CONTO | Paulo C. Ramos 29/09/2023 - 12:21
Marília dobrou a esquina
Éramos como unha e carne, nunca desgrudávamos, de modo que, passa dia, passa ano, todos ainda me vêm perguntar por onde Marília anda, como ela está. Se a veem numa foto qualquer de internet, antes de fazerem qualquer comentário, me procuram pra assuntar e saber quaisquer detalhes do evento, chegam em mim antes de falar com ela, como que pedindo licença. Falar o quê?
Eu tento dar um contexto, esboço contar como foi da última vez que nos vimos, um encontro estranho que eu ainda não degluti direito. Mas como eu ainda não entendi, não consigo nem dizer que ela já não faz parte da minha vida. Ou será que faz? Já devia ter esquecido isso, mas é difícil, uma vez que todos querem saber dela. Ao menos uma vez por mês vem alguém e diz: Que saudade da Marília; ou perguntam: Ela ainda está gostosa daquele jeito? Os caras perguntam pelo prazer de comentar e especular se eu comi mesmo. As minas perguntam por uma inveja incontinente e perene daquela moça que tinha sol e lua nos olhos, uma praia no sorriso e a brisa nas mãos.
Da última vez nos encontramos em frente à sorveteria, pensei que tomaríamos sorvete, mas ela só veio mesmo pra pegar comigo o CD da Rox que eu lhe devolvia. Eu não imaginava que a partir de então Marília seria um nome tão rasurado. Era mês de festa junina, em que nas ruas rescendem pinga com gengibre de dia e de noite. Eu, como sempre, cheguei antes, esperei em frente à sorveteria, encostei-me na parede com a perna direita dobrada, fiquei olhando o chão, sem pensar em nada, surdo à rua ouvindo a Rox no fone de ouvido do celular. Marília chegou e me tocou o ombro esquerdo, eu sorri, tirei os fones do ouvido, preguei os dois pés firmes no chão, bem na sua frente, para dar um abraço mais decidido. Passei as mãos pela sua cintura, levei minha mão ao seu pescoço, sorri, olhei seus olhos e perguntei: tudo bem? Ela disse Sim, e você? Eu falei: Maravilha. Vamos entrar? O telefone dela tocou. Ela atendeu e quem ligara desligou. Viu que recebera uma mensagem. Eu saquei apenas que era algo estranho. Ela triscou a língua e disse: Preto, vou ter que ir embora. Eu falei: É sério? Ela disse: Não, não é sério, mas é urgente, você me desculpa? Eu lhe dei o CD e ela se foi sem meu abraço apertado. Eu fui para um lado e ela foi para outro. Mas parei para perguntar se ela queria companhia. Quando olhei só vi Marília, de costas, linda, dobrando a esquina. Nem deu tempo de perguntar.
Devia me preocupar? Devia tê-la seguido? Ela iria tão longe?
Sempre fomos muito amigos, próximos, chegados, grudados. Tínhamos uma amizade jocosa, com carinho, cumplicidade. Tínhamos uma força grata, generosa, sem temerários, uns admirados e outros invejosos. Éramos parceiros das provas mais tensas da primeira juventude. Era uma troca sexuada sem sexo. Quando ela ficava brava comigo e não sabia como devolver a bronca, me tascava um selinho e eu ficava puto. Quando ela me fazia chateado eu a provocava com um selinho roubado perto de algum carinha de quem ela estava a fim. Essas vinganças ternas. Às vezes ela me passava a mão na bunda na frente dos meus amigos, ou então eu olhava delicadamente seus firmes seios de adolescentes para furtar seus planos afetivos.
E agora, como posso dizer que não sei dela? Contarei a história estranha do sorvete em dia frio, CD da Rox, telefonema urgente sem ser sério… Seria mais fácil dizer: Ela dobrou a esquina. Mas esta frase parece me doer demais se dita.
Todos me vêm dizer que Marília tá isso, foi para não sei onde, essas efemeridades. Eu fico tentado a redizer as palavras acima e reelaborar o balanço do meu passado à luz deste presente vazio. Por que será que toda a emoção contida numa relação ficou ali, no passado, agrilhoado por um CD devolvido? Quem pode deixar assim seu passado, seus amigos, sua casa, sua cidade e só se dignar a realizar sua origem na virtualidade das relações, sem mais um sorvete para tomar, um café para sorver, uma cachaça para viver a dois, três, quatro?
Tenho vontade de falar: Marília morreu. Só para assustar os outros e ninguém mais tocar neste assunto que virou sombra. E desabafar, sobretudo. Sim, por que o que fazer com o que ela fez com a gente? Ela deu as costas e virou a esquina. Qual será a próxima fase, se voltar contra a gente? Para a gente que ficou sem ela, sem seu brilho, sua alegria e inteligência, para a gente que fica a seguir seu rastro nas telas dos computadores e smartphones, tudo o que sabemos é que existe algo que poderia ser nosso se Marília tivesse nossa sido um dia. Pensando bem, parece que Marília nos ofereceu uma amostra do seu perfume, um sopro do seu cheiro, como a dizer: Embora vocês nunca tenham acesso a isso, vejam só como a vida pode ser boa.
Enquanto a turma fica na internet, prefiro ignorar as fotos digitais e me contentar em refolhear meus álbuns de fotografia 10x15 em que sorríamos de aparelhos nos dentes, com roupas démodé, de inocência duvidosa, cheios de colágenos e de hormônios; e entre uma foto e outra ver os comentários da época, entre uma foto e outra amarrar a garganta, entre uma foto e outra imaginar o que faz Marília hoje da vida.
Será que foi pregar a sustentabilidade na Cidade do México? Ou foi ser guia turística do Taj Mahal para falar de amor como só ela fala? Foi cursar medicina e colher assinaturas para os Médicos sem Fronteiras nas ruas de Quebec? As praças e fontes de Praga estão entre seu trajeto de ida e volta de casa para o trabalho? Será que colou um adesivo da Hillary Clinton em seu carro? Será que acha que as cotas raciais vão criar a segregação racial no país? Será que está vivendo como Madame Bovary em algum rico país da região temperada do hemisfério norte, vendo as estações do ano passar como as horas do dia? Será que ela sabe que Andreza, a pretinha da esquina, prospera como empreendedora? E que imagina que o Denílson, aquele moleque remelento, agora só usa relógio de ouro e passa base nas unhas? Será que Marília cultiva uma horta em seu apartamento em Tóquio? Será que foi ensinar Português na China ou inglês em Moçambique? Será que virou diplomata e representa o Brasil em Berlim? Ela poderia imaginar que Diguinho foi preso? E Ronaldo foi morto? Será que assessora Jim O’Neill, elabora seus slides e dá palpites sobre suas entrevistas? Aquele CD merda da Legião Urbana, ela ainda ouve? Será que lembra de mim quando ouve Raça Negra? Terá crises éticas sobre o respeito aos direitos dos trabalhadores? Ela flexiona gênero em quantas variações? Será que virou amiga confidente de Katherine Pancol e tenta convencê-las de teses feministas? Ou é amiga dos feirantes da Benedito Calixto? Será que faz suas próprias unhas e só viaja em voos particulares? Será que escuta Antena 1 e só lê notícias em diários impressos? Toma café com leite ou café preto e amargo? Será que lava os cabelos todos os dias? Será que seus peitos continuam firmes e suas ancas cresceram demais? Pirateia conhecimentos indígenas? Praticará Pilates ou Taekwondo? Suas sobrancelhas ainda fazem aqueles arcos eloquentes? Será que seu hálito tem o mesmo cheirinho? Ela ainda chora quando bebe? Terá ela ações na bolsa de valores? Abominará ateus e ainda faz o sinal da cruz quando passa pela igreja? Será que ela votou no Bolsonaro?
Marília dobrou a esquina, ela foi para um lado e eu fui para outro. O pessoal parece que ficou sei lá, no meio… Quando alguém deixa a nossa vida desse jeito, é como se não mais vivesse, ou como se a gente houvesse morrido. E então a gente fica assim, a ver as notícias pretensamente atuais, mas que só ganham vida por causa do passado, pois sem ele é tudo mentira, nem chega a ser invenção. Se eu vir Marília qualquer dia será como uma visão mediúnica. Mas se ela voltar a viver filmes e papos bobos, trocas de livros e CDs, piadas com nossos sentimentos, fazer bolhinhas de sabão e decorar as respostas dos jogos de tabuleiro… Ah, isso vai ser como se eu vivesse de novo. Ela dobrou a esquina, foi para um lado, eu, para outro. Já vivemos outra vida, uma cada um. Mas explicar isso para quem ficou no meio é muito difícil.
Paulo C. Ramos é autor do livro Contrariando a Estatística: Genocídio, Juventude Negra e Participação Política, entre outros artigos e capítulos de livros acadêmicos e de opinião em revistas, sites e jornais. Doutor em sociologia pela USP, pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo.