NICOLAU | Dança para o próximo milênio 15/05/2024 - 12:00

O Cândido resgata o ensaio de Helena Katz, autora de obras literárias sobre dança, que aborda os movimentos corporais como um fluxo cultural-biológico, publicado da edição 45 do Jornal Nicolau, em 1992

 

Helena Katz

 

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226 segundos depois daquela singularidade, a matéria de que são feitas as estrelas se espalhava por toda parte. Com o Big Bang, espaço e tempo irromperam naquele absurdo buraco negro de massa infinita e volume zero. Mas precisaram se passar cerca de 700 mil anos para que as estrelas nascessem. Nós, emergências das estrelas, demoramos ainda muito mais.

Neste universo, desde sempre, as passagens parecem não ser graduais. O equilíbrio se apresenta como um hiato entre os choques. Novos fundamentos reconstroem velhos campos, num processo permanente.

Onde mais está a mudança tão bem evidenciada como ser e vir-a-ser senão no corpo que dança? Porque quando a dança ocorre, ela transforma o corpo numa vitrine das inquietações permanentes do homem. Cada passo, cada frase coreográfica, se diz dizendo de onde vem. Compreender assim a dança significa promover uma nova aliança da dança com a sua história.

A história da dança tem sido trabalhada como a região dos fatos acontecidos, disponíveis para os mais variados entendimentos. Cada teoria toma a si a tarefa de confeccionar a melhor leitura histórica possível. Algumas acreditam chegar tão perto do fato como um fenômeno, que ambicionam aprisionar o seu frescor.

 

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Tentativas fadadas ao malogro. Aquilo que é, quando pensamos que é, já foi. Como congelar pedaços daquilo que se dá a existir como processo? Para entender a dança no mundo de Heráclito, onde tudo flui, precisamos de uma teoria que abrigue a mudança como substância, não como assunto. Precisamos de um paradigma muito esperto.

A coleção de acontecimentos que se identifica tradicionalmente como história da dança não constitui um saber apartado da dança enquanto fazer.

A história se materializa no corpo que dança. Tanto no corpo (como hardware), quanto na dança (como software). Reflexão se associa ao suor, sem perda da identidade de ambos. A associação, contudo, é acausal, pois ocorre como simultaneidade.

Pensemos no corpo que se dá a ver. A sua aparência porta invisibilidades significativas. Quando alguém anda na minha frente, não identifico com precisão a qualidade das suas trocas metabólicas, nem a regularidade dos seus batimentos cardíacos, nem estado geral de seu fígado, por exemplo. No entanto, tudo isso que não vejo, se revela de alguma maneira no modo de estar no mundo daquele que anda na minha frente. Nele, esse conjunto de informações invisíveis se toma perceptível, em alguma medida.

A reunião do corpo como forma identificável com aquilo que a opacidade da sua matéria esconde do olho desaparelhado perfaz uma determinada completude — transitória como todas as outras que o mundo abriga. Tal completude, identificada como "corpo", é quem dança. Ou seja, por sobre os dois primeiros níveis de ocorrências, um terceiro se instala. E o trânsito de informações entre os dois primeiros (forma densa + invisibilidades) contamina também o terceiro.

Quando um corpo dança, promove a combinação mágica entre todas essas instâncias. Simultaneidade pura. Que traz para o passo, para a frase, para a coreografia, esta espécie de geografia interna que nos faz ser quem somos; e que, trafegando no sentido inverso, deixa impressa naquele primeiro nível a feição do passo, da frase, da coreografia. Naquilo nomeado como feição, se abrigam os traços culturais e históricos que cada movimento porta como identidade.

O passo, então, tanto remete ao biológico quanto ao cultural (ou ao histórico) — os dois níveis nele impressos que se oferecem materializados naquilo que, simploriamente, identificamos como "corpo". Tendo o passo, temos a sua história e os corpos que a povoaram. Lá, na sua materialidade mais descarnada, nele enquanto acionamento biomecânico. A tarefa que se impõe é a de deciframento de um todo dinâmico, coalhado de interfaces.

Buscar uma teoria histórica para organizar os fatos da dança numa determinada moldura, independente da sua competência, se torna obsoleto. O fato porta a sua própria leitura. Não sendo exclusivamente histórico, clama por uma teoria que acolha todas as suas interfaces.

Afinal, um mundo recheado de simultaneidades, que não é nem lógico, nem linear, nem seqüencial, onde ilhas de racionalidade trombam permanentemente com o aleatório, exige um novo paradigma. Mundo de paredes móveis, que permitem trânsitos entre as antigas separações convencionadas pelo uso.

 

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um corpo no passo da dança

A história deixa de estar apenas na reflexão que usa características como códigos que decifram os fatos. Impossibilitada de ser momento subseqüente, uma vez que a linearidade temporal deixou de ser a verdade dominante, a História precisa trocar de papel. Dela, se exige agora que passe materializada no passo da dança de um corpo.

Ao se fazer dança, se faz história da dança. Uma nova pedagogia, sem espaço para a tradicional separação entre teoria e prática. No fazer, a reflexão emerge, em sincronia com o nascimento de cada movimento aprendido. O que o corpo armazena, sempre e sempre, é o resultado do fluxo permanente entre as três instâncias que se friccionam e se acomodam em cada um dos passos de qualquer dança. Qualquer.

Armazenamento nada metafórico. Pois que tudo começa como impressão de forma. Tudo o que brota, brota como forma. Mais adiante, num processo de associação, essa forma ganhará vividez. Forma: atrator de similitudes e parecenças. Forma: meu passaporte de ser vivo.

Mesmo o pensamento, nasce como forma. Segundo Jean-Pierre Changeux, titular da cadeira de Comunicações Celulares no Collège de France, o pensamento pode ser considerado uma forma de atividade espontânea, assim como o sonho. Com um reduzido número de componentes moleculares se desencadeia e se mantém, a nível celular, uma atividade espontânea. Numa lesma marinha, por exemplo, bastam três células nervosas para produzir uma atividade rítmica com a regularidade de um relógio.

 

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Nos seres humanos, na 10ª semana de vida fetal, antes mesmo que os órgãos dos sentidos se tenham desenvolvido, surgem células nervosas com atividade oscilatória desse tipo. A 'atividade espontânea' permite ao embrião realizar 'experiências' que, a princípio, ocorrem internamente (entre o sistema nervoso e os órgãos embrionários, ou entre os diversos centros nervosos) e, à medida que os órgãos dos sentidos se vão tornando funcionais, as 'experiências' se voltam para o exterior. Trata-se de comportamentos fetais muito rudimentares.

Não é outro o caminho que o movimento percorre até se instalar, materialmente, num corpo físico. Movimento como criação de movimento, onde se turbilhonam infinitas possibilidades. Movimento com um fim provisório.

Forma: o que se produz no cérebro, a partir daquele primeiro influxo nervoso que tem ignição espontânea. Produz-se como qualidade de forma, porque já respeita uma pré-forma anterior, determinada por padrões biomecânicos do nosso esqueleto e do nosso cérebro. Quando abandona o seu estado virtual, se apresenta no corpo como resultado de um processo de criação.

 

dunas impelidas pelo vento

O universo pode estar se desfazendo em calor, acossado num abismo de entropia. No entanto, no interior desse processo que, para alguns, pode parecer irreversível, aparecem porções de ordem que tendem para uma forma.

A continuidade da passagem de uma forma a outra se parece aos fluxos de informação dos impulsos eletroquímicos do nosso cérebro. Lá dentro, quando algo bate à porta da nossa percepção,

*ocorre uma ignição espontânea,

*os conjuntos celulares iniciam uma dinâmica (pré-mapas),

*o meio interno, se relacionando ou não com o externo, produz os mapas,

*os mapas se tornam quase-hipóteses,

*as quase-hipóteses tendem a se procurar, através da identificação formal,

*agrupamento formal das quase-hipóteses gera uma hipótese de semelhança, ou julgamento de percepção. Nessa etapa, construímos a percepção daquilo que está fora do cérebro.

Não há como reduzir a dança ao cálculo e à demonstração, num exercício de racionalidade desincorporada. Não há como dar conta do seu aspecto sensível com muita precisão, quando se depende do esforço das palavras. Pois que a dança faz do corpo uma paisagem sempre igual e sempre diversa, como a das dunas impelidas pelo vento no deserto.

O movimento entendido assalta o corpo e o molda, promovendo um ajuste permanente, contínuo e infindável entre seu padrão e o padrão preexistente.

Do cultural para o biológico, do biológico para cultural. Fluxo eterno que arma a cena de origem do movimento que alimenta a dança.

Porque é um sistema aberto, a dança, quando não consegue mais suportar a pressão evolutiva, também não desmorona, nem se desintegra, mas se reorganiza numa ordem maior. Ordem nascida da desordem: eis o novo paradigma para entendimento do corpo que dança. Passaporte para continuarmos fazendo e/ou falando de dança no próximo milênio.

Milênio com uma dança onde:

1) Todo pliê tem um padrão estético.

2) Teoria e prática se imbricaram.

3) A relação causa-efeito foi substituída pela simultaneidade.

4) A ordem nasce sempre da desordem.

5) As interfaces entre o cultural e o biológico produziram discursos novos.

6) O corpo se entende como entidade tríplice.

Ou seja: no próximo milênio, a dança se casa com a ciência.

 

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HELENA KATZ, 42, nasceu no Rio de Janeiro/RJ. É professora de História e Filosofia da Dança e jornalista. Graduada em Filosofia (UERJ), pós-graduada em Comunicação e Semiótica (PUC/SP), está escrevendo tese de doutoramento. Em revistas, colaborou com "IstoÉ". "Marie Claire", "Som Três" e "Revista do CD". Organizou no Teatro Municipal de São Paulo a I Mostra Internacional de Filmes de Dança, que se repetirá este ano. Na televisão, é editora de dança da TV Cultura de São Paulo, no programa "Metrópolis". Reside em São Paulo/SP.

ilustrações: M. Dessertenne/Lello Universal