CONTO | Susy Freitas 31/10/2023 - 15:03

White tears

 

Deitada na espreguiçadeira do terraço, eu podia ouvir as crianças brincando perto da escadaria que dá pro Rio Negro. Corinne Marchand cantava “Sans toi” em looping lá embaixo, no som da sala. Os pequenos corriam despreocupados com as águas que tomavam a rua em anos de cheias rigorosas como aquele, enquanto gatos bocejantes enfeitavam as bordas da cena insólita. Uma única nuvem lutava contra os raios de sol brancos, que me faziam lacrimejar. A bandeira anarquista abandonada pelo antigo morador serpenteava seu desbotamento no chão.

Produzir LSD não é fácil. Demanda equipamentos específicos, espaço adequado, matéria bruta nada corriqueira e domínio. Isolar a pureza de alcaloides lisérgicos das cravagens temperamentais me parecia quase impossível no começo. Mas eu e Branco tínhamos tudo o que precisávamos naquela casa na Xavier de Mendonça, e ele foi um mestre paciente. Por fim, atingi meu produto ideal em agosto, como bem comprovei ao sentir os primeiros efeitos do quadradinho sob a língua no sol do verão amazônico.

Virei-me para Branco, deitado na espreguiçadeira ao lado. Ele já estava me observando. “O nome será White Tears”, decretou, enquanto as duas manchas despigmentadas de sua face indígena ascendiam rumo àquela nuvem. Por sorte, o horizonte se curvava, facilitando o encontro. A faixa de “aluga-se”, que nunca retiramos da casa, trepidava enquanto os números de contato saiam voando com os pombos. Após várias goladas ininterruptas de suco de maçã, ele completou: “Vai ter o desenho de uma gota branca e o arco-íris ao fundo”. O som das águas começava a arder, e o grito das crianças tinha gosto de abacate.

O laboratório já estava montado antes de eu chegar. “Não fazemos perguntas”, instruiu Branco em vez de falar “Olá” ou “Bom dia” quando nos conhecemos, o que me fez simpatizar com ele de cara. Como tínhamos a mesma formação, passávamos horas debatendo os processos que levariam às especificidades da White Tears e todas as conversas giravam em torno do produto único que deveríamos conceber. Nosso pagamento vinha de um mecenas, o excêntrico Senhor K., o grande fazendeiro. Ele colocava o dinheiro em envelopes rosa choque na caixa de correio, cada um endereçado a um codinome. O meu era Medonha.

“Minha teoria é que o Senhor K. é um psiconauta milionário”, balbuciava Branco, às vezes, enquanto trabalhávamos no laboratório. “Essa droga vai para um círculo bem restrito de usuários, uma espécie de confraria de entusiastas psicodélicos, talvez. Não creio nem que é comercializada”.

Eu não tinha a mínima curiosidade em saber quem era o Senhor K., nem o que ele fazia com o LSD que produzíamos enquanto tentava atingir a perfeição da White Tears. Os estudos sobre o processo de manufatura, dosagens e melhores formas de consumo dependendo do objetivo da viagem se tornaram tanto o meu trabalho quanto o meu entretenimento.  Talvez por isso Branco sempre elogiava meu desempenho, pois ele mesmo não era tão aplicado, embora seu domínio na atividade fosse aparente. 

Branco me dava leituras e tarefas. Além disso, nunca se abstinha de tirar minhas dúvidas, mesmo que surgissem de madrugada. Primeiro, eu as anotava e passava o papel por debaixo de sua porta; se estivesse acordado, ela era aberta e conversávamos. Depois de um tempo, eu mesma abria a porta do quarto em qualquer horário. Já desperto pelo rangido, ele aguardava minha pergunta sem sair da rede. Por fim, levei sua rede para meu quarto, onde conversávamos sobre drogas alucinógenas até dormirmos.

Os cuidados que tomávamos para não sermos descobertos eram um show à parte. Para os vizinhos, por exemplo, éramos músicos contando com a generosidade de um benfeitor. Branco tinha uma tuba e eu, um violoncelo, e carregávamos os instrumentos para cima e para baixo pelo Centro, por ordem do Senhor K. “Quem não aparece, não é lembrado” era outra das instruções de Branco, repetindo as palavras deixadas por nosso benfeitor num envelope amarelo manga. Também deixávamos música clássica tocando num amplificador ligado na sala para fingir que estávamos ensaiando. A minha trilha era a execução de Yo-Yo Ma para o Suite de Cello No. 6 de Bach. Já Branco escolheu algo mais arrojado, uma sonata para flauta de Rudolf Escher, do final dos anos 1940.

A casa, que preenchia as redondezas de música, tinha um corpo longo, antigo e ventilado, assemelhando-se a um barco de recreio. Sua pele de azulejos laranja e padrões traçados em marrom lembrava um caleidoscópio gigante. O pátio tinha pedras importadas com o mesmo desenho. Minha parte favorita era o banheiro da suíte, que Branco cedeu quando me mudei. Era, do chão ao teto, revestido de azulejos rosa, incluindo a banheira. O descanso acontecia no terraço, de onde decidimos que não tiraríamos a bandeira. “Aywã pituna1”, dizia Branco no que restara de sua língua. Ali admirávamos o braço de rio pútrido e o pôr do sol absurdo ao final do expediente tomando cervejas.

“Quando eu era pequeno, lá no interior, não gostava de tomar banho”, me disse Branco, assim, do nada, as pupilas dos olhos negros quase imperceptíveis em sua dilatação. “Daí essas manchas apareceram e os moleques da escola começaram a me chamar de Pano Branco. Diziam que eu era porco, por isso tinha fungos na cara, essas coisas. Só depois que diagnosticaram o vitiligo. Mas o apelido ficou. Idiota, né?”.

O efeito da White Tears era potente. Digo isso porque ao mesmo tempo em que Branco contava essa história, sua boca não se movia, mas eu escutei tudo e ficamos rindo. Foi uma intimidade nova. Nunca conversávamos sobre nada além de como fazer LSD, com que cravagem ele já trabalhara, como lidar com a fragilidade das moléculas em situações tão adversas de produção ou se já esteve em grandes laboratórios.

“O Senhor K. tem um senso de humor ácido”, rebati, ainda entre as risadas geradas pela origem do codinome Branco. “Ácido, entendeu? Ácido?”.

“Ácido”, ele repetiu. “O seu veio de onde?”.

“Meu senso de humor?”.

“O codinome. Esse Medonha aí”.

“Ah, era um negócio que uma amiga falava”, respondi, escondendo os dentes. As curtas lágrimas de mais cedo se tornaram cascas em meu rosto, mas meu entorno escureceu com a lembrança, como que sob o efeito de um filtro. “Eu gostava muito dela. Era senhora já. Dizem que ela virou mendiga doida dos gatos, lá pros lados da Torquato Tapajós. Deve ter morrido faz tempo”.

“Deixa entrar e sair”, alertou Branco, apontando um dedo para a cabeça com uma mão e me estendendo a garrafa de suco com a outra. “Toma, bebe. Se hidrata”. Mas novas lágrimas recobriram as ressecadas.

“Vamo pro mundo rosa!”, ele então decretou, babando perdigotos de maçã e me puxando da espreguiçadeira para o banheiro da suíte. Corinne Marchand berrava nos alto-falantes: “Et si tu viens trop tard / On m'aura mise en terre / Seule, laide et livide / Sans toi, sans toi2”. Como ele sabia que eu chamava o banheiro de mundo rosa?

A banheira pareceu ter enchido em segundos e Branco me afundou nela com cuidado. Bolhas de chita se formavam do meu vestido florido sorvendo a água enquanto o choro submergia até o desaparecimento. A luz refletida dos azulejos rosa transformou seus cabelos desgrenhados numa flor de jambo, e a flor se sentou de frente para mim na banheira, ainda vestida. Os dedos do vento entravam pela janelinha e acariciavam nossas cabeças como se fôssemos crianças por horas, acho. Eu podia vê-lo assim, menino, correndo rumo a águas revoltas em São Gabriel da Cachoeira até esmaecer entre as correntes da morte com um sorriso. Já eu ficaria escorada num balcão, esfregando as rodinhas só de um dos patins para frente e para trás.

“Agora que você tá pronta, o Senhor K. deve te mandar pra outra cidade”, disse Branco, olhando as gotas pulsantes sob a torneira da pia. “Provavelmente pra treinar outro novato”.

“Como assim?”, retruquei. “Eu mal consegui produzir a White Tears”.

“Você tá pronta há meses”, ele explicou. “Eu só queria te dar um teste final. Criar tua assinatura”.

Lidar com mudanças nunca foi o forte de pessoas como eu. Os rituais, por mais discretos que fossem, ainda me conduziam tanto quanto na infância. Uma vez estabelecida a rotina na Xavier de Mendonça, o silêncio de Branco se tornou parte da minha paz. Prova disso era o toque de suas canelas nas minhas dentro da banheira, um contato que não me gerava incômodo algum quando mal conseguia disfarçar a irritação com o mais breve cumprimento vindo de qualquer outra pessoa. Riscos roxos escorreram dos meus olhos, e dos dele também.

Os azulejos cozinhavam nas paredes que insistiam em reter o calor. Chorando, Branco atravessou as solas dos meus pés com as mãos, ou pelo menos foi o que senti. A massagem durou algum tempo, até que ele abraçou minhas panturrilhas e ficamos assim, imóveis, sem nada a dizer. Com a proximidade do pôr do sol, enfim nos levantamos, decididos a não revelar o segredo da White Tears e continuarmos o trabalho de sempre, juntos.

Tupã uiku paranã upé3”, ele disse. “Vamos”.

E saímos correndo até o final da Xavier de Mendonça, rumo ao rio.

1 “Logo vem a noite”.

2 “E se você chegar tarde demais / serei enterrado / sozinho, feio e lívido / Sem você, sem você”.

3 “Deus está no rio”.

 

Susy Freitas nasceu e vive em Manaus (AM). É autora dos livros de poesia Véu Sem Voz (Bartlebee), Carrego Meus Furos Comigo (Urutau) e Alerta, Selvagem (Patuá), que venceu o Prêmio Literário Cidade de Manaus. Atua como editora na revista amazonense Torquato. O conto “White tears” abre o livro Madnaus, sua estreia na prosa, que em breve será publicado pela Editora Reformatório.