CONTO | Daiana Pasquim 26/04/2024 - 03:17

Revisitando as ruínas circulares de Borges

 

Amanhecera com Borges ao lado, ainda pisando leve nos campos de sentido de “As ruínas circulares”. Fatos lendários revoavam por sua cabeça junto à recém-reverberação do prazer em ter puxado aquele livro da estante, acomodado-se entre as cobertas e travesseiros, refestelando-se para vocábulos sinistros. Como ele pudera palpar e unir certos motes de combinações extremas? “… mais árduo que tecer uma corda de areia ou que amoldar o vento sem rosto” e “… uma nuvem remota sobre um morro, leve como um pássaro; depois, rumo ao Sul, o céu que era da cor da gengiva dos leopardos”. Jamais obtivera tempo para observar a gengiva de leopardos, seriam elas de outra cor que não o rosáceo-avermelhado da maioria das bocas? Havia tempo para ler. Era precioso sonhar como o homem taciturno vindo do Sul, e acordar para observar o mundo, viajar continentes com seu corpo físico todo, não apenas os olhos e a imaginação. Urgia ultrapassar as páginas.

Como dar uma obra por terminada? Seja um texto, seja um homem? Com que destreza chegamos ao que podemos chamar com nomes próprios: prazer, descanso, sonho, missão. Qual chave girar para adentrar na passagem estreita que leva à certeza? Tempo, pó mágico a pairar nos ares, invisível e intocável por nossos poros agitados de estima. Circular, estranhamente segue adiante! Não o moldamos como argila ou controlamos como abrir a uma torneira para obter água. Ele é incessante em escorrer, é intangível. Faz a mutação em metal enferrujado: há vigor, mas está inapto. Jamais alguém poderá abraçar o tempo. O corpo não alcança esse pó mágico com as mãos, nem mesmo esticando-as bem para cima. 

Via as folhas farfalharem, mas não caminhava para receber um abraço de suas ramagens, como o taciturno caminhou para as labaredas na esperança de morrer, mas "acordou". Não permitia a elas enrolarem-se a seu corpo, ficava aquém da maciez suprema do amanhecer, da leveza do ar acordado da noite para a luz raiada. Conjurava a profundeza de conquistar, dormindo, mas se os pijamas não manchavam, significava que ainda circulava o abstrato, sem sujar as mãos e os pés de terra. Moldar só com os pensamentos levava dias! Por que escolhera o caminho mais difícil? Se comprasse uma passagem e entrasse num desses longos metais que sobrevoam as nuvens… Mas para pisar nesse solo aéreo demandava alcançar notas que voavam por sobre sua cabeça, abarrotando os bolsos de alguns poucos homens, que não os seus e os de tantos outros. E era um preceito que dominava muitos comportamentos. Por não conjurar nem os longos metais flutuantes entre as nuvens, nem os amontoados que abarrotavam os bolsos, vivia um dia medíocre após o outro. Fazia, mas tinha certeza ser insuficiente para alçar as altas camadas do céu. 

Contudo, ainda tinha uma vida. Quando pousava a mão sobre seus ossos, sentia um pulsar insistente. Concluiu que era feito de um constante fundir-se e começava tudo outra vez. Em Ficções.

 

Daiana Pasquim (Pato Branco, 1981) é jornalista, podcaster, escritora e storyteller. Professora licenciada em Letras Português e Literaturas em Língua Portuguesa e Mestra em Letras/Literaturas, Sociedade e Interartes (UTFPR, 2017). Autora de Trincas (Penalux, 2023), publicou em coletâneas no Brasil e no exterior. Criadora do Leitura de Ouvido, o podcast que transforma linhas em ondas sonoras, da produtora Rocka Studios e do curso #Desenrole seu Storytelling