CRÔNICA | Isabella Prati 30/06/2023 - 10:35

Nem te conto

 

Isabella Prati

 

Atire a primeira pedra aquele que não gosta de uma boa fofoca. Afinal, existe algo mais humano do que se interessar pela vida alheia? Sejam os envolvidos celebridades, que não saem da boca do povo, ou os moradores do apartamento vizinho. Não há quem não se renda a uma intriga. Quanto mais torpes e fúteis forem os motivos por trás, melhor. Até mesmo quem se diz completamente indiferente anda mais devagar quando passa alguma comoção na rua. E aos que gostam de criticar, pergunto: qual a diferença entre um fofoqueiro e um detetive?

Devo dizer, no entanto, que melhor do que ouvir um bate-boca ou uma briga é presenciá-la. Aí sim temos o chamado “puro suco” do entretenimento, a epítome do espetáculo da existência, longe dos debates eruditos e pomposos, cuja importância constantemente nos é enfiada goela abaixo. Temos aqui uma apresentação do circo que é a vida, com roteiros que sequer os maiores dramaturgos da história poderiam imaginar. O sublime do mundano. Tive o prazer de presenciar um desses capítulos de camarote, com todos os elementos de uma verdadeira fofoca gourmet.

Nossa tragédia se passa em uma rua escura, iluminada por alguns postes e os resquícios de um pisca-pisca natalino que, já nos estertores finais, pulsava somente um verde enjoativo. No centro do palco, estacionado frente a um pequeno edifício, um carro de cor prata e com janelas abertas, no qual encontravam-se sentados nossos personagens. São 23h40 de uma Sexta-Feira Santa.

Ato 1. Abrimos já in media res, com nossos protagonistas exaltados devido a algum acontecimento prévio ainda desconhecido pelo público. Falam rápido, mas ainda é possível reconhecer os nomes dos envolvidos: em frente ao volante temos Bernardo, a sua direita uma mulher, cujo latido repentino de Dorinha, cachorra do casal vizinho, acabou encobrindo, então tomarei a liberdade de chamar de Camila e, por fim, Thaís, que não está presente, mas é mencionada inúmeras vezes e aparenta ser o pivô de tal confusão.

A discussão segue e o enredo começa a se mostrar: Bernardo e Camila são um casal, sendo Thaís a melhor amiga desta. Voltando de um evento social, a mulher confrontou seu namorado sobre algo relacionado a sua amiga. Os espectadores agora apressam-se em garantir um assento que ofereça visibilidade e uma acústica privilegiada, uma janela de varanda, por exemplo, de onde podem acompanhar o desenrolar da novela o mais confortavelmente invisíveis possível. Começa então, entre sussurros e cochichos, a especulação: foi traição? Ele traiu ela? Ela traiu ele? Já são vários os olhos e ouvidos encobertos pela noite quando nossa protagonista brada “Com a minha melhor amiga!?”, encerrando assim o primeiro ato.

O Ato 2 já começa a todo vapor. Camila, enfurecida, confronta Bernardo sobre um caso que ele estaria tendo com Thaís. Incisiva, ela traz à tona diversas atitudes suspeitas de seu namorado e de sua amiga. Bernardo, por outro lado, continuamente nega qualquer argumento feito por ela, enquanto tenta tirá-la de louca e histérica. Finalmente, a revelação bombástica: com uma voz cheia de soberba, o homem exclama: “Você não tem nenhuma prova!”, ao que a mulher replica: “Eu tenho todas as mensagens!”. Xeque-mate! O público vai à loucura! Ela tinha as mensagens trocadas entre os dois salvas no celular, as provas da traição. Como ela conseguiu tal façanha? Ninguém sabe e, francamente, ninguém se importa. Ficará como um furo narrativo que críticos futuros deliberarão em análises longas e maçantes.

Seguida à grave declaração, chegamos ao clímax. Os dois personagens agora vociferam um contra o outro. Um embate monumental. As palavras são do mais baixo calão possível. Bernardo manda-a para aquele lugar. Camila, sem medo, começa a atacar as mais diversas inseguranças do seu ex-namorado, que tenta abafá-la esbravejando e ameaçando-a. Ele tenta justificar seus atos, mas a outra o rebate. Nem mesmo as mães de ambos são poupadas. Os espectadores estão agora grudados às janelas, a fim de não perderem uma palavra sequer do que os dois estão dizendo. O tom das vozes e a plateia só aumentam.

Será que era assim que se sentiam os ingleses no globo, presenciando a mais nova criação de Shakespeare? Ou os gregos, colados a seus assentos no anfiteatro, assistindo a nova peça de Sófocles?

Já é sábado quando, enfim, chega-se ao ato final. No lugar dos gritos, o que se tem agora é silêncio. Camila sai do carro. Xingamentos finais são trocados. Ela bate a porta do carro, um estrondo que reverbera pela rua inteira e por fim, entra no edifício. O motorista, agora sozinho, fecha as janelas do automóvel e sai. Apagam-se as luzes. Fecham-se as cortinas do palco. A plateia se divide. Alguns tentam voltar a seus afazeres anteriores. Outros ainda permanecem em seus assentos um pouco mais, na expectativa de um encore.

Em algumas horas a peça, de apresentação única e exclusiva, será resgatada e recontada das mais diversas maneiras. As mesas redondas terão seus lugares preenchidos por uma gama diversa de comentaristas, especialistas em nada, discutindo, se posicionando e opinando sobre os eventos passados. Lacunas serão preenchidas com uma grande dose de liberdade memorística. O espetáculo será reprisado até que haja uma nova estreia, que, se for de minha preferência, será um barraco daqueles!

 

 

 

Isabella Prati é estudante de Letras na Universidade Federal do Paraná. Esta crônica é uma das ganhadoras da 5ª edição do Concurso Literário Luci Collin, promovido durante a XXV Semana de Letras da UFPR.