ESPECIAL | Tão longe tão perto de Buenos Aires 15/05/2024 - 12:28

Um passeio pela Buenos Aires de Cortázar e os lugares que inspiraram sua produção literária

 

Nelson André De Russi

 

Depois de mais de 40 anos vivendo em Paris, na França, quando se escutava o escritor Júlio Cortázar falar já não era possível reconhecer o sotaque de alguém que cresceu e viveu em Buenos Aires, onde o espanhol é tão diferente do que é falado na Europa e de boa parte da América Latina. Mas, ao mesmo tempo, o sotaque portenho, tão musical e coloquial, sempre esteve presente nos seus textos. As falas dos personagens eram marcadas pelo espanhol do rio da Prata.

O escritor nasceu na Bélgica, cresceu na Argentina, mas foi embora para a França em 1951. Voltou à Argentina algumas vezes, mas o fato é que Buenos Aires e seu imaginário sempre estiveram nos livros de Cortázar.

Diego Tomasi se debruçou sobre essa relação do escritor com a cidade no livro Cortázar Por Buenos Aires, Buenos Aires Por Cortázar (Seix Barral, 2013). Foram mais de três anos de pesquisas. De acordo com o autor, o mais complicado foi a comprovação de alguns fatos que os protagonistas tinham vivido tanto tempo atrás. Para isso fez uma pesquisa rigorosa, cruzando uma infinidade de fontes. Segundo Tomasi, pode-se dizer que Cortázar passou seis mil dias em Buenos Aires. Menos de um quarto da sua vida. Mas, segundo ele, esses números não dão conta da enorme influência que a cidade exerceu sobre a obra de Cortázar.

“No livro, eu queria mostrar que mesmo não tendo passado tanto tempo na cidade, Buenos Aires foi fundamental na formação intelectual, na sua maneira de ver o mundo e na construção da sua linguagem. Quando se mudou para Paris, esse vínculo não só não se perdeu como se reforçou”, diz o autor.

Tomasi relata em seu livro uma série de depoimentos sobre essa linguagem portenha utilizada por Cortázar. A escritora Liliana Heker explica que “Cortázar não escrevia nem em latino-americano, nem em espanhol. Era a linguagem da Argentina, e, particularmente, de Buenos Aires”. Tomasi completa: “Cortázar era uma pessoa muito atenta, muito curiosa, prestava muita atenção na fala dos portenhos. Essa fala se incorpora completamente na sua linguagem literária”.

O próprio Cortázar deixou claro em uma entrevista para a jornalista e escritora argentina Ana Basualdo, a importância da capital na sua formação. Em um perfil publicado no jornal La Vanguardia, da Espanha, em 1983, intitulado “As cidades de Julio Cortázar”, o escritor fala dessa relação com Buenos Aires.“Não preciso estar em Buenos Aires para sentir, com os sentidos interiores, o cheiro das ruas, o som, a maneira de falar da sua gente”.


 

Cidade Literária

Buenos Aires é uma cidade extremamente literária. São incontáveis os escritores que a retrataram: Jorge Luis Borges, Leopoldo Marechal, Oliverio Girondo, Roberto Arlt, Alfonsina Storni, entre outros, cada um à sua maneira e com olhares distintos.

Em Cortázar, estão as muitas maneiras de representar a realidade. Lugares, pessoas, passagem do tempo. Em Buenos Aires, não são poucas as inspirações colhidas na própria cidade que estão em contos e romances do autor. Em várias regiões buscamos as marcas dessa relação entre a escrita e a cidade. Em Bestiário, um dos livros de contos mais conhecidos do autor, encontramos histórias que marcaram uma época. Ali estão Casa Tomada, Carta a Uma Senhora de Paris e Ônibus.

Este último tem uma ligação direta com o jovem Cortázar, quando vivia com a mãe e a irmã num pequeno apartamento na rua Artigas, entre 1934 e 1951. A rua que guarda a calmaria de outras épocas está na vila do Parque Guillermo Rawson, a uma hora do centro portenho. O apartamento num edifício simples hoje tem outro morador. No bairro, é difícil encontrar alguma alusão ao escritor, a não ser um café, inaugurado há sete anos, com o sugestivo nome de Rayuela (O Jogo de Amarelinha, 1963), nome do emblemático livro de Cortázar. A única relação do bar com o escritor é o nome. “Às vezes passa alguém que estuda ou é fã do autor, mas o restaurante não é uma homenagem a Cortázar”, diz Gonzalo Salado, que trabalha no local. Ele mesmo nos lembra que o conto Ônibus é recordado por muitos moradores porque se passa em parte nesta região.

O conto narra a viagem de Clara até a região central da cidade, uma viagem muitas vezes feita por Cortázar. Nela, Clara cruza com uma série de personagens e uma viagem convencional vai ganhando tons temerosos e fantásticos. “Um ar verde e claro pairava no veículo, viram o velho rosa do museu, a nova faculdade de direito e o 168 acelerou ainda mais na avenida Leandro Alem, como raivoso por chegar, duas vezes algum policial de trânsito o parou e duas vezes o motorista quis ir contra eles” ...

Diego Tomasi diz que os lugares reais da cidade, como os cafés, as esquinas, as livrarias influenciaram muito sua obra. Mas a casa em que Cortázar viveu com a família deixou marcas decisivas. “Essa casa tinha um quarto muito pequeno, tenho certeza que essa questão de espaço teve uma influência direta em parte da sua obra”, diz.

Estamos de volta ao centro de Buenos Aires. A galeria Guemes é um edifício em estilo Art Noveau, que tem uma passagem de pedestres unindo as ruas San Martin e Florida. O local aparece num dos contos mais perfeitos do escritor: “O outro céu” do livro Todos os Fogos o Fogo. Neste conto extraordinário, um homem trabalha na bolsa de valores de Buenos Aires nos anos 1940, mas pela imaginação consegue viajar à Paris de 1870. Ao mesmo tempo que passeia na galeria Guemes vai parar na galeria Vivienne.

Não longe dali, perto da Plaza de Mayo está o Café London City, hoje um lugar cheio de turistas. Ao fundo, em uma mesa, há uma escultura do escritor sentado. Embora ele não tenha frequentado o local, é aqui que começa e termina o romance Os Prêmios. Ali, os ganhadores de um concurso esperam para tomar o barco Malcolm, mesmo sem saber o destino.

Embora para muitos críticos os contos sejam o mais significativo, não temos como falar do universo cortaziano sem falar de Rayuela. Um livro com uma leitura infinita que se renova. O romance está dividido em três partes. A primeira ocorre em Paris. Horacio Oliveira divide o protagonismo com a Maga. A segunda parte se passa em Buenos Aires. Horacio Oliveira voltou porque foi expulso de Paris. Na terceira parte, o grande personagem é Morelli, um escritor que propõe destruir a literatura.

 

Cortázar e Brasil

Cortázar escritor, Cortázar tradutor, Cortázar leitor. Um olhar aberto ao mundo que não ficou alheio à literatura brasileira. A biblioteca pessoal do escritor, com 4 mil títulos, hoje está na Fundação Juan March, na Espanha. Na coleção particular do autor, estão alguns livros de Clarice Lispector, entre eles a edição em português de A Paixão Segundo G.H. O livro tem uma dedicatória escrita na nossa língua, um presente que Cortázar ganhou em 1972, mas não é possível saber de quem é. “Cortázar, estive no Rio de Janeiro, onde vive Clarice, mas não a encontrei, está viajando, bem amigo, esse livro agora é seu, uma pena que esteja todo grifado e as anotações são de 1964, um ano terrível para nós brasileiros”.

Doze anos depois, em fevereiro de 1984, Cortázar morre em Paris. A última visita a Buenos Aires foi em novembro de 1983. Para marcar os 40 anos da morte, a cidade está tendo uma série de eventos durante 2024. Um deles denominado “Cortitos Cortázar”. Vários escritores importantes da atualidade participaram e falaram sobre seu Cortázar preferido. Durante o ano ainda vão ter outras homenagens.

Num ensaio publicado pouco depois da morte de Cortázar, o escritor Abelardo Castillo resume bem a literatura do autor argentino. Castillo, famoso por seus contos e as oficinas literárias em Buenos Aires, diz que tem a impressão que, para Cortázar, as palavras eram coisas, mas não no sentido inorgânico dos objetos. “Eram pequenas coisas vivas, animaizinhos ou pequenos monstros delicados que tinha que amestrá-los para cumprir a cerimônia da sintaxe e a forma pessoal.”

Cortázar parece infinito, são muitos. É o escritor que amou o boxe, o jazz, o escritor dos cronópios, o escritor que nos deixou uma maneira de ver a realidade.

O autor do livro Cortázar por Buenos Aires, Buenos Aires por Cortázar diz que ele continua sendo lido e influenciando novos e antigos leitores, todo tempo aparecem livrarias com nomes que fazem referência ao escritor. “Sua marca vai para além da literatura, alcança toda a cultura popular argentina, incluindo a cidade de Buenos Aires”, conclui Tomasi.

 

Nelson André De Russi nasceu em Sertãozinho (SP), em 1964. Formado em jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), tem especialização no curso História, Sociedade e Cultura (PUC-SP) com a dissertação “A crônica, o ensaio e o espaço da mulher: Alfonsina Storni e Victoria Ocampo, Buenos Aires 1920-1930”.Trabalhou mais de 20 anos nos principais canais de televisão do Brasil, como editor e produtor. Atualmente é jornalista free lancer em Buenos Aires. Autor do blog Buenos Aires Affaire: vida cultural na capital argentina.