CONTO | Irmão 16/08/2024 - 13:57

por Carla Guerson

 

Ele habitou o útero de minha mãe por cinco meses sem que ela soubesse. Enquanto eu sofria na escola por não ter um formato de corpo desejável, meu irmão crescia desavisado dentro de alguém que não o queria.

A cabeça grande demais era a minha. Desde nascida, segundo minha mãe, que reclamava de ter passado pelo parto mais longo do mundo. Não deixaram meu avô entrar e ela ficou sozinha na enfermaria enquanto eu teimava em não sair dela. Do lado de fora, o abandono de minha avó era mais sentido do que nunca.

Por não ter tido mãe, o sonho da minha era ser uma. Foi um caminhoneiro quem concretizou o ato e partiu sem saber que deixava ali uma semente que germinou torta. Talvez 15 anos seja cedo demais para ter um filho. Talvez 30 anos seja tarde demais.

De volta da escola, deixo a bicicleta encostada no muro e corro em direção ao cheiro de queimado. A panela no fogão enegrecida. Grito por minha mãe, que não me responde. Está no chão da sala, sentada em meio à poça de lama vermelho escuro com cheiro ocre. Não sei a quem chamar. Os olhos dela me constrangem, mais pelo que não vejo neles.

Aos poucos ela se levanta e deixa para trás o que poderia ter sido. O chuveiro me avisa da sua tentativa de se fazer limpar, enquanto eu procuro na área de serviço um pano que me garanta a possibilidade de ser útil. Nem todas os ciclos de lavagem do mundo poderão garantir que ele volte a ser o que era. Tem marcas que merecem ficar.

A porta de casa é aberta com a chave que minha mãe relutou em entregar ao homem que não tem vontade de lhe abandonar. Por ter esse pai que não vai embora, o sonho de minha mãe era desaparecer. Foi a falta de coragem quem não permitiu que o intento se concretizasse. Ela sai do banheiro um pouco mais pálida, mas ainda bem viva. Entra no carro de cabeça baixa, feito criança levada à sala do coordenador.

No quarto do hospital, não tem cadeira para mim. Meu avô dorme na única poltrona, as duas tias que quase nunca estão por perto não precisam se sentar. Conversam com o médico, conferem a dosagem do que a enfermeira coloca no pacotinho pendurado junto ao braço da minha mãe. Separam documentos, providenciam comida.

Não existe enterro para sonhos abortados. Ninguém nunca mencionou o que viria depois.

Era menino, ouço meu avô dizer.

 

Carla Guerson nasceu em Vitória-ES, em 1982. Formada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, escreve em verso e prosa e é autora do livro de contos O som do tapa (Editora Patuá, 2021) e do livro Fogo de Palha (Editora Pedregulho, 2022) de poesia. Todo mundo tem mãe, Catarina (Editora Reformatório, 2024) é o seu primeiro romance.