SÉRIE ESPECIAL | Mulheres contra a Ditadura 15/05/2024 - 12:09

“Eu vou brigar o tempo todo”

Depoimento de Elisabeth Fortes a Marianna Camargo, Maria Beatriz Peres e Francisco Camolezi

 

Elisabeth Fortes recebeu a equipe do jornal Cândido, Francisco Camolezi, Maria Beatriz Peres e Marianna Camargo, no seu apartamento, em Curitiba (PR). Em torno da mesa de sua sala, com uma grande janela para a zona norte da cidade, Beth conta sobre sua trajetória na militância política durante a Ditadura no Movimento Estudantil, o período em que ficou presa e o trabalho como jornalista.

Assim que chegamos, Elisabeth nos levou a um dos quartos do apartamento. Disse: “Olhe ali!”, apontando à direita. À nossa vista estava a Penitenciária do Ahú, local que ela ficou encarcerada por 1 ano e meio. Marianna pergunta: “Você consegue morar ao lado do lugar onde foi sua prisão?”. Ela a olha com um sorriso, como se compreendesse que a memória é indelével e ao mesmo tempo, com o olhar de quem possui a lucidez inequívoca de quem já passou por uma experiência intensa, que existe como cicatriz, marcada a ferro e fogo, para não esquecer e para ressignificar.

Beth faz questão de reafirmar sua posição: “Eu sou a famosa ‘piolho’. Eu sou teimosa. Isso faz eu desistir? Não faz. Faz com que eu vá mais à frente. Eu vou brigar o tempo todo. Não quero nem saber a hora que eu não tiver mais força. Aí a gente vai ver. Mas enquanto eu puder, eu vou [lutar]”.

 

“Eu percebia que o clima era estranho”


Eu nasci em Quatiguá, interior do Paraná. Minha família morava em Santo Antônio da Platina. Eu nasci em 1945. As mães ainda não faziam parto em hospital, eram com parteiras, eu nasci de parteira. Nessa cidade morava a minha avó. Quando a minha mãe estava para ter filho, ela ia para a casa da avó. Primeiro veio o Otávio, depois a Dedé [Adelaide]. Nós três nascemos de parteira, só a Bea [Beatriz] que nasceu em hospital. Eu nasci dia 12 de junho. Daqui dois meses eu faço 79 anos. O ano que vem eu já faço 80. Estou velhinha, né? Estou rodada [risos]. Morei a infância toda e um pedaço da adolescência no interior do Paraná. Infância de criança de classe média. Meu pai não era muito pobre, mas também não tinha muito dinheiro, já que tinha quatro filhos para criar. Então, era aquela vida de criança… que não tinha telefone, que brincava na rua, no quintal. Aí, o lado machista do meu pai, pequeno burguês, claro, comprou uma bicicleta só para o meu irmão. As irmãs não tinham bicicleta, mas a gente andava enfiando a perna por baixo do cano do mesmo jeito.

O Otávio já tinha terminado a escola e estava vindo para Curitiba para fazer faculdade. Eu resolvi que eu ia fazer também. Dizia para meu pai: "Eu quero fazer faculdade", e ele respondia: "Não, mulher não precisa. A mulher precisa casar, precisa aprender a bordar". Eu retrucava, "não, eu quero fazer faculdade, eu quero estudar". Bati um pouquinho o pé e meu pai resolveu mudar para Curitiba. Chegamos no início de 1964, veio toda a família. O Otávio já estava entrando na faculdade de Arquitetura, eu ia terminar a escola e fazer o vestibular e a Dedé também estava pensando em fazer faculdade. Então, ele decidiu que todos viriam para Curitiba.

É em abril de 1964 que eles tomam o poder. Chegamos no início do ano. Quando cheguei, já sentia um clima, mas eu era muito alienada. Uma menina que não tinha nem noção do que estava acontecendo. Mas, eu percebia que o clima era estranho. Eu sentia que tinha alguma coisa errada. No dia de 31 de março para 1º de abril, não tínhamos televisão, apenas um rádio — esses radinhos pequenininhos —, e escutamos o noticiário sobre os militares de Minas Gerais e de São Paulo se unindo para derrubar o Jango [João Goulart, presidiu o Brasil de 1961 a 1964]. Fiquei muito assustada, e ao mesmo tempo muito interessada. “O que é isso? O que está acontecendo?” Disso para entrar na faculdade foi uma questão de meses.

 

“Andávamos o dia inteiro”

 

A Teresa Urban [Jornalista, 1946-2013] já estava na faculdade, inclusive, eu era caloura dela. Ali, conheço uma série de pessoas muito brilhantes, muito inteligentes, lideranças. Fiz o primeiro ano ali na Universidade Católica Santa Maria, que era na Rua XV, do lado do Teatro Guaíra. Ali era a faculdade. É neste primeiro ano que eu começo a despertar para um monte de coisas: músicas maravilhosas que começam a aparecer, peças de teatro muito interessantes que eu começo a descobrir. No Colégio Santa Maria tinha um pequeno cinema que passava o tempo todo filmes maravilhosos. E a gente ia lá, assistia o filme e depois ficava debatendo sobre. Tudo isso vai mudando a tua cabeça, vai crescendo.

Nesta época, eu termino o primeiro ano [na Católica] e peço transferência para a Federal (UFPR) — eram três anos só de jornalismo —, e entre 1967 e 68 fiz a UFPR. Aí, o movimento estudantil já está no máximo. Às vezes eu saía de casa e não voltava nem para dormir. O meu roteiro era assim: eu morava em frente ao Hospital Nossa Senhora das Graças, no Mercês. Então era sair dali, ir até a esquina da Manoel Ribas e descer. A primeira parada era a UPE (União Paranaense dos Estudantes). Parava ali, já tinha gente discutindo, e daí a gente se envolvia. Mas também, nessa idade, tanto faz andar uma quadra como dez, para nós não fazia diferença nenhuma. Andávamos o dia inteiro mesmo. Ia e voltava: "vamos para a Assembleia?", passava no Restaurante Universitário, almoçava, dali você já sai para fazer não sei o quê. Fizemos muita assembleia, muita passeata.

 

“Será que vai cair neve?”


O ano de 68 foi mais ativo, mais pesado, porque a gente passou o ano inteiro brigando uma coisa atrás da outra. No dia 13 de dezembro de 1968 vem o AI-51, que daí põe tudo na ilegalidade. Tínhamos o Diretório Acadêmico representando a nossa faculdade e tinha a UNE (União Nacional dos Estudantes), que estava proibida, era clandestina, e a gente não aceitou. Então, nós vamos brigar pela UNE, nós temos direito a nossa representatividade. Toda a panfletagem, a maioria dela, era feita no mimeógrafo. Era a nossa comunicação. Tinham várias informações de fora para dentro. Não tinha telefone, não tinha nada. Pichação a gente também fazia. Normalmente saía um casal, um homem e uma mulher, nunca duas meninas ou dois meninos, porque a hora que você via que tava vindo o policial, fingia que estava namorando e largava tudo ali mesmo. Mas sempre muito atentos. Havia também um código para encontrar alguém: eu não te conheço, você não me conhece, mas eu tenho uma senha para falar com você. Eu tenho que passar ali na Boca Maldita para encontrar um homem que vai estar com a gola levantada, o Fábio Campana [Jornalista, 1947-2021], com um jornal embaixo do braço. Você chegava e dizia uma senha estranha. O sol brilhando e era: "Será que vai cair neve?". Se ele dissesse: "É, neve não, mas vai cair um raio na tua cabeça". "Ah, então é você que eu estou procurando". Se o cara dizia "Você tá louca?", já sabia que não era aquele. Então as comunicações eram assim. A maioria das vezes isso dava certo, às vezes não. Às vezes um ou outro caía nisso, porque o tempo todo a gente sabia que tinha gente infiltrada.

Têm algumas histórias muito engraçadas. Precisávamos fazer uma panfletagem e toda a polícia estava atrás de nós. Então, eu não me lembro exatamente quem, mas eu acho que um deles foi o Vitório Sorotiuk (advogado, 1945) e mais alguém, talvez a Teresa Urban. Pegaram um monte desses panfletos e levaram para cima de um prédio. Botaram lá em cima com um monte de saco de gelo, deixaram e desceram. E todo mundo sumiu. O gelo derreteu. Aí começou a panfletagem e a polícia, desesperada, querendo pegar quem é que estava fazendo aquilo. Todo mundo já tinha escapado, estava longe. Então, ainda tinha essas “sacadas", né? Isso o tempo todo. Às vezes, a gente tinha uns caixotinhos que deixávamos perto da Praça Tiradentes, na Praça Santos Andrade. A gente subia no caixotinho e fazia assembleia, discussão rápida, e corria de novo. Porque você via de longe que estava vindo a polícia.

 

“Você não tem a certeza, mas tem a desconfiança”

 

Quando a gente foi para Ibiúna2, no trigésimo Congresso da UNE, em outubro, a polícia já tinha cercado o sítio inteiro. Como é que ela sabia disso? Um erro nosso. Quase mil pessoas em uma cidade que tinha, acho, no máximo cinco mil pessoas, a gente na padaria e pede 500 pães. Como assim? Então, o que esse rapaz quer? E dentro, mesmo no nosso grupo, tinha olheiros, informantes, por isso nós caímos em Ibiúna. Os próprios estudantes faziam parte. Sabe aquele cara boa gente, simpático, que está em todos os lugares e tal, mas você nunca consegue identificar qual é a faculdade? Ou está na faculdade, mas não vai para a faculdade? Você não tem a certeza, mas tem a desconfiança. Alguns paramilitares, inclusive o Cabo Anselmo3. Ele se filiou ao partido, participava de reuniões do alto escalão, e depois de muito tempo ficamos sabendo que ele era militar mesmo, que estava passando tudo que tinha de informação. Ele se infiltrou e quase desmantelou o partido inteiro entregando todo mundo. Então tem isso também.

Eu tenho um livro que é pesadíssimo e se chama Matar e Queimar [Denise Assis, Editora Kotter] que é sobre um dos caras do Exército. No Rio de Janeiro, eles prendiam as pessoas e levavam para a “Casa da Morte", em Petrópolis. Então, às vezes, já chegavam com o cara morto, às vezes com ele vivo. Matavam em Petrópolis e enviavam para o Espírito Santo o corpo embrulhado em saco de lixo, depois queimavam numa usina de açúcar que estava parada. Sumiram com muitos corpos deste jeito. Algumas descrições são chocantes. Um dos rapazes, quando chegou lá na “Casa da Morte", ainda vivo, tinha um braço arrancado e estava com as pernas quebradas. Ele não aguentava mais, mas continuaram com a tortura e depois o mataram. E queimaram. Sumiram com o corpo, né? Então a ditadura inteira, de 1º de abril de 1964 até 1985, foi cada vez piorando mais. À medida que ia passando o tempo, eles se preparavam melhor, inclusive, para nos perseguir. E nós também criamos mais coragem. É uma coisa muito louca. Porque você também vê que quantas vezes te derrubar você vai levantar, não adianta. E levanta mais forte ainda. E já sabe, inclusive, que tal coisa não dá para fazer, mas outra sim. Então é uma luta mesmo, uma luta diária, constante. A juventude tem uma coisa muito boa que é não ter medo de morte.

Quando fomos presos em Ibiúna, ficamos uma semana no Presídio Bandeirantes e daí nos devolveram para Curitiba. Nós estávamos em uns 22 estudantes, mais ou menos. Daí, como a gente não conseguiu fazer o Congresso da UNE em São Paulo, decidimos o seguinte: "Então, nós vamos fazer eleições regionais. Cada Estado vota no seu candidato a presidente e a dita diretoria da UNE. Daí cada um de um Estado levava o voto”. Ficaria muito mais tranquilo. Aí que a gente foi fazer a reunião na Chácara do Alemão, onde a gente foi se reunir para votar, no [bairro] Boqueirão. Eu não sei te dizer exatamente onde, porque depois que a gente foi presa, eles botaram a gente nuns caminhões e levaram direto para o quartel do Boqueirão.

 

“Não tinha medo de morrer, mas do que explicaria para minha mãe.”

 

O combinado era assim: se chegasse a polícia, estouravam os foguetes. Mas quando vimos, a polícia já tinha cercado tudo. Só depois que os foguetes estouraram. Existem discussões sobre isso. Por que não soltaram esses foguetes antes? O que é que aconteceu? Por que é que as pessoas responsáveis por isso não avisaram antes? Mas nós começamos a correr. Eu comecei a correr. Com as pernas compridas fica mais fácil, né? Eu estava de sandália, meia de seda, minissaia... que é uma outra luta. Essa é uma outra luta.

A minissaia é uma luta, a liberdade sexual é uma outra luta. Então a gente lutava por um monte de coisa ao mesmo tempo. Os direitos não eram só pela democracia, não só a liberdade, nós queríamos a liberdade verdadeira. Por que eu não posso transar com meu namorado? Por que essa proibição? Quando eu estava correndo de saia, de minissaia, estava correndo com o Gilberto Bueno Coelho. Aí o soldado gritou "para, moça". Eu continuei correndo, daí ele falou: "para a moça, se não eu atiro.” Aí pensei: “eu vou parar, porque senão ele vai me dar um tiro e como é que eu vou me explicar para minha mãe?" [risos]. Não tinha medo de morrer. “Vou te dar um tiro” não significava nada. A preocupação era "como é que eu vou me explicar para minha mãe?". Aí é complicado. Então, a juventude tem isso de bom, você é meio imortal mesmo, né? Você vai com tudo, com muita coragem.

 

“A vida não tinha o mínimo valor”


Foram presos 40 e poucos estudantes, no mesmo lugar, na mesma chácara. Fomos colocados nesses camburões e levados para o quartel do Boqueirão, depois eles nos levaram para o presídio do Ahú. Passamos uma noite e um dia inteiro. A gente chegou já devia ser umas 16h ou 17h no Ahú, fomos presos por volta de 12h e 13h. Daí eles começaram a identificar os estudantes e selecionaram 15 lideranças, 13 homens4 e 2 mulheres, eu e a Judith [Barbosa]. Eu, por exemplo, já tinha sido presa em Ibiúna e era muito conhecida na Universidade Federal. O Vitório [Sorotiuk] era presidente do Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS), o Mauro Goulart era o presidente do Sindicato dos Médicos do Paraná. A maioria de nós era liderança. A Judith era da História da Federal, bastante conhecida. Então o critério foi esse mesmo. Totalmente absurdo. Nós fomos o tempo todo julgados por uma junta militar. Nunca houve nenhum militar entre nós, [entre] os 15 estudantes civis julgados.
Nos prenderam e nos levaram para uma sala. Logo depois que estávamos presas, ficamos uns dois ou três dias incomunicáveis, sem conseguir falar com os pais ou um advogado, nada. Mas como tínhamos no grupo pelo menos uns quatro estudantes de Direito que sabiam como se comunicar, conseguimos uns advogados muito bons: René Dotti, Acir Breda, Jose Lamartine Correa De Oliveira Lyra, só medalhão. A maioria deles nos defendeu sem cobrar nada. Fomos o primeiro grupo a ser preso, julgado e condenado. Depois começaram a prender um atrás do outro. Como o presídio do Ahú era masculino, ainda nos ofereceram — para mim e para a Judith — ir para o presídio feminino, mas nos negamos, pois ali estávamos em 15 e cuidávamos uns dos outros; se nos separássemos, quem garantiria que chegaríamos vivas até lá? A vida não tinha o mínimo valor, então preferimos ficar em um presídio masculino, onde ficávamos trancadas 24h, mas tínhamos a segurança dos garotos, que eram treze. Eles — os treze — ficavam em uma cela só, em uma sala de aula onde dispuseram as camas deles.

 

Capa vermelha


Havia duas camas, uma pequena janela, uma mesa com duas cadeiras e um banheiro com vaso sanitário, chuveiro e pia. Quando chegamos não havia água quente, foi ter depois de um tempo. O café era servido na nossa cela. O almoço e a janta eram com os meninos. O tempo todo a gente lia muito. Uma coisa engraçada é que não podia entrar livro se fosse vermelho — O Livro Vermelho, do Mao Tsé-Tung, não podia, pois tinha a capa vermelha, mas O Capital, de Karl Marx, podia, pois a capa era branca. A carcereira era semianalfabeta e às vezes perguntava: “O que está escrito aqui?". Ela censurava os livros, mas não sabia o que estávamos lendo. Mas podíamos enviar cartas e às vezes recebíamos. Por exemplo, o Iran, que era de Fortaleza, e o Marquinho [Marco Antônio Nascimento Pereira], do Rio de Janeiro, que era recém-casado, quando a mulher dele não podia vir para Curitiba, se comunicavam por cartas. Passava por uma censura, mas como era uma carta mais pessoal, não havia muito problema. Mas tivemos, sim, outros problemas: dos 15 presos, cinco foram condenados a 1 ano; e os dez foram condenados a dois anos, que diminuiu para 1 ano e meio. Os cinco primeiros foram o Iran Vieira Dias, Marquinho, Marco Apollo, o Mário Oba e a Judith Maria Barbosa, então, eu fiquei sozinha na sala. Fiquei seis meses sozinha. Mas, desde que começou a epopeia da nossa prisão, a gente podia receber a família nos domingos. Ia a minha mãe, meu pai, minhas irmãs e a minha sobrinha Dora [filha da Dedé], que quando nasceu, com oito dias, levaram para eu conhecer.
Nunca fui torturada fisicamente, embora o presídio já seja uma tortura. Tive alguns problemas com um ou outro policial por vestir vestido e roupas curtas; eles ficavam falando gracinhas e passando a mão. Mas era isso. Os 15 ali dentro não sofreram tortura física. Enquanto estávamos lá, foram chegando outros presos políticos. Muitos foram torturados. Às vezes chegavam garotas sendo torturadas, passavam um ou dois dias e depois desapareciam, não sabíamos para onde elas iam. Lembro que na época passava a Copa do Mundo de 1970 na TV, era o único lazer que tínhamos.

 

“Desculpa, foi engano”


Não lembro quem passou um bilhete para a Beatriz [irmã mais nova] para entregar para um dos meninos que já havia saído, que dizia algo como “E aí, cachorrão, como vai a luta?”, uma conversa de amigos. Ela estava com o meu livro — O Capital — e colocou o bilhete dentro para entregar para o rapaz. Só que ela encontrou com um rapaz da escola que pegou o livro emprestado, e ele acabou sendo preso. “Que luta é essa? Cadê as armas?” Prenderam a minha irmã com 17 anos, jogaram ela dentro de um fusquinha e a levaram para o quartel. Ficou aproximadamente 10 dias presa sofrendo todo tipo de tortura. Mandaram ela tirar toda a roupa, penduraram ela de cabeça para baixo com o cabelo em uma bacia com água, e começaram a dar choque em toda parte do corpo. E ela dizia que não tinha nada a ver com aquilo. Ela pensava: “Não vou falar nada. Não adianta me perguntar nada, não vou entregar ninguém”. Ela era muito resistente. Depois, a colocaram em um avião junto com o menino da mesma escola, e enquanto sobrevoavam Foz do Iguaçu, os militares abriram as portas do avião e ficaram ameaçando jogá-los lá de cima. Depois de 10 dias de tortura inenterruptas, devolvem ela e dizem: “Desculpa, foi engano”.

 

“Tira essa matéria”


Eu redigia para o Jornal das 10h, o Jornal Estado do Paraná e a Tribuna. Cansei de estar escrevendo e ter que parar, "tira essa matéria". Era assim: "Tira que essa daí não vai sair". "Não dá mais tempo". As desculpas eram das mais verdadeiras, "não, isso não é para entrar" até aquela "Ai, não vai mais dar tempo, deixa essa pra depois".

 

“Não tem como fingir que não estou vendo”

 

Aí vem as outras lutas nossas. Estava vendo que, atualmente, quatro mulheres são assassinadas por dia pelo “crime” de apenas ser mulher. Tem todas essas lutas paralelas. A injustiça, a falta de dignidade, a falta de moradia digna. É uma luta diária que não tem como fingir que não estou vendo. O sistema no Brasil é canceroso e machuca todos nós. Por isso não me entrego, vou lutar o tempo todo, enquanto eu puder. Às vezes me questiono. Tenho medo de ser arrogante, não sou dona da verdade. Mas não posso fingir que não estou vendo.
Outro dia fui conversar com um grupo de prostitutas, gays e transexuais. Dói ouvir os relatos. Uma delas, agora uma mulher de 50 anos, contou que virou prostituta aos 11 anos porque o pai não tinha trabalho. Era o trabalho dela para levar dinheiro para casa. A polícia chutava e às vezes abusava dela, para depois soltar novamente na rua. Aquilo me deu uma dor. Elas têm um grupo para se auto defender, é a única coisa. Me pergunto: a gente já não devia ter superado isso?
A nossa sociedade é muito hipócrita. Faz vista grossa para um monte de coisa. Estamos regredindo ao invés de avançar. E não vai ser uma coisa fácil, não resolverá daqui a cinco ou seis anos. Talvez daqui a umas cinco gerações possa acontecer uma mudança. Porque está tão difícil mudar as coisas, romper padrões. Parece que agora é até pior do que a década de 1968, que a gente rompia, embora tivesse dificuldades.

 

O Elogio da Traição


Era uma época revolucionária em vários sentidos. O Chico Buarque de Hollanda falando “Pai, afasta de mim esse cálice5. É uma das músicas mais revolucionárias que eu já ouvi na minha vida. Belíssima, sim. Enquanto ele está falando isso numa música, você tem o Millôr Fernandes trazendo uma peça que chamava “É…”6. Excelente peça, também revolucionária. É uma época rica, eu diria, tudo se expandindo. Havia uma coisa de participar, o ativismo político, que acaba englobando também outras coisas. Mas você ouvia o que podia. Era censura braba. Ainda assim, eu tenho até hoje, por exemplo, o álbum censurado Calabar - O Elogio da Traição7 (1973), de Chico Buarque. A história deste álbum foi assim: peguei carona com um amigo, com um colega do movimento, ele havia posto o disco no banco de trás. Na hora de ir embora, quando cheguei em casa, “tchau, valeu, obrigado”, e esqueci. No dia seguinte, o cara vai em casa e entra com um policial, resgatando todos os discos de novo, porque tinha capa censurada, capa com pichação, etc. Daí fiquei quieta, ele recolheu todos, devo ter ficado branca, assustada. E o meu disco ficou no carro. Peguei novamente o vinil, enfiei embaixo do sovaco e guardei. Porque pensei assim: isto é preciosidade, é uma das poucas capas que ficou. A censura era constante mesmo. No próximo encontro vamos ouvir juntos este álbum, escutar as letras, para não esquecer jamais.

 

1 Ato Institucional Número Cinco - quinto de dezessete grandes decretos emitidos durante a ditadura; o AI-5 foi uma resposta aos protestos liderados pelo movimento estudantil na época.

2 Devido ao regime militar, as reuniões da UNE estavam proibidas e o 30º congresso seria realizado de forma clandestina. Segundo o ex-estudante Osvaldo Francisco Noce, alguns líderes do movimento estudantil gostariam que o congresso fosse realizado no Crusp (conjunto residencial da Universidade de São Paulo (USP), mas a maioria votou para que a sede fosse num sítio afastado, no interior de São Paulo, em Ibiúna. Fonte: UNE, 2018.

3 José Anselmo dos Santos (1942-2022). Agente duplo. Alistou-se na Marinha do Brasil e filiou-se à Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) em março de 1962. Por outro lado, agia como representante do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e, posteriormente, formou o primeiro núcleo de treinamento de guerrilha da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), depois filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

4 Antônio João Mânfio, Vitório Sorotiuk, Charles Champion Junior, Mauro Daisson Otero Goulart, Dacio Villar, Celso Mauro Paciornik, Berto Luiz Curvo, Hélio Urnau, Marco Apollo dos Santos Silva, João Bonifácio Cabral Junior, Iran Vieira Dias, Marco Antônio Nascimento Pereira, Elisabeth Franco Fortes, e Mario Oba.

5 Canção Cálice (1978). Composição: Chico Buarque e Gilberto Gil.

6 Peça de 1977, que teve sua estreia no teatro Maison de France do Rio de Janeiro. Elenco: Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Helena Pader, Renata Sorrah e Jonas Bloch, direção de Paulo José e texto adaptado de Millôr Fernandes.

7 Escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra, “Calabar: o elogio da traição" é uma peça de teatro musicada lançada durante a ditadura militar pela editora Civilização Brasileira, em 1973.