ENTREVISTA | Edney Silvestre 14/06/2024 - 09:13

Memorável

por Redação Cândido

 

Um amigo dele disse: "Edney é a pessoa com o maior número de reencarnações em vida que eu conheço". Isto, sem dúvida, está visceralmente ligado à história do menino nascido e criado no interior do país, filho de pai dono de armazém e mãe tecelã, que viriam a perder tudo num incêndio que devorou sua casa, quando a criança tinha apenas dois anos de idade e foi salva, tirado do meio das chamas. Que também sobreviveu a um acidente de Jeep, aos 14 anos; que, já rapaz, foi para o Rio de Janeiro em busca de um sonho e por lá chegou a passar fome.

O profissional do jornalismo, que, aos 40 anos, viria a estrear numa das maiores redes de televisão do mundo como correspondente internacional, já morando em Nova Iorque e escrevendo para O Globo. Daí para diante, foram incontáveis feitos como, por exemplo, a cobertura da Guerra do Golfo, no Iraque de Saddam Hussein; a cobertura dos horrores do atentado terrorista ao World Trade Center, naquele trágico 11 de setembro; a viagem do Papa João Paulo II à Cuba de Fidel Castro.

Não bastasse tudo isso, o menino de Valença (RJ) viria a prestar serviços admiráveis nas áreas do jornalismo cultural e literário. Apresentou o programa GloboNews Literatura por 15 anos e entrevistou personalidades como José Saramago, Fernanda Montenegro, Juliette Binoche, Woody Allen, Daniel Day-Lewis, Tony Kushner, Jon Bon Jovi, Paulinho da Viola, entre muitos outros.

Em 2009, Edney lança seu primeiro romance Se eu Fechar os Olhos Agora e ganha, nada mais nada menos, que os prêmios São Paulo e Jabuti. De lá para cá foram mais quatro romances publicados: A Felicidade é Fácil, Vidas Provisórias, Boa Noite a Todos e O Último Dia da Inocência.

Além destas, é autor também das obras Dias de Cachorro Louco, Outros Tempos, Amores Improváveis, Welcome to Copacabana, além dos mais recentes Segredos de um Repórter, em que dá dicas e conselhos para quem está iniciando no jornalismo audiovisual; e Contestadores – 20 anos – Setembro de 2023, edição comemorativa contendo entrevistas que realizou com as mais notáveis personalidades.

Edney, com o seu interesse, talento e sensibilidade foi e é uma testemunha da História, não uma testemunha qualquer, porque ele também faz a História.

Luiz Felipe Leprevost

*Esta entrevista foi realizada no Solar do Rosário, espaço cultural em Curitiba, no evento Jornalismo & Literatura, em bate papo com Luiz Felipe Leprevost, organizado pela Academia Paranaense de Letras, em maio deste ano.

 

Entre ajustados e desajustados

Eu me sentia muito desajustado. Todo mundo era feliz em Valença, todo mundo era bom nos esportes, todo mundo sorria, todo mundo parecia ter uma vida muito equilibrada e eu me sentia muito mal o tempo todo. Eu achava que tava errado, né? Aí eu li o Tonio Kröger, que é esse rapaz, é esse desajustado, uma pessoa desajustada, num mundo de ajustados. Todo mundo está bem, todo mundo está onde deveria estar, todo mundo faz o que deveria fazer. E só quando, depois de circular por várias partes do mundo, ele volta à cidade e descobre que não há nada de errado com ele. Cada pessoa tem o seu lugar no mundo, né? Ele comenta, quando tenta conversar com seus dois amores, que eram a encarnação daquela beleza eslava e percebe que eles não vão entender o que ele diz. Ele fala outra língua, embora fale o mesmo alemão. É uma outra língua. E eles sabem que não estão errados. Nem ele está errado. São universos diferentes. E aí isso me chutou. Aí eu percebi que eu não estava lendo qualquer coisa. Esse era Thomas Mann.

 

Primeiro ato - Fernanda Montenegro

Entra Valença. Flashback. Eu devia ter uns cinco ou seis anos quando eu fui ao Circo Teatro Universo, onde encenavam as peças “O Mundo Não Me Quis” e “O Céu Uniu Dois Corações”. São grandes melodramas. E como toda criança que vê teatro, você não vê teatro. Você vê aquele melodrama acontecendo na sua frente, histórias de amor, o amor que não consegue ser consumido pela sociedade. “O Mundo Não me Quis” era isso. E quando teve o período de influência do JK, tínhamos aulas de teatro e a minha noção não era pomposa. Quando meu pai comprou uma televisão, eu vi na TV Tupi uma peça com uma moça estranha, não bela, não feia, mas uma coisa peculiar. Uma jovem que tinha, sei lá, 30 anos, não sei, chamada Fernanda Montenegro. E a peça era “O Anjo de Pedra” de um tal de Tennessee Williams. Aí eu vi aquilo e fiquei “chapado”. Eu pensei “Que que é isso?!” Eu não sabia que essas coisas existiam, a vantagem da ignorância às vezes é essa. Aí eu comecei a procurar Tennessee Williams e comecei a ler.

 

Valença de outrora

Tinha um cinema em Valença, o Cine Teatro Glória. E você podia ir ao cinema sozinho a partir dos cinco anos, era uma cidade do interior. Essa é a Valença que eu conheci. Também tinha a tal da Biblioteca Pública da cidade, que ficava no terceiro andar de um prédio do Jardim de Cima, onde também ficava o Cine Glória. Então você chegava, subia no segundo andar, que morava a bibliotecária, e batia na porta dela. Vamos chamá-la de Dona Lurdes, que é o nome da minha mãe, e ela dava a chave. Subia mais um andar, abria a biblioteca e escolhia os livros. No começo eu escolhia, Tarzan, Lord Monté, coisas assim. Foi nessas que eu fui parar com os livros Caninos Brancos e O Chamado Selvagem, de Jack London. Mas eu não tinha ideia de quem era Jack London. Grande autor, não sabia. E aí comecei a ler grandes autores, mas eu não sabia disso. Hoje a biblioteca de Valença não existe mais, é uma pena.

 

Professora Lélia Gonzalez

Cheguei no Rio com 16 anos, sozinho. Eu tive a sorte de, lá em Valença, ter uma formação muito boa. Nós pegamos aqueles anos do JK que a educação era refinada, tinha grandes professores. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, queria fazer algum curso que tivesse História, que tivesse Ciências Sociais, que tivesse Literatura. E eu não sabia bem onde, então indicaram um colégio de aplicação na Tijuca. Eu fiz as provas e passei. Eu falo isso para louvar a educação que eu tive em Valença. Mas a gente tem alguns privilégios e não tem ideia deles. Eu tive uma professora, uma mulher negra, brilhante, e que nos apresentava uma visão do mundo como nunca tinha visto. Ela se chamava Lélia Gonzalez. Era uma pessoa revolucionária do pensamento. Apresentava visões originais para mim do que era o mundo, do que era política. Eu não conhecia isso. Essa temporada de três anos do colégio de aplicação valeram por 50 anos de pós-graduações.

 

Estreia no jornalismo

A minha entrada na televisão teve muitos tropeços. Eu entrei completamente despreparado e gosto de lembrar disso porque toda a minha vida teve alguma resistência. Minha primeira reportagem, que foi para o Jornal Nacional, era sobre um movimento que eu achava extraordinário naquele momento, que era o número de diretores, autores e atores negros na Broadway. Essa foi minha primeira matéria e eu literalmente não sabia segurar o microfone. Um homem que, na época, era muito poderoso na TV viu minha reportagem e disse: “Isso aí não vai dar certo”.

 

Gostar do que faz

Eu fazia boas entrevistas, sem falsa modéstia. Eu faço bem porque eu gosto. É o básico do jornalista, gostar das pessoas. Eu imagino que aqui todos estão acompanhando a cobertura que vem sendo feita pelo Jornal Nacional no Rio Grande do Sul. Recentemente teve uma reportagem do Pedro Bazan sobre uma criança que nasceu no meio disso tudo, uma senhora grávida que atravessou uma série de problemas e nasceu a criança. É uma matéria que pode ser ridícula, pode ser melodramática, mas o Pedro fez com tal sensibilidade, tal delicadeza, que essa matéria nos toca. Porque o Pedro gosta das pessoas, a Dulcineia [Novaes] gosta das pessoas. Para ser jornalista, para ser repórter, tem que gostar do que faz. Você não vai subir uma favela no meio de um tiroteio porque acha engraçado. Você faz porque o seu trabalho pode fazer diferença para aquelas pessoas.

 

Editando Fitzgerald

Quando eu me mudo para o Rio, eu lia muito em inglês, gostava de ler em inglês. Nessa época, eu vivia de traduzir histórias em quadrinhos e uns livrinhos que vendiam nas bancas de poucas páginas, que eram em inglês. Era tudo muito simples. Eu já disse que eu não conseguia trabalhar em nenhum lugar porque não passava, aí alguém disse que a “fulana de tal” estava cheia de traduções e precisava de alguém para auxiliar. Então, a pessoa perguntou se eu não traduzia em inglês e me deu O Último Magnata, de Francis Scott Fitzgerald, para traduzir. E eu não só encarei, como editei! Porque chegou numa hora lá que tinha uma festa que não acabava nunca e eu sabia que o Fitzgerald tinha morrido e não tinha conseguido editar. Eu falei “Ué, vou editar”. Achei natural. O jovem ignorante tem essas coisas, né? E aí quando eu apresentei, o cara disse assim: “Você tá maluco? Olha aqui essas cinco páginas faltando!”, e eu falei: “Eu editei, o Fitzgerald gostaria” [risos]. O Fitzgerald deve ter se virado do túmulo.

 

Encontro com Drummond

Falando do Rio de Janeiro daquela época, Ipanema não era esse lugar que as pessoas imaginam. Sofisticado, rico. Não era nada disso. Morava em Ipanema quem não tinha dinheiro para morar em Copacabana. Copacabana é que era chique. Algumas vezes, poucas, menos do que eu gostaria, cruzei com Carlos Drummond de Andrade por lá. Uma vez eu o vi, ele era magrinho. Vi aquele homem magrinho vindo e fui andando na direção dele. “Vou falar com ele, vou falar com ele. Vou dizer que sou admirador dele”. Aí ele passou por mim e eu paralisei, não tive coragem. [risos]

 

Memórias de cobertura

Depois de certas coberturas, a gente nunca é o mesmo. A cada dia somos diferentes. Vou falar do 11 de setembro. Passei 21 dias indo lá, todo dia. Então, as histórias que você vai cobrindo, que você vai contando, ajudam todos a compreenderem aquilo, a dimensão do que está acontecendo. Mas em nenhuma história que contei, por exemplo, falei do cheiro de carne humana queimada. Isso é um trauma que eu vou carregar para o resto da vida. Imagine quem está cobrindo Gaza hoje? Imagine o que é você entrar naquele hospital com aquelas crianças, com aqueles médicos mortos, os pacientes. Você nunca mais será o mesmo. E isso, a gente não sabe se vai acontecer, como vai acontecer.

 

Riqueza de uma vida que nunca se realizará

Eu tenho uma história aqui no Brasil, que me fez decidir nunca mais fazer matéria que tivesse criança, nunca mais. Eu fui designado para cobrir uma história de uns menores que tinham atacado o carro de uma mulher que estava com um bebê no banco de trás. Eles abriram a porta, puxaram essa mãe e um deles logo entrou no carro para sair. Ela foi tentar pegar o menino e eles saíram com o carro, com a criança pendurada. Gente, enquanto você está contando, é uma história horrível. Mas aí eu fui para o local… e tinha aquele rastro de sangue. Eu comecei a me sentir tão triste, tão triste. Eu fiz a matéria, mas eu voltei para a redação e falei: “Nunca mais, não faço isso”. Não, eu não consigo mais. Eu acho que talvez seja uma coisa de tempo, de idade. Quando eu era mais jovem, talvez não percebesse a riqueza de uma vida que nunca se realizará, que é a do menino João Hélio. Foi horrível o trauma para mim. Então é uma coisa que quando a gente abraça a profissão de jornalismo, temos que pensar que vamos ver aspectos humanos que são horrorosos.

 

Mundo cão

No 11 de setembro, nós não mostramos os suicídios, que não são suicídios. As pessoas estavam naquele prédio em chamas, a uma temperatura de 1000 graus. O natural é pular. Mas não mostramos os corpos esborrachados no chão. Estou citando um exemplo bem grosseiro, mas que dá uma ideia. Não mostramos essa imagem que eu falei para vocês desse rastro de sangue do João Hélio. A gente não mostrou. Não mostramos isso porque ver é outra coisa. Não sei se vocês já repararam, mas mesmo os órgãos de imprensa mais sensacionalistas raramente mostram o suicídio. Raramente, muito raramente, porque tem o tal do efeito copycat, né? O efeito cópia. Provoca alguém que esteja angustiado, que esteja pensando em cometer um ato desses a fazer também. Então, há muito desse “mundo cão” que o jornalismo não mostra.

 

Saramago, 11 de setembro e espião do Saddam Hussein

Meu trabalho mais desafiador foi entrevistar José Saramago, uma pessoa que eu tinha adoração, eu conto isso no meu livro Contestadores. Eu pensei que não ia me lembrar de nada, ia falar com ele e não lembrar nada, que ia me dar uma burrice. Foi muito desafiador e, o que me colocou no lugar, foi ele. Ele, a generosidade dele. Se não fosse isso, eu não teria feito a entrevista, que eu acho uma das melhores que eu já fiz na minha vida. Tenho muito orgulho de ter feito e de ter trazido o Saramago para um público maior. E o mais marcante, eu acho que foi ser o primeiro repórter brasileiro que presenciou o 11 de setembro, porque foi muito, muito marcante mesmo. Mas teve outros, como na Guerra do Iraque, que tinha um espião ridiculamente sentado ao nosso lado. A gente estava num hotelzinho bem “vagaba” mesmo e tinha umas cinco mesas, no máximo, e só duas opções: “tictic” com arroz, “tictic” era chicken, e sopa de frango. Essas eram as opções. Então, eu e o Alvarez, meu companheiro de trabalho, estávamos em uma mesa e não tinha ninguém no restaurante. Ninguém queria estar lá, obviamente. De repente, chegaram dois senhores de bigode e sentaram na mesa ao lado da gente. Ficavam calados e inclinados para nós, de costas. Era espião, com certeza, uma coisa meio Inspetor Clouseau, mas era o espião do Saddam Hussein e com ele a gente não brincava.

 

Tapete vermelho

É trabalho. Você acorda de madrugada, tem que estar com o smoking que você passou antes para alugar. O Oscar para nós é à noite, mas lá é cedo. Então você tem que, às seis da manhã, estar lá, vestido, arrumado, em pé, naquele tapete vermelho, com todas aquelas pessoas passando e você pensando em toda aquela frivolidade. Você não pensa na arte. Eu não pensava na arte. Eu só estava muito contente porque tinha a Fernanda Montenegro. Não era o Brasil apenas, era a Fernanda Montenegro, aquela mesma garota lá da televisão preto e branco em Valença. Eu estava agora, lá em Los Angeles, em Hollywood, cobrindo uma vitória dela, porque foi uma vitória dela. Ela não ganhou o Oscar, mas foi uma vitória, uma linda vitória. Então, tem esse lado. Mas é um perrengue cobrir uma coisa dessa.

 

Memorável

Eu não sou Saramago, nunca serei Saramago. Mas eu sou Edney Silvestre. Eu tenho uma experiência, uma vivência que é só minha. Eu tenho uma contribuição para dar. Pode não ser grandiosa, não é Jack London, nem Thomas Mann, mas é alguma. E esse reconhecimento do relativo, do poder, que eu tenho agora, me levou a ousar mandar o original de Se Eu Fechar Os Olhos Agora para a editora que me conhecia de Nova Iorque, a Luciana Villas-Boas. Eu falei para ela que havia escrito um romance e gostaria que ela lesse e visse a possibilidade de editar. Então, mandei por e-mail e ela me ligou. Ela me contou que estava esperando um romance passado em Nova Iorque, uma coisa meio Bonequinha de Luxo, glamour e tal. E ela deu de cara com uma mulher assassinada, brutalmente, horrivelmente assassinada. Dois garotos no interior do Brasil, anos 1960. E aí ela disse essa coisa que me deu um alívio: “Você escreveu um livro memorável”. Aí eu pensei “Eu escrevi um livro memorável?”. Foi extraordinário isso. Eu escrevi um livro memorável.