ENSAIO | Por nocaute 15/05/2024 - 12:21

Sete apontamentos sobre a relação de Julio Cortázar com o conto, gênero literário que serviu como campo de experimentação e aproximação com o fantástico
 

Luiz Felipe Cunha

 

1.

Um dos ensinamentos clássicos sobre o conto é atribuído a Julio Cortázar, citando um amigo, que diz que no embate entre um texto apaixonante e o leitor “o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto ganha por knock-out.” A comparação com o boxe não é à toa. Na infância, Cortázar acompanhava as lutas por um rádio velho, e na juventude chegou a praticar a “nobre arte”; também se debruçou sobre o tema em seus ensaios e contos. Para o escritor, um bom conto tem que ser penetrante ao ponto de marcar profundamente o leitor, sem dar trégua desde as primeiras linhas.

 

2.
No boxe, um nocaute acontece quando um boxeador acerta um golpe em cheio no rosto de seu adversário, deixando-o rendido, incapaz de reação, com o corpo estendido na lona. É um dos principais momentos do esporte; é como se fosse o gol da classificação no futebol ou a cesta da vitória nos últimos segundos no basquete, é a ultrapassagem na última curva. Por outro lado, nos relatos de lutadores nocauteados, aparecem observações do tipo: tudo escurece, teto preto, surgem estrelas, um desprendimento momentâneo do corpo, uma pequena morte (é assim também que os franceses se referem ao orgasmo: La petite mort). São esses os efeitos de um bom conto, seguindo o raciocínio de Cortázar.

 

3.

Antes do sucesso mundial com o romance experimental O Jogo da Amarelinha (1963), o escritor argentino Julio Cortázar já se destacava por suas histórias curtas. Ele tinha 32 anos quando publicou pela primeira vez um dos seus contos mais famosos, “Casa Tomada”, em 1946, na revista Los Anales de Buenos Aires, editada por Jorge Luis Borges. E já nesse conto, Cortázar flerta com um dos elementos que seria a sua marca registrada: o fantástico. Um posicionamento contrário ao realismo, “que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e científico do século XVIII…”, como escreve no livro ensaístico Valise de Cronópio (Editora Perspectiva, 2006). Cortázar estava mais interessado na realidade oculta, a realidade não ordenada pelas leis naturais do mundo.

 

4.

Em “Casa tomada”, somos apresentados a um casal de irmãos — o que sugere uma relação incestuosa — que mora em uma casa “espaçosa e antiga” que guarda recordações de infância e memórias dos familiares. Em determinada noite, eles ouvem uma movimentação estranha vindo da sala de jantar — ou seria a biblioteca? —, “o som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre o tapete ou um abafado murmúrio de conversação”. O elemento fantástico acontece não por conta da presença misteriosa, mas pela atitude de aceitação do absurdo por parte dos irmãos: ao invés de irem investigar o barulho, eles se resignam e fecham permanentemente o cômodo da casa, cedendo o espaço para a presença misteriosa. Com o passar dos dias, o barulho se repete em outros locais da casa, e o casal repete o ato de ir trancando as portas, restando, ao final, apenas um cômodo. Ao leitor menos astuto, fica uma série de indagações: “O que aconteceu com o casal?”, “O que era aquela presença?”. O conto pode ser lido tanto como uma história de terror quanto uma crítica ao Regime Militar, que na década de 1940 começava a avançar por toda a América Latina. Em entrevista à revista Paris Review, em 1984, o escritor disse que a ideia do conto lhe veio por meio de um pesadelo. “Durante esse período de gestação [dos contos] meus sonhos ficam cheios de referências e alusões ao que está acontecendo na história”, disse.

Em outra entrevista para o jornalista uruguaio (e amigo pessoal de Cortázar) Omar Prego Gadea, o escritor argentino revelou que a diferença do sonho que teve e o conto escrito é que no pesadelo ele estava sozinho. “Estava numa casa que é exatamente a casa descrita no conto, que era vista com todos os detalhes, e em dado momento ouvi ruídos pelos lados da cozinha, fechei a porta e voltei. Quer dizer, assumi a mesma atitude dos irmãos”. Tomado pelo terror, Cortázar acordou encharcado de suor; era de manhã e ele escreveu o conto de uma vez só em sua máquina de escrever.

 

5.

Para Cortázar, o conto perfeito é aquele que deixa marcas no leitor, que o faz ficar pensando na história por horas e horas, e que mesmo passado tantos anos ele ainda se lembra da primeira vez que leu. E esse efeito só se atinge pela tensão entre “espaço” e “tempo”, ou melhor, pela abertura causada pela fricção desses dois elementos, ou melhor, é como se a condensação desses dois aspectos do conto causasse uma pequena fissura na camada da realidade, uma fissura do qual “irradia uma coisa para além dele mesmo” e “ilumina algo que vai além da história”. É como se o conto “saísse” das páginas e revelasse uma verdade, antes submersa no reino do fantástico.

 

6.

Podemos observar melhor essa tensão causada pelo “espaço” e “tempo” e esse movimento do conto se projetando para fora das páginas em “A continuidade dos parques”, presente no livro Final do Jogo. Em menos de duas páginas, Cortázar apresenta um homem de negócios sentado confortavelmente em uma poltrona de veludo verde em seu escritório, dentro de sua casa, totalmente imerso na leitura de um romance, de costas para a porta e defronte a uma janela cuja paisagem é um parque de carvalhos. Sua atenção está totalmente voltada para a trama do livro que, ao que tudo indica, conta uma história de amor proibido entre uma mulher e o seu amante, e o crime que eles estão planejando: matar o marido da moça para que o casal infiel possa viver juntos. Em seguida, acompanhamos o amante em direção à casa do marido traído, empunhando uma faca, prestes a cometer um assassinato. Mas então, o mundo da ficção e a realidade se entrelaçam; e aos poucos, percebemos que o local para onde criminoso se encaminha, passando por um parque de carvalhos, é justamente a casa do homem de negócios do início do conto, o homem que está sentado em sua poltrona de veludo verde, de costas para a porta — porta essa por onde o amante/assassino entrará — lendo um romance. Ele é o marido traído, o marido cuja morte se aproxima. Nesse conto, Cortázar coloca o leitor dentro da trama, provocando a passividade de quem lê e convidando-o a participar de seu jogo literário.

No ano passado, tive a oportunidade de ver esse conto sendo lido para uma plateia de umas 30 pessoas no Projeto Ler Junto, da Biblioteca Pública do Paraná, conduzido pelo professor de literatura Guilherme Shibata. Ao final da leitura, a maioria dos ouvintes, não resistindo à tentação, olhou para trás a fim de conferir se não havia um assassino sorrateiro.

 

7.

Já próximo da morte, Cortázar refletiu sobre o fantástico em seus escritos. A sua percepção era de que no início de sua carreira literária os contos eram realmente fantásticos, mais próximos do campo do onírico. Por outro lado, os últimos contos se aproximavam do realismo, “talvez porque a realidade esteja se aproximando do fantástico cada vez mais”, disse, na já citada entrevista para a Paris Review.

O que o preocupava naquele momento era a situação política na América Latina, sendo tomada aos poucos pelos militares; por outro lado, se encantava com a Revolução Popular Sandinista, na Nicarágua, e a Revolução Cubana liderada por Fidel Castro. Com essas questões ocupando a sua cabeça, era certo que seus escritos se tornassem mais políticos, como pode ser observado no conto “Reunião”, publicado em 1966 no livro Todos os Fogos o Fogo, em que um narrador asmático, muito similar a Che Guevara, narra uma guerrilha, enquanto reflete sobre os propósitos da luta armada. Outro conto político é o “Apocalipse de Solentiname”, em que um homem viaja por diferentes países da América Central, fotografando pinturas dos lugares em que passa; ao retornar para sua casa em Paris, ele revela as fotos e se surpreende com as imagens que agora, de forma mágica, mostravam cenas de violência e repressão policial.

Embora seus contos tenham se tornado políticos, Cortázar tinha uma preocupação com a forma desses textos: era importante que, acima de tudo, fossem literatura e não um material panfletário. Para ele, o grande desafio do escritor engajado era como continuar sendo um escritor. Quando questionado sobre o seu crescente envolvimento político, Cortázar disse: “Os militares da América Latina — são eles que tornam meu trabalho mais difícil. Se eles fossem removidos, se houvesse uma mudança, então eu poderia descansar um pouco e trabalhar exclusivamente em poemas e contos exclusivamente literários. Mas são eles que me dão trabalho para fazer.”

 

 

Referências:

A Fascinação das Palavras / Omar Prego Gadea, Julio Cortázar; tradução de Ari Roitman, Paulina Wacht. - 1ª ed. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

As Entrevistas da Paris Review, vol 2; tradução de George Schlesinger. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Valise de Cronópio / Julio Cortázar; tradução de Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa; organização de Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr. - 2ª ed. — São Paulo: Perspectiva, 2006.