, também há muita violência. Mas é uma violência, digamos, bonita. Vou explicar melhor: por exemplo, eu estava lendo o 2666 (2004), de Roberto Bolaño, e há capítulos com descrições de assassinatos. Foi difícil continuar a leitura, pois é uma violência gratuita. Já a violência do Meridiano de sangue, eu acho bonita porque ela é quase uma força da natureza. As construções estéticas são bonitas. Esse livro trata sobre um momento específico da história da formação dos Estados Unidos, quando o Oeste norte-americano foi invadido e os povos originários foram exterminados. É um momento de transição daquele país; e eu achei muito bonita a forma como McCarthy coloca essa natureza se transformando em cidade. Eu a enxerguei enquanto algo natural, diferente do mal puro e simples.
Qual a intenção do Cormac McCarthy ao descrever essas violências, como assassinatos, mutilações, tiroteios, etc., de forma poética?
Estou estudando o Meridiano de sangue há praticamente um ano e não me sinto segura para te dizer o que o autor quis dizer com o livro. Há muitas discussões acerca do que as passagens apresentam, sobre o significado delas. Eu encaro a obra como se fosse uma matrioska, aquelas bonecas russas dentro umas das outras, têm muitas camadas. Nesta lógica, podemos pensar que a violência possui um aspecto histórico na obra: a construção dos Estados Unidos através da violência como filosofia. Por exemplo, o personagem principal é o Kid, porém o grande centro dos fatos é o Juiz Holden, que é um tipo de vilão. Mas eu não consigo enxergar o Juiz como um vilão clássico, puramente malvado. Ele ultrapassa o conceito de “bem” ou “mal”, utiliza da violência para impor a sua visão, para provar um ponto.
Também podemos pensar a violência como uma questão de sociabilidade masculina. Como é dito no começo do livro: “a criança já nasce com gosto pela violência”. E na história do livro, quando Kid encontra um bando para acompanhar, aquela sociabilização com os companheiros existe a partir da violência. No contexto, o bando necessita ser um grupo violento para atirar e varrer do terreno os indesejáveis, no caso os indígenas. Ou seja, essa violência passa por uma questão de sociabilidade.
Nas anotações do David Foster Wallace sobre o Meridiano de sangue, ele chegou a pontuar alguma coisa a respeito dessa violência?
A violência aparece nas anotações do Foster Wallace, mas de forma ampla. Por exemplo, a passagem que o Kid é o único sobrevivente de um ataque comanche, David comenta, com um tom meio irônico, sobre a escrita do McCarthy soar pomposa, como um rei inglês, por causa do ritmo causado pela falta de vírgula em algumas sentenças. Ele também traz reflexões sobre a questão da natureza, compara o Juiz Holden com Shiva (um deus hindu que representa a destruição e a regeneração), percebe a tensão racial referente ao personagem do Black Jackson. A impressão que tenho é que o Wallace estava querendo encontrar todas as engrenagens do Meridiano de sangue. Para isso ele estabeleceu as anotações de duas formas: as principais em tópicos, que são as que estão no livro, e as impressões dele ao longo das páginas. Eu não tive acesso a todas as impressões. Mas por meio dos tópicos, que vão do início ao fim do livro, dá para perceber que ele queria entender todas as engrenagens da obra.
O que te chamou atenção nessas anotações ao ponto de querer destrinchá-las? Você enxerga um valor artístico literário nelas?
É curioso que, quanto mais velha vai ficando, menos as coisas te emocionam. E o Graça infinita (1996), do David Foster Wallace, é um livro que li e reli de cabo a rabo duas vezes. Há trechos que eu pego periodicamente para ler. Esse livro nunca deixa de me emocionar. Ele me causa esse sentimento de querer entender a mente do homem que escreveu a obra. E, como disse, gosto muito de estudar e pesquisar, sempre estou lendo, e isso me motivou a encontrar uma relação entre o Foster Wallace e o McCarthy. Neste sentido, essas anotações foram o ponto de ligação. Sobre considerá-las arte, eu diria que antes elas são como um mapa de entendimento. Mas, sim, há muita beleza nas anotações, pois são quase como uma expressão de uma consciência que nunca para. O Wallace nunca parava de pensar e ele precisou colocar aquilo no papel, riscar todo o livro dele, porque estava fervilhando vendo aquele Estados Unidos apresentado pelo McCarthy; fora todas aquelas questões de estrutura de texto que às vezes o incomodava.
Dentro da tradição da literatura americana, onde você diria que estão esses dois escritores? O que eles representam e qual a contribuição deles dentro dessa tradição?
Na minha visão, o David Foster Wallace foi o último grande escritor do século XX (dentro da tradição norte-americana e ocidental). Já o McCarthy é muito subestimado. Claro, o McCarthy é super comentado no mundo, mas eu acho que ele deveria ter uma atenção maior. Veja, são dois autores que não ganharam o Nobel, embora muito influentes no Ocidente. Foster Wallace teve a trajetória abreviada por conta do suicídio, de repente ele poderia vir a ter ganhado, mas é um absurdo um McCarthy não ter levado um Nobel para casa. Ele é gigante, parecia não se importar em ter a fama, não queria dar entrevistas, não frequentava as rodas dos artistas que poderiam ter feito seu nome ecoar mais. Mas se nem ele se importava com isso, eu também não vou me importar.
Na apresentação do seu ensaio, você diz que o Graça infinita soa como uma catedral, enquanto o Meridiano de sangue lembra “um pastor pregando no meio das aterradoras paisagens da fronteira entre os Estados Unidos e o México”. Pode explicar essa comparação?
O Graça infinita tem uma estrutura particular, com aquelas mil páginas que se desdobram, construindo aquele mundo aterrador, caótico, mas ao mesmo tempo com cenas muito bonitas. Eu sou mãe de menino com transtorno do espectro autista, toda a construção do Mario Incandenza, do rapaz com as deficiências, com as deformações, é muito bonita. Aquilo me tocou profundamente. Vejo essa obra como uma catedral porque o autor constrói uma estrutura gigante, com personagens, com fatos que se sobrepõem, para, no fim, estar adorando coisas muito simples. Graça Infinita é um livro que fala sobre amor, embora pareça que não.
Sobre o Meridiano de sangue soar como um pastor, é uma referência ao padre Tobin, que aparece na obra. Nesse núcleo, se levantam várias reflexões sobre o homem na natureza. Tem a cena do Tobin no deserto segurando uma cruz de ossos de carneiro, gritando contra o Juiz. É uma cena muito bonita porque surge a reflexão: a religião é uma ânsia humana em tentar entender a natureza e tudo o mais ao seu redor. Nesta cena específica no deserto, é como se o padre tentasse se estabelecer naquele meio onde não há chances para vitória, ele no fundo sabe que não há como vencer o Juiz Holden — tanto que ele pede para o Kid atirar, mas ele nunca atira no Juiz. Eu achei linda essa cena, é escrita de uma forma muito bonita, muito humana. A utilização dos ossos de carneiro, por exemplo, é o ser humano usando o meio, usando o que pode, o que está perto, o que está à mão, para vencer algo que ele não tem como vencer.
Você comentou sobre o Juiz Holden, de certa forma, ser uma representação da força da natureza. É comum também fazer essa associação com outro personagem do Cormac McCarthy, o Anton Chigurh, do romance Onde os velhos não têm vez — que ficou bem conhecido com a adaptação para o cinema pelas mãos dos irmãos Coen (Onde os fracos não têm vez, 2007). Você enxerga paralelos entre os dois antagonistas?
Vou me abster de fazer paralelos porque vejo as obras do McCarthy como bonecas russas, e qualquer paralelo que eu fizer vai diminuí-las. Mas o que eu posso dizer é que McCarthy tinha questões que vão aparecer até nas suas últimas obras (O Passageiro e Stella Maris). Primeiro, é o espanto humano perante a existência, o mundo e a natureza — nisso surgem as violências. É como se ele se perguntasse: “Como a natureza, o nosso ambiente, pode ser um espaço tão assustador?” McCarthy escreveu muito sobre paisagens, dava foco nisso. Ele imprime que o deserto pode ser assustador assim como o alto mar. McCarthy pensa muito também em questões de religiosidade, e daí entra a questão também do que é o “bem” e o que é o “mal”? Deus existe? Deus nos abandonou? Onde a gente encontra Deus Percebo que ele tinha essas questões e seus os livros se desenrolam em cima delas. Mas fazer comparações e paralelos aqui, como eu disse, acho que diminui as obras.
Você sabe se o Foster Wallace chegou a fazer anotações sobre outros autores em outros livros? Daria para fazer, digamos assim, uma série de ensaios sobre essas outras anotações?
Após a morte de David Foster Wallace, sua biblioteca pessoal foi transferida para o Harry Ransom Center, localizado em Austin, Texas. E, sim, os livros de sua coleção, muitos contêm anotações, como nos exemplares de O Silêncio dos Inocentes e Dragão Vermelho, de Thomas Harris, que estão completamente preenchidos com comentários. Há outros, com certeza. Seria meu sonho de vida poder ter acesso a tudo. No entanto, o processo para acessar e utilizar esse material envolve uma série de complicações burocráticas. Por exemplo, para fazer o Meridiano infinito, o Harry Ransom Center permitiu o uso das imagens dos livros anotados, mas para usar o conteúdo escrito por Wallace tivemos que solicitar uma autorização diretamente com os herdeiros, o que tornou o processo de pesquisa e uso dessas anotações extremamente difícil. Hoje, eu não me dedico a isso justamente por causa da burocracia americana. Embora costumemos pensar que nossa burocracia é complicada, a deles é, em certos aspectos, ainda mais insana.
Para finalizar, qual o seu momento preferido do Meridiano de sangue?
Há duas passagens que considero especialmente impactantes. A primeira acontece após o primeiro ataque, quando o Kid está com a companhia do Capitão White. O trecho descreve a fuga pelo deserto, em que um menino mortalmente ferido tenta escapar ao lado do Kid. O momento em que o Kid percebe que poderia ser ele o que morre torna a cena muito forte. A construção dessa passagem é intensa. A segunda passagem é a cena final, mas não é o encontro do Juiz com o Kid. O que me marca é a imagem do urso dançarino. Há uma menina tocando um realejo enquanto um urso dança, antes de morrer. Essa cena representa algo maior: a natureza sendo derrotada. Considero uma sacada genial.
Luiz Felipe Cunha é jornalista e editor. Trabalhou como repórter no Jornal Cândido e tem textos publicados no Jornal Plural e BandNews Curitiba.