CRÔNICA | Daísa Rossetto 30/11/2023 - 15:04
Reparto
No poema "A vida na hora", Wislawa Szymborska entrega-se:
“Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.”
Em meu papel impermutável, guardei aos ecos as rodinhas da mala que giravam corredores quando um súbito sinal palpitava em mim… Não há para onde voltar e não há para onde ir. Foi essa a sensação arrastada, não como as rodas, mas como a imprecisão do vento que me anotou sinônimo da súbita calma. O vento fazendo caminho, e não haver a matéria de um lugar de retorno nem a definição de uma meta mira. Estar sendo basta.
Não sei se o tempo é pouco ou muito, sei que as filigranas do nada, a sutileza súbita de qualquer coisa, cotidiana ou banal, às vezes, é o que arrasta o mundo, arremessa, lança mares de lágrimas ou arquipélagos de gargalhadas.
Não tenho apego ao tempo, nem rastejo os anos, calendários são papéis para dobraduras, lançar aviões entre repousos de nuvens e águas. A concretude que me esquenta não são mais que minhas noites no escuro a ver estrelas no alto do barulho da chuva. Pingo a pele arrepiada. E dos quadros não gosto dos que vejo a técnica, a métrica amarrada, um desenho bonito, vou por aquilo que escapa, o risco, a mistura da tinta, a transparência que incita, cair num certo magnetismo de mistério, de ser sem motivo.
Continuo — talvez ao infinito — entre ruas da primeira vez, riscada no desenho do tempo mágico, o tempo sem nome do riso no descaminho, a borboleta batendo ondas de mares, sentindo o sol avermelhar a cara. E o essencial talvez seja mesmo a rosa, borrada, às vezes, num canto da marca fotográfica ou o que passou antes da abertura à luz, escapando da moldura congelada.
Uma fração segundo é mundo infinito como não serão os anos, os giros do relógio. Giram girassóis, moinhos, calor em lampiões, giram trechos rabiscados no invento de histórias quando as folhas caídas, caindo…
Da vida não sou a matéria deste corpo, nem tempo, nem as coisas. Não acho que a vida seja pouca. Reparto sem concreto nem concretudes. O leve instante penugem nas multiplicações soltas, no ar. Cores e luzes, trechos e impressões, imaginações de um suposto agora… Bato as asas, é uma fração do nada.
Estão girando as dobras de um tempo espaço, corações palpitam, e de mim espero que estejam esquecidos. Falo das coisas que não sei...
Tenho a ânsia voraz da infinitude do nada, um instante quando, batendo as asas, estou me desmanchando. Sei que meu papel de ser assusta, ainda assim é impermutável. O desconhecido… Bato as asas ao infinito, uma única vez, e me desmancho.
Daísa Rossetto é doutoranda em Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra. É autora de Quando O Vento Sopra Em Israel (Editora Mikelis, 2017), participou da coletânea Outono Literário: Mulherio em Prosa e Verso (2018), do Mulherio das Letras Europa, e participou da coletânea As Coisas que As Mulheres Escrevem (Editora Desdêmona, 2019). Também fotografa e pinta. Parte do seu trabalho está disponível em www.daisarossetto.com.br