CONTO | Rosana Felix 21/12/2022 - 15:23

Coleção de livros

 

O interfone toca. É o porteiro avisando sobre a caixa da coleção de livros, encomendada há meses de um sebo do Rio de Janeiro e enviada como um pacote comum pelos correios, para a entrega não ficar mais cara do que a coleção de livros em si. Marisa retira a caixa do elevador, desembrulha os volumes com capa e acabamentos em amarelo e se sente satisfeita como uma criança que completou um álbum de figurinhas. Coloca a nova coleção de livros — Letras Italianas — em cima da mesa, para organizá-la depois de finalizar um projeto do escritório de arquitetura.

Em vez de suco de laranja e tapioca, Marisa decide tomar leite frio com bolachas; assim ela economiza um tempinho, que deve ser suficiente para colocar a nova coleção de livros na estante. São 26 volumes, há um espaço para eles ao lado do vaso cinza. Na verdade, não. Ao lado do vaso cinza só cabem 23: a Morante, o Pavese e o Maggiani ficariam de fora. Suspira. Troca de roupa e senta-se em frente ao computador para trabalhar.

Conforme o cardápio salvo no organizador de tarefas do celular, é dia de filé de frango e batatas assadas para o almoço. Mas Marisa decide fazer um macarrão instantâneo, assim ganha mais um tempinho para arrumar a coleção de livros sem atrapalhar seu projeto. Ela precisa finalizar uma planta baixa para enviar ao chefe, tem de se apressar.

No escritório, colocava um fone de ouvido e se concentrava a fundo nas tarefas. Durante o home office, ela gasta bastante tempo para dispor os objetos de forma simétrica. No guarda-roupa, mescla a composição por cores e pelas estações do ano — que se apresentam diversas vezes por dia na cidade onde mora. Na geladeira, coloca os alimentos em potes coloridos, cada qual no seu nicho: laticínios, carnes, frutas, verduras, legumes. No varal, coloca duas peças pequenas e uma grande, alternadamente, de modo a garantir uma melhor circulação de ar — na verdade, a organização começa no momento em que coloca as roupas para lavar, ou, ainda, quando escolhe o figurino de cada dia, sem se descuidar com as cores, para não deixar desfalcados os espaços no guarda-roupas. Mas a nova coleção de livros precisa ser arrumada em ordem numérica crescente. Marisa precisa respeitar os numerais impressos em cada lombada.

O nicho do vaso cinza na estante tem formato de “u”. A coleção de livros deveria ficar à direita. Uma opção é colocar os volumes na prateleira do alto, tirando os livros que estão lá. Toda aquela fileira, porém, é de ficção norte-americana. Marisa pega a trena e tira as medidas. Não há como rearranjar esses livros em outro local para dar lugar às Letras Italianas. O alarme do celular toca, a pausa de uma hora do almoço acabou.

Marisa pega o fone de ouvido e senta-se em frente ao computador, mexendo o cursor para desenhar as linhas retas da planta baixa, mas tudo fica embaralhado. Depois de algumas tentativas frustradas de se dedicar ao projeto arquitetônico, ela abre um arquivo novo, desenha uma estante e, com as medidas que tirou com a trena, faz o espaço para a nova coleção de livros. Cabe perfeitamente em várias prateleiras. Como ela não consegue arrumá-la?

De volta à sala, Marisa vê o obstáculo: quase todos os espaços já estão ocupados de forma ordenada. Na prateleira mais baixa ficam os livros com formato maior, como os de arte; na segunda prateleira, os de não-ficção; na terceira, a literatura brasileira; na quarta estão os europeus. Talvez a quinta prateleira seja o local ideal para a nova coleção de livros. Ao tirar os autores asiáticos e latinos, surge um espaço que parece adequado. Maneja os volumes na ordem numérica crescente. A nova coleção de livros cabe ali, mas ela sente que esqueceu de algo. Ah, sim, precisa reorganizar os asiáticos e latinos.

Com o celular em mãos, ela manda uma mensagem para o chefe: “Não sei se foi o motoboy ou o restaurante, mas a comida que comprei no delivery não me fez bem. Posso mandar o projeto amanhã?”. Nem espera a resposta.

Tenta colocar os asiáticos e latinos ao lado do vaso cinza, mas tampouco cabem.

Marisa encara a estante. Sabe o que deve ser feito. A não ser pelos livros da primeira prateleira, retira todos os demais e os espalha na mesa da sala. Então, reorganiza: todos juntos, os brasileiros, latinos, norte-americanos, europeus e asiáticos, mas desta vez apenas em ordem alfabética. Com exceção da nova coleção de livros.

Já de noite, Marisa liga a iluminação embutida com fitas de Led da sala e contempla o resultado de seu trabalho. Fica encantada com o colorido da estante. Mas há uma falha: a nova coleção de livros, que forma um grande bloco amarelo à esquerda da quinta prateleira. Desliga a iluminação de Led e acende as luzes do lustre principal, para averiguar. A falha continua lá. Por um momento, pensa em projetar um novo móvel, talvez com mais prateleiras e menos nichos para vasos.

Ao sentar em frente ao computador, escreve um e-mail ao sebo do Rio de Janeiro. Quer devolver as Letras Italianas.

 

 

Rosana Felix (Curitiba, 1978) é formada em Jornalismo e mestre em Políticas Públicas e atua como repórter desde 2001. Em 2016, teve um conto publicado na coletânea A Natureza das Coisas Breves (org. Tiago Novaes). O texto publicado pelo Cândido foi produzido durante a oficina De Próprio Punho, ministrada na Biblioteca Pública do Paraná pelo escritor Rafael Ginane, e integra o terceiro livro da coleção homônima.