CONTO | Antonia Leão 30/03/2021 - 01:29

Distopia ao vivo e em cores


Eu acordo sendo sacudida. Lentamente abro os olhos e encontro meus pais sentados em minha cama. A mão de minha mãe ainda está no meu braço, o apertando com mais força do que acredito que ela pretende. Ela me encara com olhos arregalados e feições trêmulas. Meu pai, por outro lado, mantém contato visual com o chão. Eles não precisam me dizer. Foi a vez da vovó. 

Estico os braços para abraçar meu pai. Ele recua. A situação tem assustado ele tanto, que está se privando de contato físico completamente. Ele começou a dormir na sala quando vovó testou positivo. “Nenhum cuidado é extremo demais", diz.  

O velório não poderá ser presencial. Meu pai ouve a notícia através de um amigo: “Minha tia morreu e não pudemos ir”, ele disse. “Tivemos que assistir enquanto um padre lia elogios genéricos sobre ela.” 

Mas a realidade é pior. De fato, nem velório ela terá. De acordo com as autoridades ela deve ser enterrada em um caixão lacrado. Dentro do caixão seu corpo será embrulhado em um lençol dentro de dois sacos. Minha vó, que dizia que tinha medo de doar seus órgãos por ter medo de não ir inteira para o céu, irá assim. Entretanto é permitido atender o sepultamento obedecendo as regras. Apenas meu pai vai.  A missa de sétimo dia será online, ele conta. 

Ligo a TV. Pra quê? Nem eu sei. A TV costumava ser a ferramenta utilizada para escapar do mundo. Um objeto que reunia famílias; empolgava crianças; até nos embalava de noite. Agora ela não nos deixa dormir. 

No começo os números eram pequenos: a diferença era mais palpável e assustadora quando foi de 50 para 100 mortes na cidade. Antes disso era só rumores. Está longe daqui. Não nos afeta. Todos pensaram. Todos estavam errados. Agora os números são tão catastróficos que você não sabe distinguir valores tão distantes como 80 mil ou 800 mil mortes. Uma diferença tão grande que não é mais mensurável em seus padrões e fica na parte de trás da sua cabeça apenas legendada como “quantidade muito grande”. E todos os canais são números, anúncios e avisos e, no meio deste caos, entretenimento se torna uma ideia insana.  Desligo a tela e meus olhos são atraídos pelo estímulo mais próximo. Vejo primeiramente pela minha visão periférica. Me viro e me aproximo da janela.  As luzes vêm de algumas quadras à distância, de um prédio que eu conheço muito bem. Daqui é possível ver a piscina e o salão de festas. Elas estão mais fortes que normalmente. Verde. Roxo. Vermelho... Tomara que chame atenção o suficiente, penso. Mas sei que as autoridades não virão. Uma nota alta é o suficiente para o policial dizer que o ocorrido foi encerrado ou até que nunca aconteceu. Parte minha sente raiva. Inveja, até. Gostaria de fingir ignorância e normalidade mas não tenho esse luxo.  

Dias depois minha mãe me chama para a cozinha.  

 “Seu pai…” Ela vai até a pia da cozinha e de costas para mim apoia ambos braços na bancada de pedra.  Eles estão pálidos apesar da pele escura, e parecem mais finos do que nunca, como ossos de galinha. Por um segundo ela pressiona a bancada com força e as juntas de suas mãos se embranquecem. “ Seu pai precisa de mais água. Nós...precisamos de mais água”. Ela se vira levando uma mão ao rosto franzido. 

"Água? Por que não pega do filtro?”. 

“ Eu não quis te contar mas estamos usando garrafas. Aquela água não é confiável mais. Semana passada a água da pia saiu marrom. A empresa de saneamento demitiu dezenas de funcionários e começou um revezamento na cidade. A empresa de luz pode ser a próxima. 

“O quê? Desde quando? Porque não me contaram nada?” Eu pergunto pasma. O que ela tem feito com as garrafas? Não vi nenhuma na casa. Eu sempre fui a responsável pela reciclagem do lixo, como eu não... 

Eu estava esperando uma quebra de rotina há semanas. Não era isso que eu tinha em mente.  

“Porque não era preocupação sua, não é mesmo? Você é apenas uma criança. Nada disso deveria ser sua preocupação” Em um movimento abrupto ela sai de perto da pia e me envolve em seus braços. Ela me aperta, como se fora deles eu fosse desmoronar. “Eu nunca imaginei que nenhum filho meu teria que lidar com isso um dia.”  

Eu olho pra ela. Suas tranças, que sempre foram impecáveis, estão descabeladas. Seus olhos estão grandes e tristes. Ela está pensando em meu irmão. Ele foi a uma viagem de negócios para fora do país e não voltou pra casa desde então. Ele ficou desalojado por um tempo. A empresa cortou ligações com ele e o deixou desamparado desde que os aeroportos fecharam. Última vez que ouvi dele, soube que ele havia trocado serviços de limpeza por estadia em um hotel. Não o vejo há oito meses.  

“Mãe eu tenho 16 anos não sou…” 

“Não é uma criança eu sei, mas pra mim..” 

“Deixa eu terminar.” Eu exalei. Minha mãe me interrompendo foi uma das poucas coisas que não haviam mudado. "Você pode contar comigo. Me contar as coisas. Agora mais do que nunca.”  

Olho para o relógio. 22h. Policiais rondando as ruas. Luzes apagadas. Lojas fechadas. Certo. 

“Vou pegar água.” Me afasto de seu abraço, olhando para baixo para não deixar sua reação me fazer mudar de ideia. Espero ouvir protestos mas não há nenhum. Atravesso a cozinha e chego na lavanderia onde agora é a estação de limpeza.  Garrafas e mais garrafas de álcool enfileiradas no canto do chão. Sacolas com compras esperando serem limpas estão posicionadas em cima do balcão. Abro uma das gavetas dele e pego um par de luvas descartáveis. De um dos ganchos de perto da porta tiro uma máscara e um protetor facial. Olho para o último gancho, que agora está desocupado. Ela deve ter usado o protetor para entrar no quarto, penso. 

Os ônibus não estão circulando então preciso ir a pé. Carrego meus pertences dentro do bolso no meu moletom  para evitar chamar atenção. Ele é preto e largo, me envolvendo até os joelhos. Não pego meu celular em nenhum momento e espero, de dedos cruzados, para que minha amiga esteja em casa. As ruas estão desertas. Dez horas da noite no centro da cidade e tento me guiar no escuro com o reflexo da lua em poças d'água. Se eu for e me pegarem, eles serão multados e as dívidas ficarão piores. Não há flexibilização para nós. Se eu não for, a saúde do meu pai irá se deteriorar.  

Na rua, embaixo de um viaduto, vejo moradores com placas de papelão pedindo esmola. Algumas são suas mais comuns “Passo fome” ou até “quero comprar drogas”. Me deparo em uma diferente, entretanto: “Nosso encontro com Deus está próximo: apocalipse está aqui”. A letra é garranchada, mas legível, em caixa alta.  Ela não está errada, penso. Nada disso faz sentido mais. 

Quando chego na casa de minha amiga ela já está lá, me esperando do lado de fora. Sua máscara está no queixo. Peço para ela colocar os galões de água no chão, mas ela vai para o abraço. Quase caio para trás de susto. Abraços se tornaram tão extintos quanto o lobo-guará.  Me esquivo. Será que ela sabe que o risco é maior para mim? Agradeço e economizo na lereia. Me afasto de supetão e retorno com um galão em cada mão. 

Passo álcool nos galões e vou correndo para o banho, sem olhar para trás. Quando retorno à sala estou de pijama.  

“Alguma novidade?” Eu entro na sala, esperando encontrar minha mãe. Em vez disso, me deparo com meu pai deitado no sofá. Sua figura está fraca, e seu rosto parece tão caído quanto sua máscara pendurada na orelha.. Ele está na frente da TV mas não está rindo, com aquele sorriso branco invejável que acalora qualquer um. É como se seu brilho tivesse sumido. Dou três passos para trás. 

“Onde você estava?” Meu pai pergunta, reposicionando a máscara no rosto. Seu tom tentava ser furioso mas não tinha força dentro de sua garganta para isso.   

Nós não vamos brigar desta vez, penso. Não temos mais esse luxo. Em vez disso, deito ao seu lado no sofá e o abraço, pelo menos em espírito. O que faço é mais simbólico. Deito no chão a passos de distância e estico o braço em direção ao sofá; Ele ainda está franzindo mas minutos depois ele entende. Ele estica, então, o braço pra fora do sofá como resposta. 

Na missa de sétimo dia assistiremos por uma tela um padre – um estranho – dizer últimas palavras de gentileza para minha vó. Ele a chama de Helena. Seu nome era Heloísa.  

 

Antonia Leão é uma das finalistas do Prêmio Off Flip de Literatura 2021 e terá um conto publicado em uma coletânea do Selo Off Flip ainda neste ano. Também teve poemas publicados no livro Palavra de Mulher, lançado em 2019. Vive em Curitiba (PR).