CONTO | Clarissa Comin 30/03/2022 - 17:04

Samantha & Helio

 

Samantha manja de quem tem grana e seu sonho é um pônei bebê com o pelo lilás. Não tem interesse em trabalhar, sua vida interior já demanda um tempo inesgotável e ela julga mais importante atender aos chamados multicores. Olhando com atenção eu diria que as pessoas aí fora só sabem comer, trabalhar, apodrecer no trânsito e derreter nos vórtices virtuais. Eu sou à moda antiga. Faço meus contatos por carta e, em caso de urgência, por telefone. Não vejo motivo para a pressa — apesar da efemeridade de nossas existências. Samantha vive no sul do país; em janeiro assa as costas em balneários chinfrins, em julho vê neve na fronteira com a Argentina e em setembro colhe amoras e abraça capivaras com o entusiasmo de uma menina. Eu lembro dessas coisas pequeninas enquanto sigo a 200 km / h no banco do passageiro de uma Land Rover Range Rover azul petróleo, paga à vista, bancos de couro e inteligência artificial tagarela no painel de bordo. Às vezes me sinto num avião. Mas Samantha nunca pôs os pés no aeroporto, a não ser para a despedida de uma ou duas primas que foram estudar nos EUA. Sabe, lá em casa nunca teve disso. Era tudo na base do merecimento, esforços suados, e eu, como vocês já sabem, não dou um prego numa barra de sabão, e não adianta chilicar. Próxima parada: Montevidéu. Pela janela corriam árvores e cercas, fastfoward, e as cores misturadas convertiam-se em um borrão cinza; enquanto isso, em sua cabeça, aquele momento virava memória em slow motion, como a mão de Helio em suas coxas, implorando para que abra as pernas, mesmo sabendo que ela prefire a espera. Meus olhos capturam uma revoada de patos em V sobre uma plantação de soja qualquer e eu agradeço a Deus porque nesse dia o sol estava parcimonioso e meu amigo, apesar de ser quase dezembro. De onde eu vim “é sol 365 por 365 horas no dia” — peça publicitária que fracassou, mas deixou a marca do exagero em Samantha. Do seu lado Helio submergia em palavras não-ditas, ruminação de passado e coisas doloridas. Ei, minha linda, olha ali! Não parece um pé de araçá? Já foi, não deu tempo de reparar. A frutinha se parece com uma goiaba e por muito tempo pensei que elas fossem azuis, como no meu álbum favorito do Caetano. Era perda de tempo perguntar de qual música desse álbum o Helio mais gostava, ele deve achar que Caetano é jogador de algum time de futebol. Talvez ele tivesse razão. Na próxima placa de sinalização lê-se Araçatuba, terra dos muitos araçás e a roça onde o Helio quer morar — finjo que cochilo para o assunto nem se criar. Mas voltando ao araçá, eu sentia o gosto da palavra confundir-se ao da fruta, a princípio dura, esses erres que deixavam um gringo vexado, e depois a doçura, um deleite silencioso que acompanha o esse no final. aaaaAA RRRA sssssááá. Já imaginou uma tigela deles no banco de trás da Range Rover, sumarentos, quase podres, escorrendo entre as frestas dos bancos, o suco derramando nos tapetes, formando uma poça escura e espessa na qual eu enfiaria minha mão pelo puro prazer de besuntá-la com um doce diferente do enjoativo açúcar da paixão? Mas isso Helio não ouvia, mouco às fabulações ervas daninhas que se entranhavam nos meus caracóis castanhos, eu, sua menina. Sim, era isso, ela não passava de uma criança, recém-saída da adolescência, precisava ver o mundo. Samantha é feita de uma substância estranha e me espanta com os pedidos mais inusitados. Vocês acreditam que um dia desses ela disse que sonhava em ter um filhote de pônei com o pelo lilás? Sorri e respondi, onde diabos vou arranjar um? Te vira, tu tens grana, rico sacripanta. Samantha não tem modos, mas sim muita manha. Apesar da delicadeza de seus gestos, prevalecem sempre as manchas. Ele me olha de esguelha com a respiração opressa, ponderava o que dizer quando meu transe evidente passasse. Eu sou um homem místico, já mandaram fechar meu terceiro olho porque absorvo tudo ao meu redor, acreditam? Helio se esforçava, mas as suas piadas eram sem graça, não despertavam paixão — a não ser em seu sentido etimológico, pathos, pois ele era, de fato, patético. Samantha desejava em segredo e nem o mais cônscio dos homens adivinharia o que está por trás dos seus desejos. Um dia era conhecer o mundo numa road trip, route 66, análoga a que faziam naquele momento, pela América Latina; depois era algum doce requintado, desses cuja receita dá errado umas dez vezes antes de se acertar o ponto das claras em neve; na sequência, se via brincando com um unicórnio no tapete do quarto. Esse último foi o mais insólito e, paradoxalmente, o mais simples. Helio trabalha em uma empresa que fabrica impressoras 3D e ocorreu-lhe que as máquinas poderiam agilizar a promessa. Ele é apenas o gerente de vendas, no entanto conhece todo o pessoal da mecânica e foi lá que desabou pedindo socorro. Os colegas indagaram para quem ia o mimo bisonho e ele preferiu enfiar a filha mais nova na história e dizer que era seu aniversário de quinze anos. Ué, uma menina dessa idade quer saber de bicho de pelúcia? Não, não, vocês não estão entendendo. Esse pônei precisa parecer real, dar esse efeito, entende? Procurem uma pele parecida com a de um coelho, uma cauda de cavalo, um focinho de jegue, misturem tudo e vejam lá o que conseguem. Helio diz que cansou do périplo e pergunta se podemos parar no acostamento para bebericar Evian e comer macarron. Eu digo não, quero avançar o máximo possível enquanto é dia, tenho roubado tudo quanto é inspiração dessas nuvens crocodilas. Acabrunhado, ele diz que tem uma surpresa para mim no porta-malas e seria bom abri-la antes de pararmos para dormir em algum motel, tinha medo que eu não gostasse e queria satisfazer sua curiosidade. Curiosa, dona Samantha, que não era tonga, consentiu docemente com a pausa à beira da estrada. Helio freou suave, desligou o motor e me pediu que fosse até o presente. Desci desconfiada e desatei devagar os laços desajeitados do embrulho. Quando abri, ele saltou de um pulo só para fora do porta-malas e lambeu-me as mãos com os olhinhos mais ternos desse universo. Tinha cheiro de algodão doce. Não era lilás como desejei, melhor ainda, era da cor de um arco-íris, cintilante. Helio, seu miserável, eu dizia entre lágrimas quase honestas, isso não se faz, você é um amor! Olha só a carinha desse nenê! Vou chamá-lo de Ísis. E isso não é nome de mulher? Ora essa, desde quando existe gênero definido para os pôneis? Eles são eternas crianças, são o que quiserem ser, por ora vai ser Ísis mesmo. Desde que começaram a viagem, essa foi a primeira vez em que ele baixou a guarda, distensionou os ombros e se permitiu relaxar. Sim, você mandou bem, não há mais chances de ela escapar, o jogo está ganho — como se ela fosse um cavalo na hípica batalhando a pole position com uns pangarés do rebanho. Depois dessa vitória, permitiu-se adentrar o mato para mijar e pediu que Samantha não mexesse no painel do carro que ele logo voltava. Ela não sabe dirigir, coitada, eu temo pela segurança de nós dois. Ela fez que sim com a cabeça e fechou as portas do carro, assumindo o banco do motorista e deixando Ísis no dos passageiros. É agora que ele não volta mais. Sem pensar, deu a partida, nem lembrou do cinto e não precisou se preocupar com a embreagem, e pôs-se a acelerar. 60, 80, 100, 120, 140, era tão rápido, meu amor! Olhava para o pônei com uma cumplicidade única, apertava-lhe uma das patas e sentia que ele correspondia a sensação. Helio, Helio, tenho tudo quanto quero, disse abrindo a porta do carro em alta velocidade.

 

 

Clarissa Comin é professora, escritora e doutora em Estudos Literários. Pesquisa literatura brasileira contemporânea e ministra oficinas de escrita. Publicou os livros vasto trovarr (Benfazeja, 2019) e nebulosas (Medusa, 2020). Também tem textos e traduções publicadas em coletâneas e revistas eletrônicas.