CONTO | Richard Roch 30/03/2023 - 11:22

 

Previdência

 

Hoje está passando um filme de terror.

Sérgio Sampaio

 

Eurico fez o pix e saiu. Depois de guardar o recibo no bolso ele decidiu que não voltava. Só ia subir pegar as coisas e comunicar que não tava bem. Tinha sido elogiado na avaliação trimestral. A proprietária dando bom dia e bom descanso. Não tinha como dar errado e naquele dia não deu. Tenho enxaquecas HO-RRÍ-VEIS Eurico. Não precisa nem trazer atestado. Descansa mas não esquece. Amanhã oito horas relatório no meu e-mail. Bye bye querido. Pode fechar quando sair.

Tenho uma tarde. Desenlatou do elevador pensando nisso e ganhou a rua. O ônibus parava do outro lado da praça mas resolveu voltar andando. Tantos ombros e pernas. Tanta gente mexendo no celular fumando cigarro dizendo que não tinha tempo. Que tava sem grana. Tanta gente de cara cansada. Com o que economizou da passagem Eurico parou num caldo de cana. Sentou na banqueta e esperou diminuir a dor.

Se ossos e vigas têm alguma coisa em comum não sei mas o fêmur de Eurico nunca mais foi o mesmo depois de remendado com quatro pinos. Ele lembrava quando via alguém de muleta. Em porta giratória. Quando andava muito. Quando o tempo virava. Se o tempo virava os pinos pareciam recém-colocados no meio da coxa. Tinha alguma coisa a ver com mudanças rápidas de temperatura. Com a densidade do material.

Chegou em casa passou a tarde se medicando. Puxou seda. Fez piteira. Acochou lambeu fechou. Em varandinha de apartamento antigo cabe xícara e cinzeiro no beiral. Lá embaixo pessoas entravam e saíam da lanchonete. Algumas ficavam na porta com as mãos estendidas. O homem-aranha vendeu um pacotinho de bala a cada seis sinais e esfriou quando veio a noite. Eurico fechou as janelas. Desligou a tevê e ficou no sofá alisando a cicatriz. Depois foi dormir. Sonhou com o mar.

Saiu até em jornal sensacionalista da época. Criança pé quente é atingida por raio e só trinca um osso. A chance de ser atingido é de uma em um milhão. Durante a chuva e em locais abertos aumenta pra uma em mil. Como a mãe e o pai do Eurico recusaram convites de programas de auditório a história caiu no esquecimento. Ele lembrava que subiu na árvore pra se esconder da chuva. Lembrava de ter pensado que era o mais seguro a se fazer.

Eurico ficou olhando pro teto do quarto antes de desligar o despertador. Pensando se corria atrás de atestado mas ter moral na firma não faz ninguém insubstituível. Bora bora bora. Abriu o relatório do mês passado mudou a data porque na real nada mudou. Podia ser o do ano retrasado. Podia ser tanta coisa. Mandou o e-mail e saiu de casa sem tomar café. No caminho até o ponto não olhou pra cima. Quando vagou lugar sentou. Lá pelas tantas foi como se uma pedra caísse no teto do ônibus. Depois outra. Depois todas as janelas foram fechadas. De granizo foram vinte minutos. Foi só o começo.

Árvores caíram bairros ficaram sem luz em muitas ruas a água cobria o pneu dos carros. O vento cada vez mais forte. Pessoas perdendo tudo em enchentes. Quando o ônibus parou na praça Eurico já tinha se atrasado três horas. Decidiu que era mais seguro se abrigar no trabalho. Primeiro um cone passou voando. Depois um orelhão. Aí o Eurico.

O motorista disse pra repórter que o rapaz insistiu pra ele abrir a porta. Eu não queria abrir. Quando ele subiu eu já tinha visto que ele tava com a perna machucada. Mas ele insistiu. Foi mancando no meio do fim do mundo e eu até fiquei feliz quando vi ele entrando no Previdência. Depois achei que eu tava desmaiando. Mas não. Era o prédio. Nossa sorte foi que caiu pro outro lado. Sorte… A gente trabalha a vida inteira. Termina assim.

A perícia realizada nos escombros do Previdência concluiu que areia de praia foi usada na construção. Familiares das vítimas entraram na justiça. A construtora declarou falência.

 

 

 

Richard Roch é barista e escritor, nascido e criado no bairro do Fazendinha, em Curitiba. Publicou Maratonistas do Quênia (2021), Preto de Alma Preta (2020) e participou da antologia de contos De Próprio Punho (2022). Foi cronista no jornal Plural e Integra o coletivo literário Membrana.