CRÔNICA | Cristiane Sobral 30/08/2021 - 16:07

Flecha dourada

 

Em 2021, em meio ao caos da pandemia do Covid-19, ao invés de matar, comecei a encantar um leão por dia. Tem sido mais leve. Quem sou eu? Uma mulher negra vivendo no país com a maior população negra fora da África, mais de cem milhões de cidadãos em um dos países cujo racismo é o mais sofisticado do mundo. O Brasil tem a maior população de descendentes de africanos fora da África. Apenas um pouco mais 320 anos após a “abolição” da escravatura, tenho muitos desafios a enfrentar no meu cotidiano, o sistema estruturante, o capitalismo, o machismo, a violência doméstica, a opressão no mercado de trabalho, os padrões estéticos excludentes e a intolerância religiosa.

Os confrontos da minha jornada são grandes mestres, responsáveis por me constituir e forjar como sou hoje, flexível, estratégica, sagaz, assustadoramente feliz, sempre em busca do bem viver, apaixonada por quem me tornei. 

Não me escondo atrás de máscaras para disfarçar minha identidade. Sou flecha dourada, Xamã breve menina ferida hoje curandeira inesperada, bordadeira de flores em cicatrizes cauterizadas em minha pele no fogo dos dias umbrais. 

Para enfrentar as batalhas tenho alguns métodos especiais. Uso o meu olhar de águia na madrugada. Se for preciso defender o meu corpo negro e feminino, costumo disparar uma flecha só, certeira.

A mágoa e toda a lama que ela carrega jamais será melhor do que a minha paz. Minha paz é negra e tem búzios nos olhos. É guerreira. Com a força de Exu, o filho das águas salgadas, eu me levanto, diariamente, intensa, na ousadia das marés. Pasmaceira não é a minha paz. Proclamo uma paz criativa em forma de gozo a jorrar entre as minhas pernas. Ouso parir a mim mesma todos os dias, renascendo. Exu, é meu parteiro. Sem ele, nada se faz. Ele, o porteiro mágico, sempre na estrada, na encruzilhada, contrariando a ordem sem fazer desordem, no terra a terra, em luta pelos meus caminhos. 

Sou também a mulher da gentileza e beleza, do céu vestido de rosa, complexificada, humanizada, misturada na própria natureza que me compõe. Meus espelhos seduzem, mas também cegam e matam. Não duvidem da força da encantaria. Na ventania esplendorosa passo azeite dendê cheio de gozo apimentado entre as pernas. Me lambuzo do meu líquido fértil, ressurgindo inteira no alvo de dentro, cheia de afeto no coração e reinventando cura e autocuidado nessa vida dura. Se consigo dormir? Sim, durmo em paz, meu destino está por mim traçado, trançado nos meus cabelos crespos lindos e fortes.

 

Cristiane Sobral é uma atriz, escritora, dramaturga, poeta. Carioca radicada em Brasília, é membro da Academia de Letras do Brasil (Seção DF) e publicou, entre outros, Não Vou Mais Lavar os Pratos (Thesaurus, 2012), O Tapete Voador (Malê, 2016) e Olhos de Azeviche (Malê, 2017).