CONTO | Rafael Sperling 30/01/2023 - 16:12

Milho

 

O cara plantou muito milho em casa e ele ficou com a casa cheia de milho.


— Droga, aqui tá cheio de milho agora — ele disse depois de escorregar em uma espiga de milho e bater com a cabeça em outra espiga de milho.
A mulher dele apareceu com uma espiga de milho na mão e jogou na cara dele.

 

— Você não vai se livrar dessas espigas de milho? Parece que é a única coisa que temos agora em casa — ela disse quase que soterrada em espigas de milho.
Mas ele gostava muito de milho (por isso ele plantou milho em casa) e não queria se livrar deles assim tão facilmente. 

 

— Eu amo milho.

— E quanto a mim? — pergunta a mulher.

— Eu amo milho — ele disse com a cabeça cheia de milho que ele havia jogado pra cima.

 

A mulher chorou (e molhou alguns milhos) e disse que se ele não fizesse algo em relação aos milhos, que ela iria embora.

 

Ele ficou muito preocupado e caiu de joelhos no chão gritando (o chão estava cheio de milho e machucou seus joelhos).

 

Seu amor por milho era grande, mas ele também amava muito sua mulher. Ela não era milho, mas deixava a sua vida melhor (assim como milho).

 

Ele ficou pensando que ela proporcionava coisas importantes para sua vida que o milho não podia proporcionar (apesar dela não ter o sabor do milho e dela não ser milho ou de milho): ela proporcionava companhia e carinho (embora o milho pudesse proporcionar algo parecido caso ele ficasse olhando muito tempo seguido para uma espiga de milho), além de sexo (que o milho também poderia proporcionar, mas não vamos tratar disso agora). E acima de tudo, ela estava para ser mãe (de uma criança, não de milho, apesar dela comer bastante milho e a ideia de ser pai de uma espiga de milho fosse agradável).

 

Ele achou melhor fazer alguma coisa para que sua esposa não fosse embora e resolveu sumir com o milho.

 

Algumas semanas depois, o filho nasceu. De fato, ele não era de milho (isso já era esperado), o que o deixou um pouco decepcionado, apesar dele não querer admitir, mas olhando de relance no escuro até que ele poderia se passar por uma espiga maiorzinha.

 

Chegando em casa, após o parto, a mulher ficou surpresa que não havia mais nenhuma espiga de milho à vista (apenas objetos decorativos em formato de milho, pôsteres de filmes em que apareciam espigas de milho, além de pinturas e esculturas representando ou sendo de fato feitas de milho).

 

O filho foi crescendo sem a presença do milho que, até recentemente, tomava conta da casa. Um dia a mulher perguntou sobre a questão dos milhos.

 

— O que você fez com todo aquele milho?

— Ah, eu me livrei do milho.

— Mas como? Era muito milho pra sumir assim de uma vez.

— Eu só fui fazendo aos poucos.

 

O filho já estava dando os primeiros passos quando deu de cara com um armário cuja fechadura era em formato de milho. Ele pegou, no quarto dos pais, uma chave em formato de milho (embora ela não fosse feita de milho, o filho colocou na boca pra saber). Ele colocou a chave em formato de milho na fechadura em formato de milho e encontrou milho. Muito milho. Mais especificamente, todo o milho que o pai havia retirado do resto da casa, ele havia enfiado ali. O filho se virou para gritar, “Pai, achei o milho que você tinha perdido”, e foi soterrado por uma montanha de milho. No enterro eles escolheram não servir salgadinhos de milho. Certa vez o pai sonhou com alguma coisa que não era milho.

 


Rafael Sperling é compositor, produtor musical e autor de Festa na Usina Nuclear (2011) e Um Homem Burro Morreu (2014), ambos pela Editora Oito e Meio, e Rafael Sperling: Poemas (Cozinha Experimental, 2016). Teve histórias publicadas em veículos como Folha de S. Paulo, Rascunho e Cândido, traduzidas para sete idiomas e adaptadas como curtas de animação exibidos em mais de 30 países.