CONTO | Fernanda Avila 28/04/2021 - 14:53
vem, vou te contar de quando eu usava topete
traz guarda-chuva e um casaco. me encontra na frente da mesquita, vou te mostrar o são francisco. vem cedinho que se a gente andar em silêncio talvez consiga ouvir a conversa dos tropeiros. traz também dinheiro trocado, tem muita gente pedindo comida. na hora do almoço tem fila pra pegar marmita na casa dos hare krishna. vou te mostrar o cavalo que vomita água, aquele chafariz que é ponto de partida dos bloquinhos de carnaval. pena que não é fevereiro de um ano normal, se não te levava para seguir os garibaldis & sacis. a gente ia ficar até o fim, quando chega a polícia e dá sempre uma confusão que depois é exagerada pelo jornal de direita e repetida pelo pessoal que não gosta de ver mulher mostrando teta na rua. tem muito disso aqui. mas também tem um monte de gente bacana que dança o samba das meninas nas noites de quarta. vamos sentar no sal grosso e comer caranguejo, tomar um submarino no alemão, entrar no solar pra ver as obras do poty e pedir sagu no bufê por quilo. se fosse outro tempo, talvez a gente visse uma noiva saindo da igreja da ordem ou uma apresentação de chorinho nas ruínas. dizem que dali saem túneis subterrâneos que levam a outros lugares, mas ninguém sabe direito se é verdade. num março do passado, a gente ia ver um espetáculo do fringe no memorial. vamos tirar uma foto na frente do belvedere antes que ele incendeie de novo. vou te falar do leminski e do trevisan, vou te mostrar onde eu assisti a uma peça da sutil pela primeira vez e se der tempo te levo até a gibiteca, ali perto. não quero passar na frente do anjo, fico triste de ver escola sem criança. vamos ver os grafites do rimon, escorregar no paralelepípedo solto e molhar a barra da calça. vou te oferecer uma cerveja de garrafa, contar de quando eu usava topete, dançava vogue na amnésia, jogava truco no tragos e sentava no meio-fio. vamos cantarolar aquela música do maxixe machine que fala da cidade. se anoitecer e o dizzy estiver aberto, vamos entrar pra ouvir jazz. pode ser que a gente encontre amigos. pode ser que eles ainda estejam lá.
Fernanda Avila é jornalista, escritora e sócia-fundadora da Pulp Edições. É especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens pela PUC-PR e autora e editora de guias de viagem.