Romance | Prêmio Biblioteca Digital 25/02/2021 - 22:10

Leia o primeiro capítulo do livro A Canção de Variata, de Helton Timoteo, terceiro colocado no concurso promovido pela BPP e disponível gratuitamente em e-book

 

A canção de variata
Clique na imagem para baixar o livro

 

CAPÍTULO I 

ORAÇÃO DOS PESCADORES 

João Pescador amanheceu devagar. Os olhos ofendidos pela claridade matutina. Mexeu calmamente com os pés. Bocejou uma, duas, três vezes. Cruzou as mãos sob a nuca e ficou olhando o teto. Pensar? Não pensava em nada. Apenas acompanhava, com a curiosidade de um macaco, o entrelace amoroso das tiras de sapê que telhavam a choupana. 

João Pescador tinha uns... sessenta e poucos anos. Alto. Magro. Rosto encarquilhado pelo sol e pelo vento. Cabelos enluarados. Gosto de maresia no corpo. E um jeito agudo de olhar para as coisas e as pessoas, como se as consumisse na fome geral do granito. 

Levantou-se com lentidão. Enrolou a esteira, depositando-a, em seguida, no canto mais claro da choupana. Sentou na única banqueta junto à mesa de madeira. Fechou os olhos. Suspirou fundo. Fincou os cotovelos na tábua encardida. Cerrou os punhos nodosos, onde as veias grossas e esverdeadas ameaçavam romper-se a qualquer momento. E resmungou — ainda sonolento — a Oração dos Pescadores. 

Terminado o singelo ritual, reabriu os olhos, ergueu-se pesadamente. Voltou a suspirar profundamente. Olhou a sua volta, procurando, talvez, algo para preencher o tempo ocioso, ou simplesmente constatando, com o olhar fatigado, a precária existência dos objetos ao seu redor. 

Colocou, no fogão a lenha, uma vasilha com água. Ateou fogo à madeira seca, que logo entrou em combustão. Tornou a sentar, aguardando, calmamente, que a água fervesse. Ou melhor: que atingisse uma temperatura ideal, antes dos cem graus centígrados, para ele fazer o café. Segundo acreditava, dessa forma ficava mais saboroso. 

Preparado o café, João encheu uma lata de salsicha, que lhe servia de xícara, até a borda. Começou a saborear, devagarzinho, o líquido marrom escuro e quente, sem uma pitada de açúcar. Olhou novamente o teto da choupana e os objetos em torno. Os olhos vidrados, como se apreendessem apenas o enorme vazio a que se reduzira sua miúda existência. 

Esse vazio, contudo, não deve ser entendido no sentido niilista do termo. Não é que a sua vida tenha perdido completamente o sentido ou se tornado um vácuo absurdo. Mas como uma forma de esvaziamento de tudo quanto é desnecessário. João acumulara, durante sua longa existência, inúmeras experiências, inúmeras vivências, algumas muito boas, outras muito ruins. Logo, esse esvaziamento nada mais era do que um jeito sábio de abandonar definitivamente o que não presta; o que excede ao coração de um homem simples. 

Várias vezes ele se perguntava por que tinha ido morar naquela ilha, a extensas milhas do litoral, habitada apenas por algumas famílias de pescadores e outros pouquíssimos habitantes. Longe de tudo e de todos. Questionava-se, embora sem muita ênfase, por que deixara para trás toda uma vida que, se não era tão pródiga, também não era de todo precária. Uma vida repleta de aventuras e possibilidades de todas as espécies. Mas, pensando bem, era justamente disso que ele tinha fugido; talvez não quisesse mais sucumbir à agitação feérica da vida urbana. À avalanche cotidiana. 
Aproximou-se da janela, em cujo parapeito apoiou os cotovelos calejados. Ficou contemplando, com certa isenção, a paisagem exterior. A maré estava baixa. As embarcações suavemente balançavam na água calma, exibindo a maior parte dos seus cascos desgastados pelo salitre. Gaivotas sobrevoavam a orla, em busca do seu desjejum. Alguns pescadores já estavam no mar, nos preparativos da pesca. Outros consertavam suas redes embaixo de uma grande amendoeira. As mulheres concentravam-se nos afazeres domésticos, enquanto as crianças brincavam na areia. 

O armazém e o bar já estavam abertos. Só a barbearia do Neco continuava fechada. Ele costumava abri-la só depois das dez horas. Sabia que não teria fregueses antes desse horário. Sentado numa canoa velha e inservível, Zé do Trabuco limpava carinhosamente sua arma, como quem acaricia uma namorada. Perto dele, o jegue de Manoel Manco fuçava uma lixeira e, com os beiços flácidos e os dentes encardidos, tentava mastigar uma folha de papel, amarelada e suja. 

Ao ver o animal, João Pescador sorriu afetuosamente. Há muito que o jegue frequentava sua casa. Diariamente, em geral no finzinho da tarde, após ter sido explorado e maltratado o dia inteiro pelo seu dono insensível, Manoel Manco, ele se aproximava da choupana do Pescador. Sabia, intimamente, que ali não haveria espaço para maus tratos. O Pescador daria água para ele e comida. Alisaria seu dorso e sua cabeça com carinho. Falaria palavras doces ao seu ouvido. 

O dono dele é que não apreciava nem um pouco essa amizade. Talvez achasse que João pretendesse, sub-repticiamente, se apropriar do pobre animal. Vontade não faltava. Mas ele jamais o faria. Abandonara na cidade todo o seu senso de propriedade. Não queria ter nada, não queria ser dono de nada. Apenas gostava da companhia do bicho, espontaneamente. Sem interesse de espécie alguma. Apenas nutria por ele uma grande afeição. O mesmo ele não poderia dizer em relação ao seu dono. Havia algo nele e em suas atitudes que desagradava profundamente o Pescador. Contudo, não sabia precisar. 

João Pescador tomou outro gole de café, antes de, com um ar de enfado, sair para se dedicar aos seus afazeres cotidianos. 


Helton Timoteo nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Especialista em Teoria da Literatura / Produção Textual e Mestre em Linguística Aplicada (UERJ), é professor de Língua Portuguesa e Literatura, no Ensino Médio, e de Linguística, no Ensino Superior. Publicou os livros de poemas Réquiem para Lavine (2015) e Maçã Atirada sem Força (2017), ambos pela Penalux.

 

Faça o download dos outros livros vencedores do Prêmio Biblioteca Digital aqui