CONTO | Rafaela Tavares Kawasaki 29/10/2021 - 11:21
Fliperama
Rafaela Kawasaki Tavares
As batidas emborrachadas repercutem em crescendo, separam-se aos poucos dos sons ao redor. Antes de se virar, Duda reconhece o allegro ma non troppo das sandálias infantis. Quase aspira o aroma tuttifruti que há três dias se misturaram à intimidade de cheiros do seu apartamento. São os anúncios de Isa desde que a sobrinha se hospedou na quitinete junto da mãe. Os passos refletidos contra o piso espelhado de tão limpo se adensam na corrida. Isa carrega um sorriso de reticências ao se distanciar do quadrupede motorizado de pelúcia — o unicórnio, deformado para se tornar uma montaria afofada, se conforma imóvel com o abandono. A vacância exposta da gengiva rosada entre dois dentes de leite é gelatinosa como uma expectativa. E agora, o que mais?
Isa desenhou ziguezagues com as rodas do unicórnio pelos pisos marginais à praça de alimentação. Antes de agarrar o pescoço encurtado da monstruosidade robótica e suplicar por um passeio, ela investigou estantes com brinquedos enjaulados em plástico e papelão. De mãos obedientemente dadas à tia, apesar do calor, percorreu corredores encerados com olhos nas vitrines — roupas de toda sorte, pôsteres com celebridades maquiadas, simulacros de cômodos de casas sofisticadas, sapatos promíscuos, aparelhos de ginásticas, bugigangas para celulares, charutos, utensílios coloridos demais para terem sido fabricados para adultos, artigos caros de papelaria, roupas de toda sorte, pôsteres com celebridades maquiadas. Elas orbitaram o contorno dos dois andares e só cinquenta minutos se passaram. Eram quatro horas ainda. Os arredores se diluem quando Duda percebe.
Não quero ver nem a sombra de vocês duas até as seis, viu? Nem posso! Você entendeu? Malu era imperativa mesmo ao pedir. A irmã mais velha contraiu o rosto em um sorriso quase sedutor, restos úmidos da língua revelados pelos espaços entre os dentes pequenos. Duda quis gritar ao ser expulsa da própria casa, porém o silêncio morno alagou sua laringe.
— A tia está bem? Está? Está bem mesmo?
Só ao ser repetida a pergunta a atingiu. As palavras deslizaram pela concha sobre o lóbulo e se deslocaram pela corrente de células nervosas até formar o significado. Duda se sentiu invocada. Talvez tenha sido a ênfase que estalou como um tapa — a palavra “mesmo” produzia eco. Ou era o fato de ela plantar preocupação em uma cabeça pequena demais para desassossego que a raspou por dentro.
— Olha só, tia, uma sereia!
Duda estava pálida, ou ao menos o resfriamento das bochechas insinuava uma fuga de sangue. No entanto, Isa já estava alheia a qualquer interrogação sobre o bem-estar da tia. Gastava um fôlego oscilante em direção à máquina de garra, um mostruário neon abarrotado de criaturas felpudas. Tinham a maciez do mundo de Isa, ainda acolchoado e amortecido. As músicas sintetizadas de 8 bits transportaram Duda para uma forma de vida quando máquinas como aquela eram altas e fliperamas eram refúgios. Ela própria era um espécime do tamanho de Isa. Tudo era espanto quando Duda e Malu se cercavam por vozes eletrônicas em bravatas, apitos, tilintar de moedas e fichas eletrônicas em queda. Havia um encantamento ali, apesar de todo final de semana elas visitarem o game center com os pais. No glossário doméstico, o game center só era chamado de fliperama em vozes saudosas pelos dois adultos. Tingido por um bombardeio de luzes, o pai era alvo da torcida familiar enquanto pescava bichinhos de pelúcia. Ainda não havia estranheza em observá-lo em um mundo infantil, ainda ele e a mãe não tinham uma auréola de ofensas berradas.
— Queria tanto a sereiazinha, tia. Ela tem cabelinho azul, você viu?
Duda rumina a certeza de que desperdiçou cinco reais ao ver o gancho se movimentar amolecido. Está viciada essa máquina, o pai diria no tempo em que sua palavra ainda era sentença. A sereia costurada em um tecido cintilada é apenas acariciada.
— Não tem importância, Isa, nem era tão bonita assim.
— Ela é linda, tia, e eu quero.
Engole esse choro ou te deixo para trás! A mãe se esvaziava de tolerância para birras. Quando Duda chorava em ambientes públicos, sofria um breve abandono e rastejava humilhada atrás das pernas sempre cobertas por meia calça marrom. Duda sente que quem dá passos é a mãe, não os próprios ossos e músculos. Há uma vertigem em ser seguida por uma criança ofegante demais para resmungar.
— Por que a gente não começa outra brincadeira mais legal, hein?
Quando os pais se isolavam em casa para brigar, Malu escapava pela porta lateral entrelaçada aos braços de Duda. Iam até butiques e recolhiam todas as peças de roupa que conseguiam carregar até os provadores. A irmã propunha que fizessem combinações extravagantes para que por alguns minutos fossem não mais Duda e Malu, e sim outras meninas. Uma vez, a irmã mais velha quis arriscar e escondeu biquínis debaixo das roupas das duas. O rosto da mãe tremeu quando ela descobriu e obrigou as duas a devolverem.
— Se ficarmos bem bonitas, mas bonitas mesmo, compro pra nós duas. — a promessa da irmã retorna em um eco.
— Eba! — Isa responde sussurrado.
As mãos da sobrinha abocanham um macacão vermelho, uma saia de tule, blusas estampadas com personagens de desenhos e um vestido azul de princesa da Disney. As capturas de Duda são mais aleatórias, ela quase não distingue cores e tecidos quando descobre que apenas unidades de minutos se passaram desde a última vez que espiou a tela do celular. Isa se encanta com a fantasia de bela adormecida. Quando é a vez de Duda entrar no provador, ela se vê com uma camisa colorida idêntica a um exemplar de 1992 que a mãe veste em uma fotografia do álbum de família. A moda é cíclica, a própria vida é circular. Há um atordoamento na luz fraca do provador. Prefiro morrer a ficar que nem ela. Eu também. A mãe fez questão em bater na porta para avisar que ouviu a confissão. Então, se virou com passos pesados e deixou um rastro de nicotina.
Duda experimenta um vestido preto, justo e curto. No espelho, os seios parecem mais afastados. As pernas comprimidas ganharam ondulações. A irmã combinaria com vestido, não Duda. Usaria para se encontrar com homens que não fossem o marido, Duda mastiga a certeza. Então tem um sobressalto ao ouvir as cortinas serem escancaradas.
— A tia não saía nunca, fiquei com medo.
— Que ideia pavorosa essa de expor as pessoas desse jeito! E se eu estivesse sem roupa?
— Mas você não tá! Você tá linda! Parece a mamãe!
— É bem a cara dela se vestir assim vulgarzinha, não é? Faz um favor e espera lá fora.
— A gente vai para casa depois?
— Ainda não dá!
São quatro e meia quando elas saíam da loja. Isa desiste de reclamar do cansaço para segurar a sacola com seu vestido de princesa com movimentos de posse. Duda reconhece as sequências de lojas como se fossem imóveis da rua em que transitou todos os dias na infância. Lá está novamente a loja dos sofás. Duda compraria o bege espaçoso se tivesse dinheiro. Trocaria todos os móveis da casa. As ancas da irmã e de um desconhecido foram impressas contra suas madeiras, ferros e estofados. Seus fluídos foram esparramados em cada superfície. Duda já detesta os móveis, como odiava a mobília da casa de família depois de o pai abrir um buraco em uma estante com um soco, rombo disfarçado por um calendário de parede, e a mãe rasgar uma poltrona com uma faca de cozinha. Você não vai trazer ninguém pra minha casa, coisa nenhuma. Não tenho como voltar atrás, ele está a caminho. Ah, Dudinha, se você soubesse como é importante para mim. Como esperei por isso! Quer que a Isa esteja aqui quando ele chegar?
— Você já jogou boliche, Isa?
Na época do divórcio dos pais, Malu e Duda se tornaram especialistas em boliche. Passavam as tardes no fliperama distanciadas o suficiente da casa para esquecer seus barulhos e salas mal iluminadas. Conheciam os pesos de cada bola e os melhores encaixes para as próprias falanges. Já Isa engancha os orifícios desajeitada e deixa a bola deslizar até a canaleta. Duda derruba todos os pinos numa jogada. Sua gargalhada faz Isa chorar.
— Sabia que meu pai sempre me deixa ganhar tudo? Por que você não é boazinha, tia?
— Porque seu pai é um desenganado, não enxerga um palmo o que acontece na casa dele. Chega a dar raiva. — Duda visualiza o sorriso condescendente do cunhado, ouve sua voz se gabar de acordar às cinco da manhã, a falar de produtividade, do próprio humor politicamente incorreto, da eterna viagem para Machu Pichu e suas revelações combinada com o desprezo aos peruanos, dos acertos em investimento em ações que-você-devia-começar-a-fazer-porque-depender-da-previdência-social-é-burrice, do seu carro com motor híbrido, de como o chefe o elogiou, de como a esposa bonita é tão sua.
— Mas tia!
— Eu não sou trouxa, me recuso a ser. E você precisa aprender a encarar a realidade. A gente perde muita coisa na vida, sabia?
— Você é ruim e eu nunca mais quero brincar com você!
Duda desvia o rosto da pele umedecida de Isa. Sua audição se prende ao som liso, giratório e persistente da bola. A pista reflete os passeios pelo fliperama. Os pinos caem. O pai atira um prato contra o chão enquanto a mãe grita a certeza de que ele a está traindo com uma colega de trabalho. Malu promete que nunca terá um casamento assim. Duda a imita e se abriga em seu colo. A bola rola. A mãe jura que vai embora com as meninas. O pai a chama de louca. A mãe proíbe as filhas de ficarem sozinha com o pai. Diz que o viu acariciando o lado interior pernas de uma amiga de Malu. Os dedos do pai são ossudos e têm pelos escuros. Ela tem doze anos, você é uma mulher doente! Você é que é um homem doente! A bola derruba os pinos. Isa ainda chora, mas sua voz se distancia. A amiga de Malu nega. O irmão daquela garota dá um soco nas costas de Duda no pátio da escola, sem motivo. A mãe jura que levará a história para o juiz. Recusa guarda compartilhada. Duda recua do abraço do pai, tem medo de suas mãos peludas. O rosto dele se deforma em uma escultura tristonha. Ela é louca, meninas, eu jamais machucaria uma criança, sua mãe é louca, nunca viram como ela distorce a realidade? A pista reflete o caminho da bola. Seu pai é um sujo, já viram como ele olha as mulheres na rua? Na minha frente, na frente de vocês. Já viram os arquivos nojentos do computador dele? Os pinos caem em um golpe só. A mãe dopada, seus olhos dopados, seu corpo dopado demais para jantar, sua voz disforme de tão dopada, seu cheiro dopado sem banho, sua carne dopada não reage ao carinho de Duda. Vozes de familiares, amigos e conhecidos em uníssono descrevem a mãe como uma maluca. Os soluços da mãe atrás da parede. O pai chorando no caixa da loja vazia. Ela acabou com minha vida, sua mãe! Conseguiu o que tanto queria. Tem algo que você queria me dizer, Duda? Os pés do pai flutuantes, o pêndulo de mocassins a meia-luz. Não se enganem, gente culpada é que faz isso. A dúvida calcificada na nuca de Duda, a dúvida âmbar, a dúvida pedra lascada que espeta. O som de desmoronamento do strike.
Duda se distancia da pista vazia, retorna à mixórdia de sons elétricos e os flashes de pisca-pisca do fliperama. Isa, aninhada na máquina de garra, agoura com olhos espremidos de choro, cansaço e inveja os outros jogadores. Duda entrega a sacola com a roupa de princesa à suas mãozinhas. Ainda são cinco horas. Duda sente o impulso de correr até o estacionamento, carregar Isa. Vamos brincar de fazer uma surpresa para a sua mãe? A tia entrega a chave pra você ir bem devagarinho, sem fazer barulho e abrir. Mamãe vai levar um susto, né? Ah, se vai! A dúvida é pesada e a ossatura de Isa arquearia, não tem volume para sustentar, seu mundo é algodoado.
Duda se posiciona em frente ao mostruário da população de pelúcia. A sereia de pano acetinado continua lá com seus cabelos de fios sintéticos azuis, olhos bordados e cauda entortada. Dessa vez o gancho se desloca firme. A vibração da sorte arrepia os poros de Duda. Seu céu da boca sequestra a respiração e Isa a imita. Os pulmões das duas são dois pares paralisados. A garra dá o bote na sereia. O corpo de Isa é elétrico, Duda sente o choque de sua mão contra a própria perna, porém não larga a orbe do joystick. A sereia levita pendurada pelo metal como um tubarão fisgado e erguido sobre um barco pesqueiro. Isa solta um sussurro vocálico quando a boneca cai no vácuo e reaparece do lado de fora da máquina. A pele da criança é mais tenra do que a carcaça preenchida com fibra siliconada que ela agarra. É cinco horas e dez minutos. O solado de borracha vermelha ganha peso com a alegria. A felicidade embutida nos ossos dá aos dois pés os sons de uma debandada de filhotinhos contra o piso frio. Duda calcula que chegaria em casa antes das cinco e meia, se tiver pressa.
— A sereia agora precisa ir pra casa, tia!
Duda sente as clavículas daquele corpo pequeno, esfrega os desnivelamentos da camurça rosa, dilataria aquele abraço por cinquenta minutos para que pudessem voltar em paz, mas sente tremulações pelos braços. O corpo de Isa continua eletrificado, as vitrines das lojas formam um loop infinito. Sob o brilho ora rosa, ora azul do fliperama, os dentes da criança, expostos em uma expressão alegre, chegam a Duda como uma mordida. As serrinhas de cor leitosa da sobrinha rasgam a nuca como uma dúvida antiga. Duda ergue o tronco e se aparta das reticências e expectativas do sorriso pequeno. Lê palavras na gengiva rosa. E agora, o que mais?
Rafaela Tavares Kawasaki é escritora e jornalista. Natural de Araçatuba, no noroeste paulista, vive atualmente em Curitiba (PR). Publicou o livro de contos Enterrando Gatos (Patuá, 2019) e o romance recém-lançado Peixes de Aquário (Urutau, 2021).