CONTO | Basílio Baran 31/05/2023 - 09:11

A máquina do tempo

 

23 de agosto 

Havia um bilhete debaixo da porta: Boas notícias! Inventei a máquina do tempo. Joguei ele fora. George sempre foi um sonhador, perdendo tempo com invenções. Para mim, a máquina do tempo foi inventada em tempos imemoriais. Desde que o primeiro ser humano abriu a boca para falar do passado, duplicou a existência da humanidade. Melhor, triplicou, porque quem cria o passado cria também o futuro e o presente. E absolutamente todos os que se propuseram a dizer como as coisas aconteceram mudaram o passado segundo seus próprios interesses. Quem ganha a guerra conta a história. Eu já tenho uma máquina do tempo, é o diploma no fundo da gaveta, ele me permite modificar o passado do jeito que eu quiser. Só basta querer. A máquina do tempo mais eficiente seria aquela que não muda realmente o passado, mas afetasse o cérebro de alguma forma que as pessoas passassem a acreditar que são outras. 

George pode ficar com sua máquina do tempo. Tomara que ele não se exploda. Não imagino o que ele quer tanto mudar. Se tornar um poeta de sucesso? Nem com uma máquina do tempo. Mais difícil do que escolher é também saber como mudar, como saber quando uma decisão foi tomada. Napoleão invadiu a Rússia porque jantou mal antes de conversar com Alexandre? Se Hitler não tivesse nascido, o holocausto não aconteceria? Se você não tem uma desilusão amorosa, como vai encontrar o amor? George já tem dinheiro o suficiente pra brincar de inventor, vai jogar na mega-sena? E quem garante que os números serão os mesmos? Aquele que inventar uma máquina do tempo de verdade vai provar qual a lógica temporal correta. Você volta para o mesmo passado ou cria uma nova linha temporal toda vez que viaja? Em ambos os casos, não há garantia que o resultado da loteria seja o mesmo. Mas isso tudo não importa, George não inventou uma máquina do tempo. Passei o resto do dia mergulhado na pesquisa sobre Roma. Ainda não abri as cortinas. 
 

24 de agosto 

Acordei com uma mensagem: Inventei a máquina do tempo. Corri pra casa do George, mas ninguém atendeu. Liguei, bati na porta de seus vizinhos, mas ninguém o viu há algum tempo. Falei com seus pais, também nada. Eles hesitaram diante da minha ideia de abrir uma queixa de desaparecimento, tive que dizer que ele sumiu há dias. 

Depois disso, não sobrou muita coisa pra fazer. Não ficava quieto em casa, então decidi ir à biblioteca para escrever a pesquisa, me forçar a ficar quieto. Não rendeu muito. Fiquei pensando o tempo todo que, se fosse verdade, tudo aquilo que eu estava escrevendo poderia mudar no dia seguinte. 

Por mais que tudo seja muito estranho, tenho uma convicção de que não foi uma brincadeira. George nunca parece estar brincando, nem quando faz piada. Desde que eu conheci ele é assim. Era o final do ensino médio, eu não sabia se cursava História ou Medicina. Ele se aproximou como se soubesse exatamente o que se passava na minha cabeça e me perguntou o que eu ia fazer. Depois de explicar a situação, ele me falou um monte sobre a criação da ciência histórica, sobre como o passado é uma produção constante e que nosso senso de identidade é feito de trás pra frente, já que nós atribuímos causalidades só depois que os efeitos já foram produzidos. Eu fiquei fascinado por aquilo, já que isso implicaria que tudo aquilo que eu sei sobre mim mesmo depende daquilo que eu quero ser e, no limite, o que é verdade e o que é interpretação na vida se torna em certa medida indistinguível, como um drink no qual você não sabe onde acaba um sabor e começa outro, foram essas as palavras que ele usou. Se não fosse o George, acho que teria tentando fazer Medicina, perdido anos de vida, só pra ir pra História depois. Em toda a nossa vida George pareceu guardar em si as palavras certas para os momentos certos. Mesmo as piadas dele produziam um efeito misterioso, como se fossem charadas que escondiam algo mais profundo. O que ele disser, eu acredito.

Fui agora abrir a cápsula para guardar o diário e notei algo estranho. Podia jurar que ela era prata. Mas é branca. Na verdade, pensando bem, quando George me deu ela, brinquei sobre como meu reflexo ficava distorcido na superfície metálica. 
 

25 de agosto 

Fui ao lançamento do novo livro do George hoje, A Máquina do Tempo. Chamaram ele de o novo Álvares de Azevedo, o que é só uma maneira de dizer que ele é amargurado demais pra idade que ele tem. Sinceramente, eu penso que toda a poesia que o George já produziu se resume a um monte de coisas que você já pensou em algum momento mas nunca anotou, é uma peneira do senso comum. Parece que ele encontra sempre o cara mais deprimido no recinto e espera até ele soltar algo que possa ser transformado em verso. Então ele faz esse inventário da melancolia. O tema principal de A Máquina do Tempo é o arrependimento de não ter vivido outra vida, o que é uma coisa estúpida, já que ninguém sabe o que aconteceria se tivesse virado a esquina 2 ao invés da 1. O arrependimento é uma saída muito fácil pra própria mediocridade. Fiz Medicina, mas na época pensei em fazer História, mas não faz sentido me perguntar: e se eu tivesse feito História? As decisões só acontecem, é uma pergunta igual a: e se essa pedra não tivesse caído? E se esse coração não tivesse falhado? Não há lugar pra aleatoriedade no universo, as decisões humanas são tão absolutas quanto as leis da natureza. E por isso o livro do George é uma merda. 

Três pacientes morreram na minha mão hoje. É por isso que eu estou tão amargurado, estou sendo maldoso. Não pude fazer nada, é como se eu nunca tivesse sabido medicina. 

Não lembro onde deixei a cápsula do tempo, que piada. Logo eu, que estudo a memória. 

 

26 de agosto 

George me respondeu sobre minha pesquisa. Ele disse que os resultados sobre o efeito de ondas extracranianas sobre a memória são muito promissores. Ele acredita que se pode construir um aparelho de restabelecimento de memórias. Isso me incomoda um pouco, pra falar a verdade. Depois de chegar tão longe, penso em abandonar a pesquisa. Como eu sei se uma memória recuperada é verdade ou inventada? Tudo bem, nós chamamos parentes dos pacientes e eles testemunham que a memória é verdadeira, mas já que a frequência das ondas extracranianas é selecionada de acordo com os núcleos linguísticos do cérebro, não poderíamos estar na verdade injetando palavras, textos, escrevendo memórias de acordo com o que os parentes nos contam? Experimentalmente, é muito difícil distinguir uma coisa da outra. 

Além disso, o esquecimento não faz parte da vida? É claro que é promissor para o Alzheimer, mas nós sabemos que não é assim que o mercado funciona, isso vai dar em outra coisa. Reativar conexões perdidas sempre vai implicar em anexar elas a polos neurais que não existiam quando ela foi criada. É como se ela ficasse incubada e depois jogada em um ambiente cuja organização não incluía ela, os resultados são imprevisíveis. Na prática, é como se criássemos memórias que viajam no tempo, que ficaram muito tempo latentes mas em algum momento voltam inalteradas, não afetadas pela passagem do tempo. São como fantasmas. São como cápsulas do tempo. Tenho um pouco de medo do que pode ser feito disso. Se realmente se tratar mais de uma invenção do que reativação, se forem como memórias injetáveis, não há um limite para isso, pode-se criar passados inteiros para as pessoas. Lavagem cerebral em seu mais puro estado. Pode ser aplicado no sistema prisional, transmitido via rádio, usado para educação. Pode-se formar um atleta injetando memória muscular? 

Não tenho certeza. Tendo a pensar que a passagem do tempo é constitutiva da memória, que a maneira como as memórias crescem muitas vezes é mais importante do que seu conteúdo original. Reativar ou injetar lembranças — pouco importa, em ambos os casos algo que remete ao passado é vivido em intensidade e significado de coisas do presente — talvez faça com que elas se comportem como fatos absolutos e atemporais, as memórias se comportariam como códigos de programação. Ou talvez o paciente experimente uma memória injetada de infância com a mesma força de algo atual, ele se comportaria como se ela sempre esteve lá, e sempre foi assim. Parece que todos os dias ao acordar nos convencemos de que nós somos nós mesmos, repassando em milésimos de segundos o script da nossa vida e entrando todo dia no mesmo personagem que, afinal, é o que chamamos de eu. Escrevi na tese que a invenção e a rememoração depois de certo ponto tornam-se quase indistinguíveis como os sabores em um drink, mas, deixei essa parte de fora, o que acontece se você bebe demais? 
 

27 de agosto 

Estou um pouco preocupado com o George. Hoje havia um bilhete embaixo da minha porta: más notícias, inventei a máquina do tempo.

 


 

Basílio Baran é estudante de Psicologia na Universidade Federal do Paraná e autor de dois livros, incluindo a coletânea de contos Isolamento Social e Outros Paradoxos. Este conto é um dos ganhadores da 5ª edição do Concurso Literário Luci Collin, promovido durante a XXV Semana de Letras da UFPR.