CONTO | Jaquiceli Chafer 30/11/2022 - 10:36
A cama e o barulho que a noite faz
O homem chegou trazendo um tanto de coisa consigo, começou a falar com meus pais sobre a montagem, montagem do quê? Algum brinquedo, alguma coisa que iriam fazer no galpão velho, junto à casa? Somente eu ia lá brincar, tinha tanta madeira, tanta coisa abandonada, nem se sabia de quem era, decerto não iam arrumar nem fazer nada naquele galpão, que já estava até meio torto.
Lembro do instante em que o medo foi tão grande que virou raiva. Saí meio andando meio correndo entrei no quarto vazio que usava para brincar e bati com força a porta, meu pai vinha atrás de mim, se consolar ou brigar ainda hoje não sei, colocou a mão no batente e a porta imprensou-a, vi sua raiva e minha própria cedeu lugar à culpa. Naquele momento eu não sabia mais o que sentia.
As primeiras memórias são dessa casa, difícil determinar a primeira lembrança, acho que essa é uma delas, junto com as brincadeiras solitárias no galpão e não entender como as pessoas morriam em domingo de sol.
Houve um dia, perto da hora do almoço, sabia que era especial, o pai estava em casa, quase nunca estava, tinha refrigerante para o almoço, quase nunca tinha, tinha corrida de carro na TV, quase sempre o Senna ganhava, o pai e o mano estavam empolgados. Mas tinha gente saindo do cemitério. Se tinha gente saindo do cemitério — com tudo isso acontecendo como podia ter gente no cemitério? — alguém tinha morrido. Sabia que quando tinha um tanto de gente tinham trazido um morto para deixar guardado. Como que ia todo mundo embora e o morto ficava sozinho, só com gente desconhecida?
Compreendo que não sabia que sentia medo, até ver aquele homem entrar no quarto meio vazio onde eu brincava e do qual pouco antes havia tentado uma fuga desesperada, natimorta, eu sabia que não conseguiria pular a janela e somente consegui apertar na porta, a mão do meu pai.
O homem se pôs a montar, meus pais falavam eu meio gritava, meio chorava, talvez para fazer barulho mais alto que a voz deles me dizendo que agora teria uma cama só para mim, um quarto. Para que eu precisava de uma cama só para mim? Na cama da minha mãe cabíamos bem todos nós e meu pai quase nunca dormia em casa, falavam que ele ia trabalhar, então para que mais uma cama e por que logo eu tinha que dormir sozinha? Eles não sabiam que os mortos estavam todos guardados ali pertinho e que de noite a casa fazia uns barulhos feito o barulho do portão quando as meninas da rua o abriam devagar para eu fugir?
Pequenininha eu fugia e dizia que estava indo encontrar meu irmão, penso que para as meninas era divertido quando minha mãe corria atrás de mim pela rua usando avental e xingando, eu, elas e sabe-se lá mais o quê.
Minha mãe dizia que o barulho era por causa do sol e que a madeira gritava porque estava fechando, o que para mim não fazia sentido algum, ela não fechava era nada, se os mortos quisessem eles entravam, mas batiam antes. Além do que, tinha a cama do mano também, se alguém enjoasse de onde dormia que trocasse com ele algumas vezes que o entojo passava.
Cansada de gritar e culpada demais para continuar na birra notei que o homem permanecia montando. Ele encaixava uma ripinha na outra e na outra e na outra e aquilo ia crescendo, que legal. Eu, pensava nele sumindo, evaporando. Se evaporasse como iam guardar no cemitério? Não ia dar certo, o tanto de gente não ia conseguir levar ele para guardar e depois deixar lá sozinho, se ele evaporasse. Eu bem podia dizer que ele pulou a janela e foi embora, ele alcançava, meus pais iam ter que concordar que ele alcançava, será que acreditariam?
Então, pensei que nada daquilo estava certo, era a mão dele que eu devia ter apertado na porta...e se eu chamasse ele para ver como eu também tinha um monte de madeira no galpão — e daí que elas não encaixavam, era legal também, dava para montar um monte de coisa, não só um pedaço reto, sem graça — e quando ele estivesse passando eu fechasse a porta bem na mão dele igual eu fiz com o pai? Só que agora eu ia fingir, que foi sem querer, mas teria que falar com ele e ia parecer que quero ser amiga, que raiva, não falo.
De vez em quando ele me olha e faz que vai falar, faço uma careta bem feia, ele desiste. E se eu contar que os mortos guardados vêm ali, não digo que é só de noite, digo que eles podem vir de dia também, ele não vai saber que não é verdade, quase certo ficará com medo e vai logo embora, mas se os mortos vêm mesmo e eu estou ali, melhor não arriscar. E se eu prestasse bem atenção em como ele estava montando e depois eu desmontasse, ninguém dorme em cama desmontada. Na certa meus pais iam colocar as madeiras no galpão junto com as outras, aí sim eu ia montar coisas legais, e se o homem voltasse querendo levar as madeiras ou pior querendo montar de novo? Não ia servir também.
O homem falou que a cabeceira estava pronta, para mim parecia a parede de um galinheiro que vi, sem as frestinhas para espiar… talvez fosse bom, não ia precisar cuidar daquele lado para ver se os mortos estavam ali e eles não iam conseguir me ver também.
Enquanto pensava em um plano o ladino terminava de montar o símbolo de que eu estava crescendo, sabe-se lá o que isso queria dizer, agora eu tinha que abrir o portão para alguém fugir? Como ia fazer se ainda não conseguia abrir e precisava de ajuda?
Não entendia como eles não entendiam que só ia servir para os mortos ficarem curiosos e virem ver o que era.
Não consegui solução, o homem já estava indo embora e deixando lá no quarto a coisa montada. Parecia meio morta também, nem depois que a mãe colocou colchão e colcha parecia que tinha muita vida.
Curioso, depois disso não consigo lembrar como foi dormir na tal cama, não naquela casa ao menos; mudamos, ufa longe do cemitério e agora dividiria o quarto com o meu irmão, ao menos não ia estar sozinha.
Aconteceu sem querer, assisti pela TV a cena de uma pessoa que — com a cara muito branca, branca mesmo, não que nem a cor de gente — ergueu a mão bem alto e golpeou a cama com uma facona, afundava e tirava e afundava de novo, aí levantou a coberta e tinha um travesseiro embaixo, todo furado, ele saiu do quarto bem bravo, uma mulher corria por um corredor longo e vazio, ele foi atrás dela, nesse momento ouvi a voz do meu pai perguntando o que eu queria, não sabia mais o quê, pensava em como ia dormir agora.
Era tarde, passava da hora costumeira de dormir, estávamos na casa da vizinha por conta da minha mãe estar no hospital, eu não sabia bem o que tinha acontecido, só que ia ter mais um irmão e depois não ia mais e que a mãe tinha sujado todos os lençóis de sangue, as vizinhas entravam e saiam do quarto e eu não entendia de onde saia tanto sangue, acho que como acabaram os lençóis de casa tiveram que levar a mãe para o hospital e usar os lençóis de lá, por isso eu ainda estava acordada.
Eu achava que dividindo o quarto com o mano ia ser melhor, mas ele chegava sempre tarde, muito depois da hora de dormir. Depois daquele filme a mãe demorou ainda umas três noites para voltar. Eu, para ficar na cama sozinha, tinha que cobrir a cabeça, era muito difícil respirar e precisava me descobrir para não ficar tão quente, era muito rápida, logo estava com a cabeça coberta de novo.
Agora percebo a incoerência, ficar com a cabeça coberta estando na cama era se tornar o travesseiro, naquele momento parecia a coisa mais segura dentre as opções. Quando escuto barulhos à noite penso que minha mãe estava certa, era a madeira que gritava por saudade do sol.
Casa de tijolo também sente falta do sol?
Jaquiceli Chafer é administradora por formação e produtora de eventos. O conto publicado pelo Cândido foi produzido durante uma oficina do projeto Ampliando Horizontes: Poesia e Ficção, ministrada na Biblioteca Pública do Paraná pelo escritor Cezar Tridapalli, e integra a coleção de livros homônima — organizada pelo jornalista e contista Marcio Renato dos Santos.