CONTO | Juliana Garbayo 25/02/2022 - 12:44

Gameleira-branca 


Ela arrumou a mesa para a ceia de Natal. Ela gosta disso, colecionar candelabros, acender lembranças, encher as taças com uvas feridas que homens desconhecidos pisaram. Há comida, comida demais, pães que amassamos nas coxas, frutas que secamos com paciência, a torta de ruibarbo com tiras entrelaçadas de massa e bordas douradas como ela gosta. Perto da torta com cerejas negras, um turducken que recheamos com ganso e não com pato, o filhote de porco que ela mesma abateu. Coloco as cinzas do meu pai perto dos talheres. Minha mãe grita de novo você trouxe isso aqui outra vez você me odeia faz de propósito não quero esse homem aqui. As unhas da minha mãe estão roídas até a carne, ela cobre o rosto com as mãos e chora, aquilo são cem cortes de papel na minha cara.

Ela odeia meu pai. Ou é a mim que odeia? Não sou eu a culpada, não fui eu quem roubou seu brilho seu frescor seus planos, eu só estirei seus órgãos, feri de estrias sua barriga, fiz seus peitos arderem flácidos. Não fui eu quem murchou sua vida, suas possibilidades, não sou eu quem enruga o seu rosto. Ela copia a cor do meu esmalte meu corte novo de franja meu jeito de falar minhas gírias as línguas que eu quero aprender. Como dizer que minhas roupas não ficam bem nela? Que cabem, mas não ficam bem? Que quero dançar sozinha, ter meus próprios amigos, que não tenho culpa por ela estar só? Como faço pra ela ver que não tenho culpa se me pareço com ele, se o amo, se ele foi embora, se escolheu deixá-la? Como faço pra ela aceitar que ele continua a me amar mesmo longe dela, que existe um espaço só nosso (meu e dele) onde ela não é bem-vinda?

Tenho quinze anos, a idade da minha mãe quando nasci. Estou com meu pai no Atacama. Imagino um ser em geração na minha barriga agora, um apêndice, um parasita. As mochilas estão no chão do quarto, ele me acorda cedo demais. São quatro horas e faz dois graus lá fora. Estamos prontos para ver o Lascar. Sai fumaça da cratera, meu pai diz que é assim com todos nós.

Minha mãe não quer as cinzas do meu pai na mesa de Natal. Ela tem ciúmes da morte, não sabe que eu a domestiquei. A morte me espreita e me vigia, eu a escorraço e ela volta toda vez. A morte late pra mim e eu a alimento com as migalhas que caem da mesa e com o leite que vaza dos meus peitos secos. A morte lambe minha mão.

Tenho treze anos. Tenho fome, desmaio e deliro de fome, estou quente. Minha mãe diz que fico bonita assim, minhas costelas já aparecem. Posso comer, só não quero. Ainda não sei que não preciso ser magra, que é melhor se eu não for tão magra, não quero que ela me odeie, não quero que ela roa as unhas até sangrar, que chore olhando as rugas no espelho, que passeie nua pelo corredor quando levo amigos em casa.

Na mesa o bolo com velas queimando, ela me presenteia com verdades e memórias. Aperta um gravador de bolso e ouço a voz do meu pai. Ele tem dezoito anos e tenta convencê-la a me abortar. Ela gravou aquilo. Gravou e esperou o dia de hoje para me entregar. Jogo o aparelho na privada. É meu aniversário de quinze anos. Meu pai olhou a Laguna Lejia e contou que é terrível morrer afogado, a água enche os pulmões e chega a doer de tão fria: morrer afogado é uma morte fria. Não sei por que ele disse aquilo, Lejia é uma lagoa rasa e o vento é impiedoso, ninguém quis entrar na água.

À noite meus cabelos caem. Caem em tufos, mechas inteiras se livram e desabam. Acordo e meu pai morreu. Por sete noite seguidas não sonho, por outras sete uma gameleira-branca reclama as cinzas do meu pai. Sei onde ela fica. Abro a urna e o saco com as cinzas, mas resisto à tentação de comê-las. Espalho algumas no travesseiro, depois me deito e adormeço sobre elas. Vou até à gameleira e a rego com o sangue que escorre do meu útero. Um dia crianças se balançarão nos seus galhos e em um dia mais além um homem se enforcará neles. As cinzas do meu pai eu escondo no fundo do armário.

Não tenho só recordações más. As boas eu imprimo e colo nas paredes, uso para forrar a cama. As boas eu guardo como uma coleira, depois saio para pegar sol. A morte me acena na rua, ela passa comendo doces e me acena, a morte me pede esmolas, ela me hipnotiza e eu quase tropeço. Corro atrás dela e grito Quem foi cremado ressuscita como?

Levantam o lençol e reconheço minha mãe, seu corpo tem cicatrizes e tatuagens. Ela foi dar ontem à costa. Boiava e aterrou na areia. Peixes beliscaram seus pés, mas deixaram os olhos intactos. Ela tem o rosto azul e sereno: meu pai estava errado, morrer afogado tem um jeito doce.

As cinzas da minha mãe vêm numa urna menor. Puxo o saco de dentro e rasgo o plástico com os dentes. Abro a urna do meu pai. Comparo as cinzas, são da mesma cor, têm a mesma textura, o mesmo cheiro. Despejo tudo num lugar só e misturo. Me perdoem.


 

 

 

 

 

Coisas Difíceis de Ressuscitar — 1º lugar no Prêmio Biblioteca Digital 2021, categoria Conto

Personagens que se esbarram em antiquários decadentes, clínicas de desintoxicação e antessalas de psiquiatras, enquanto tentam elaborar suas perdas — luto, loucura, passagem do tempo, relacionamentos falidos. A multiplicidade humana se revela na troca de cartas com um homicida condenado, na invasão à casa de um poeta uruguaio e nas migalhas atiradas à morte que ora late sob a mesa, ora acena vendendo doces nas ruas. Coisas Difíceis de Ressuscitar está disponível para download gratuito em bpp.pr.gov.br.

 

 

Juliana Garbayo nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É médica pela Universidade Federal Fluminense (UFF), psiquiatra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IPUB) e mestre em Estudos Editoriais pela Universidade de Aveiro (Portugal). Publicou contos em antologias e revistas literárias. Coisas Difíceis de Ressuscitar é seu primeiro livro.

wgwg