ENTREVISTA | José Castello 15/05/2024 - 12:11

"Na literatura eu sou mais corajoso do que na vida real"

Residente de Curitiba há 30 anos, o carioca José Castello reflete sobre o vínculo entre sua produção literária e a cidade, além de outros assuntos relacionados à sua vida, trajetória e experiências

 

jose castello
Foto: Cristovão Tezza

 

Jonatan Silva

 

O jornalista, escritor e crítico literário carioca José Castello está há 30 anos em Curitiba. Conhecedor enciclopédico da literatura brasileira e universal, Castello construiu uma obra vasta, que vai da biografia de Vinícius de Moraes aos ensaios de "Literatura na Poltrona" e desemboca no romance Ribamar, além de tantos outros livros — muitos deles criados já em solo curitibano.

Para celebrar as suas três décadas em Curitiba, o Cândido entrevistou com exclusividade José Castello, que repassa sua obra e sua vida em uma conversa franca com o jornalista Jonatan Silva.

 

Então, Castello, a nossa base é os seus 30 anos em Curitiba. A primeira coisa é saber que cidade foi essa que você encontrou em 1994 e o que te trouxe para essa Curitiba?

Bom, eu vim por causa do Joaquim. Eu conheci o Joaquim no Rio no final de 1993. E ele tinha ido ao Rio para um show da Madonna.

Eu tinha terminado de escrever a biografia do Vinícius [Vinícius de Moraes, o Poeta da Paixão], levei quase quatro anos trabalhando nela, isso sem contar o tempo que eu passei trabalhando na organização do livro de letras e do roteiro lírico e sentimental do Rio de Janeiro. Eu acho que foram uns cinco, seis anos de Vinícius. E eu não aguentava mais o Vinícius. Lancei o livro em 1994. E aí, eu estava perdido. Depressão pós-parto, que diz?

Passei intensamente esses anos trabalhando nisso. Me deu aquele vazio e aquela sensação, o que eu vou fazer agora? Eu não conseguia pensar em nada. E um sentimento de que eu não ia conseguir fazer mais na‐ da. Porque eu tinha gasto todas as minhas energias naquele livro. Realmente foi duro fazer esse livro. Fui a São Paulo levar o disquete e uma cópia impressa para a Companhia das Letras. Entreguei e tal, fiz uma reunião. Quando saí, voltei para o aeroporto de Congonhas para voltar para o Rio. Pensei: “eu não quero voltar para o Rio, não aguento voltar para o Rio. Eu 19 quero me esconder”. Aí eu parei diante do painel de voos.

Fiquei ali, procurando uma cidade que eu não conhecia e não conhecia ninguém. Na época, não conhecia ninguém em Belo Horizonte. Falei: “é pra lá que eu vou”. Aí fui no balcão da companhia, comprei uma passagem, fui pra Belo Horizonte, pedi indicação de um hotel, ainda no aeroporto, me instalei lá e fiquei acho que 4 ou 5 dias sem sair do quarto, de cansaço. Só pedia comida e entregava o prato. Tomava banho e dizia para não trocar roupa de cama que estava boa, que estava limpa. Eu não conseguia fazer nada, não conseguia pensar, não conseguia... Nesse momento, eu vi o desgaste que foi fazer esse livro.

 

Eu lembro que você comentou certa vez…

Eu era editor do Ideias Livros e do Ideias Ensaios do Jornal do Brasil. Já era há uns 3 anos eu acho, ou 4. E era um trabalho que eu gostava muito de fazer e que foi muito premiado. O caderno ganhava prêmio direto, era muito prestigiado. E eu ficava muito feliz. Mas aí, a Companhia das Letras um dia me sondou. Eles tinham comprado os direitos para relançar a obra completa do Vinícius, inclusive com inéditos, e no contrato constava que a Companhia tinha que lançar também a primeira biografia do Vinícius, que não havia nenhuma.

E aí, me convidaram para ser o biógrafo. Eu não leio muita biografia, gosto de ler de memórias. Biografia, essa biografia, esse esquema clássico, eu li pouco, não tenho muita paciência. Não lia o Vinícius há muitos anos, embora tenha sido o poeta que eu mais li na virada da infância para a adolescência. Foi por meio do Vinícius e do [Manuel] Bandeira, que eu descobri o que era a poesia. Também o Castro Alves, que eu li muito nessa época, e o João Cabral [de Melo Neto], que eu tinha dificuldade de entender, mas que me fascinava. Eram esses quatro.

Eu estava há 20 anos dentro da redação de jornal e de revista, com certo prestígio, ganhando um salário razoável, nada muito grandioso, mas com uma vida direita. E eu pensei: “se eu continuar, eu nunca vou realizar o meu sonho de ser escritor”, que era um sonho que eu tinha desde de menino, muito pequeno, aos 7, 8 anos de idade. E formulei esse sonho, quando eu comecei a ler, entendeu?

Foi outra ruptura louca. Eu pensei: “eu tenho que abandonar o jornalismo e me dedicar para a literatura”. A editora me conseguiu uma bolsa de artista visitante da Unicamp. Mas essa bolsa era só de um ano e meio, e era um décimo do meu salário no Jornal do Brasil. E era tudo. Aí eu pensei: “bom, é pegar ou largar. Se eu largar, vou ser jornalista o resto dos meus dias”. E umas semanas antes, eu tinha tido um desmaio na redação, que foi um sinal, aliás. E na hora acharam que eu estava infartando, me carregaram para o posto médico. Não estava infartando, mas o médico teve uma conversa comigo, e falou: “olha, você está extremamente cansado. Eu sei que você adora o trabalho que você faz, mas não dá para ter esse ritmo e esse movimento. Você não infartou, mas em breve você vai infartar”. Ele foi muito claro. Fiquei com isso na cabeça, com medo inclusive, e achei que estava juntando tudo, a palavra do médico, esse desmaio e a possibilidade de dar essa guinada para literatura. Larguei o Jornal do Brasil também sob protestos de todos os editores, subeditores, que diziam que eu estava enlouquecendo, que eu estava jogando o meu futuro fora. Tive que ouvir um monte de sermão, mas resisti e fui fazer a biografia.

Trabalhei esses quatro anos, meio maluco. Aí deu esse vazio, e era um outro momento. Eu já tinha feito a ruptura, já tinha passado para a literatura, de certa forma, mas também estava esgotado, sem força. E a sensação que eu tinha que mudar tudo. Eu não sabia que era mudar tudo, mas eu tinha que mudar tudo. E aí eu juntei essas histórias e pensei: "talvez mudar tudo seja ir para Curitiba". Nunca tinha pensado em vir morar em Curitiba. Só tinha vindo para cá uma vez, nos anos 70, para um encontro de poetas marginais. Eu nem era poeta, nem sei como é que eu vim parar nisso. Alguém me trouxe, e eu fiquei duas ou três noites. Eu me lembro que era uma casa de madeira e que fazia muito frio. Era só o que eu consigo me lembrar, entendeu? E o encontro era um monte de rapazes cabeludos, moças cabeludas, era muito cabelo. Eu não consigo lembrar.

Mas foi a minha única experiência com Curitiba. Eu adoro o Rio até hoje. Não pensava em sair do Rio. Tinha tido uma chance uns anos antes de trabalhar como cor‐ respondente em Nova York, e eu não quis para não abandonar o Rio. Eu adoro o Rio. Adoro. E até hoje é a minha cidade. É o sentimento que eu tenho. Eu chego lá e cheguei em casa.

 

Você não se sente assim em Curitiba?

Não. Não tenho esse sentimento. Eu gosto muito de morar aqui. Eu me sinto muito em casa, nesse apartamento, porque eu já estou na ilha há quase 30 anos a maior parte do tempo. Mas eu tenho uma sensação, um sentimento de estranhamento com a cidade. Digamos, para exagerar, de amor e ódio. Têm muitas coisas que eu adoro e têm coisas que eu não consigo entender, que eu chego a odiar.

 

O que traz esse ódio para um carioca?

A primeira coisa é o seguinte, que está melhorando, o formalismo dos curitibanos. Aqui nesse prédio, durante anos, tinham vizinhos com quem eu passava todo dia no elevador. Eu dizia: “bom dia, como está o senhor?”, e não respondia nada. Isso é típico curitibano. Eu aprendi aos poucos, eu vi que não era só um, eram vários. Outra coisa que eu acho difícil é o conservadorismo, que também está diminuindo com a chegada de gente de fora. É uma cidade muito conservadora, sobretudo, não só no campo das ideias, mas também no campo do comportamento e outros, embora esteja melhorando muito, está se tornando uma cidade grande, já é.

 

Mas não é contraditório, Castello, que, por exemplo, uma cidade tão conservadora, que tem esse fechamento para o outro, ter uma literatura que tem uma certa pulsação?

Um dos meus maiores amigos é o Cristóvão Tezza, que mora há 20 minutos a pé daqui de casa. Nós, às vezes, ficamos um ano, um ano e meio sem nos vermos. Eu adoro o Cristóvão, ele me adora. Eu converso com ele sobre isso. Por que a gente não se vê? Ele falou que tem um negócio que prende a gente em casa. Eu digo: “o que é?” É Curitiba. Não, mas é o frio. Sim, mas não tem feito tanto frio, tem feito até calor. É isso, é aquilo. A gente não consegue chegar a uma conclusão. É um estilo, é um temperamento muito mais introvertido enquanto o carioca é muito extrovertido.

 

E você acha, Castello, que de repente esse temperamento tão diferente das cidades reflete na literatura que é produzida nela? Existe uma literatura que a gente pode dizer: essa literatura é local de Curitiba, essa literatura é local do Rio?

Isso eu acho que não. Por exemplo, eu acho absurdo chamar o Cristóvão de escritor paranaense. Primeiro porque ele é catarinense, embora more aqui há mais tempo do que eu. Depois, porque o Cristóvão escreve uma literatura que não tem marcas. Ela se passa aqui, como pode se passar em outros lugares. Ele é um escritor nacional ou internacional.

 

Mas o próprio Dalton também, não?

É, pois é. A literatura dele é naquele mundinho, digamos, que seria a Curitiba antiga, fechada e tal. Mas se você pensar, a literatura russa do século XIX também se passa muito num mundinho ali de São Petersburgo, de Moscou, e é uma literatura para o mundo.

 

Eu ia dizer que sempre penso a literatura do Dalton muito próximo da literatura do Kafka, nesse microcosmos que pode ser Praga, mas pode ser Curitiba, mas pode ser São Petersburgo.

Exatamente. E então, o que eu acho é, num outro departamento, que isso aconteceu comigo, não em relação à literatura produzida aqui. Não é literatura curitibana, não é literatura paranaense, não acredito nem nisso, como não acredito em literatura mineira, baiana, isso aí, para mim, é besteira. Agora, é que aqui, por causa dessa introversão, há um clima mais favorável à escrita, porque a escrita pede introspecção, silêncio, recolhimento, enfim, várias qualidades que fazem par‐ te do temperamento em Curitiba. Nesse período de Curitiba escrevi 18 livros. E o que eu fico perguntando é se eu estivesse no Rio, se eu teria conseguido escrever esses 18 livros. Até porque tem coisas no Rio que eu adoro. Não estou reclamando. Por exemplo, eu chego no Rio, tenho vários amigos de infância. Não são tantos, mas tenho amigos mais queridos e mais próximos que estão no Rio.

 

Dezoito.

Dezoito livros, é. Dezoito livros.

 

E uma coisa engraçada, em um dos teus textos, que está na Literatura na Poltrona, você fala justamente sobre isso, que não existe um ambiente favorável para escrever, e aí você vai citar o Kafka, o próprio Hemingway, a Clarice enquanto cuidava dos filhos. Mas a gente percebe que Curitiba tem isso que você falou, uma característica de uma introspecção quase russa.

Quase russa, agora cada vez menos. Eu cheguei aqui e a cidade tinha 700 mil habitantes. E para falar a verdade, eu preferia aquela Curitiba do que essa hoje. O escritor precisa lidar com o ambiente que ele tem. Então você vê o livro do Vinícius, eu escrevi no Rio. No meio de uma grande confusão. Minha vida, inclusive, pessoal, estava muito confusa naquela época. E eu escrevia aos trancos e barrancos, mas escrevia. E escrevia, consegui terminar em quatro anos. Você lembrou, por exemplo, a Clarice que escrevia com a máquina no colo, na cozinha, enquanto vigiava o feijão. Você tem que ser maleável, tem que se adaptar.

 

Você acredita nisso, que a literatura é uma pulsão dentro do sujeito, e ele precisa colocar isso pra fora de alguma maneira em vez de ser, de repente, um louco ou alguma coisa assim?

Eu acho que a literatura é um dos veículos muito propícios para você botar para fora e trabalhar, digamos assim, o seu inferno particular. Mas você pode fazer isso pela pintura, pela música, fazendo teatro. Enfim, têm vários caminhos.

Agora, o teatro está muito comercial, a música brasileira popular não passa por um bom momento, já foi fantástica no final do século passado. Enfim, a literatura - até porque dão menos importância a ela — é menos contaminada pelos apelos do mercado, pelas modas. Eu não sei avaliar o caso da pintura, das artes plásticas. É outra coisa, eu não sei avaliar. Mas é um mercado também que rola muito dinheiro, em que tem um monte de marchand, que está sempre querendo comprar tal coisa, vender tal coisa.

Eu não sei. A literatura é, de certa forma, barata. O escritor não vive de literatura. Ele tem que ter outro trabalho. Ele tem que pagar para escrever. Eu estou pagando o meu computador, estou pagando internet, estou pagando a conta de luz. E estou gastando um tempo que eu poderia usar para ganhar dinheiro, de outra forma, sei lá qual.

 

A literatura, praticamente, a gente paga para fazer. Tem um texto teu que também está na Literatura na Poltrona, em que você fala justamente sobre isso, sobre a relação do escritor que precisa atender ao mercado. E eu fiquei muito espantado porque este é um livro de 2007, então são textos que variam ali de várias épocas, mas você já apontava uma coisa que a gente vê agora, que é a literatura abraçando a sociologia e esquecendo de contar uma história.

Primeiro temos as exceções. Volta ao Cristóvão Tezza. É uma exceção. Ele está contando as histórias dele, no caminho dele. Claro, ele está no mundo, está sendo contaminado por essas discussões, por essas questões, mas ele não fica centrado nessas questões sociais, da comunidade, que estão no centro do debate contemporâneo, que são importantíssimas. Eu sou antirracista, enfim, eu me considero um cara de esquerda, eu acho que as causas identitárias são todas muito importantes, ao contrário de certas pessoas de esquerda que acham que não. Eu acho que são muito importantes, mas elas não podem dominar a cena. Não são as únicas causas.

O mercado, mesmo o literário, fica olhando, e essa é a impressão que me dá, quais são os temas que vão render likes no Instagram ou no Facebook. O Itamar [Vieira Júnior] teria escrito o Torto Arado para ganhar dinheiro? De jeito nenhum. Ele é um cara seríssimo, é um pesquisador. O livro tem grande parte das pesquisas dele, feitas no interior da Bahia. A obra é muito séria, não tem nenhum oportunismo, nenhuma picaretagem. Eu gosto, você pode até não gostar muito, mas não pode ser acusado de oportunista, de jeito nenhum.

A verdade é que ele entrou num filão, num momento em que essas questões estavam latejando, querendo sair à tona. O livro dele reflete um pouco, mesmo sendo anterior, um estado de coisas que já estava latente no governo Bolsonaro. Esses temas começaram a sair à tona e que realmente estão no centro do debate contemporâneo no Brasil. O que há, eu acho, é que muita gente se apropria desses temas sem ter muitas vezes uma afinidade verdadeira, às vezes, sem ter até muito a dizer de original, e com isso acabam esquecendo do resto do mundo, ficam concentrados na pauta dominante da discussão política e social. E isso, só uma coisa, não está acontecendo só na literatura. Mas você pega um conjunto médio de escritores médios. Eu julgo muito o prêmio literário, eu vejo isso, grandes partes dos livros — uma boa parte, não sei dizer porcentagem — ou está discutindo feminismo, ou está discutindo racismo, enfim, esses temas que são os temas da pauta política. Insisto que são temas importantíssimos, mas a literatura tem que se abrir para vários lados. Eu acho muito perigoso para a literatura você se deixar guiar só pelo exterior, porque a literatura é uma experiência pessoal, individual, uma viagem, como eu entendo, é uma viagem interior.

 

Quando você fala na viagem interna, eu acho que eu não consigo escapar de te perguntar sobre o Ribamar, que eu acho que ele está nessa seara da autoficção, embora seja um romance, mas está nesse paralelo em que ficção espelha o autor e o autor se dá liberdade de criar em cima da própria memória. Como foi esse mergulho que você fez na sua própria história, na tua própria memória, inventando, recontando a partir da experiência pessoal com seu pai?

Foi uma experiência muito difícil, mas foi muito bonita. Foi fantástico esse período em que eu estava escrevendo o Ribamar. Eu vivia meio em um transe, porque eu pensava no meu pai o tempo todo, eu lia o Kafka sem parar e outras coisas… porque o Ribamar eu escrevi caoticamente. Eu ia anotando coisas sem saber para onde ia.

 

Em que período foi?

O livro é de 2010. Foi entre 2006 e 2009, eu acho, 2005, 2009. Foi por aí. Eu tinha uma questão pessoal a enfrentar, que era a minha relação com meu pai. Não tinha nada a ver com política, com situação social, com nada. Era uma questão pessoal, íntima.

Eu já escrevia, já tinha muitos livros publicados, e eu pensei: “para enfrentar isso, eu tenho que escrever um livro sobre isso”. Meu pai tinha morrido em 82, então já fazia mais de 20 anos, tinha uma distância bastante grande que me permitia recuperar essa história, mas sem ser fiel a nada. Eu fui absolutamente infiel, entendeu? Porque o principal ali era a minha imaginação.

Eu fui a Parnaíba, a cidade onde meu pai passou a infância e a juventude. Fui recebido por um primo, Alcenor, que aparece no livro com o Antônio. E esse primo o tempo todo me acompanhou lá, dez dias que eu passei em Parnaíba, e dizia que estava curioso para ver essa biografia do meu pai. Tentava dizer que não era uma biografia, e ele não acreditava. Ele queria ler meus rascunhos e eu não mostrava, porque não era. Depois, quando o livro saiu me causou enormes problemas na família. Porque acham que eu expus muita coisa que não deveria expor, que eu tratei mal o meu pai.

O tema do livro era a imensa dificuldade que eu tinha de me aproximar do meu pai e dele se aproximar de mim. É uma história de amor este livro. De amor entre pai e filho. Mas não é uma história de amor romântico antigo. É uma história que inclui ódio, sobretudo muita incompreensão, muita distância, muitos silêncios. Por‐ tanto, muito íntimas. Ainda que não sejam literais. Ali‐ ás, tem muita história verdadeira, mas deformada, recontada, misturada com muita coisa que nunca aconteceu.

 

Até porque o compromisso não é com a realidade, não?

Não! O compromisso era com essa minha viagem. A literatura, para mim, é uma viagem. É uma viagem interior. Porque você faz por dentro, você tem que se revirar por dentro. Seja qual tema você estiver tratando. O que é o mais importante numa viagem? É a descoberta. É a surpresa. É o susto. É você se deparar com coisas em que você nunca tinha pensado. É o desconhecido. E nessa viagem, evidentemente, nela, você passa pelo mundo. Há muitas coisas do Brasil no Ribamar. Quando eu tenho Parnaíba como pano de fundo de uma série de capítulos, está ali o Brasil, o antigo Brasil que meu pai viveu.

 

Vi muitos ecos de Graciliano [Ramos] nele. Eu acho um livro muito brasileiro mesmo.

Mas é, eu também acho. Aliás, sou um leitor apaixonado do Graciliano. E eu quis lidar mesmo com essa coisa nordestina, sem fazer literatura regional. Aí está a história. Eu não sou, não poderia ser e jamais pretendi ser um autor regional nordestino, um novo regionalismo, qualquer loucura do tipo. De jeito nenhum, você sabe, eu estou totalmente distante disso. Mas têm essas questões, as questões regionais, esse Brasil que a gente ama, mas que assusta também.

E isso foi uma coisa que a partir do Ribamar se incorporou no que eu faço, no que eu escrevo. Isso está no Dentro de mim ninguém entra. Isso está ali, porque ali está uma parte importante da minha infância, filho de uma família em que ninguém lia. E eu pegava o meu dinheiro, a minha mesada, e ia na papelaria comprar livro. Ficava lendo Camus, Kafka. Meu pai, minha mãe, todo mundo achando aquilo estranhíssimo. O que é isso? Então, isso está dentro de mim. E isso está inclusive nos três livros que estão prontos agora. Um é a seleção de crônicas do Rascunho e do Pernambuco, Histórias Miseráveis, organizada e com prefácio de Rogério Pereira. Esse livro, especialmente as crônicas do Rascunho, o Rogério fez uma seleção mais na linha das crônicas sociais, digamos, entre aspas. Sim, são crônicas sociais, são crônicas sobre a miséria, sobre a miséria das ruas, sobre a pobreza. Eu não estou ali como sociólogo. Eu estou ali, eu sou um velho, que é o velho que eu sou, andando na rua, deparando com essas cenas, ficando totalmente perturbado e sem saber o que fazer. É a minha maneira ultrapessoal de me sentir invadido por isso, de achar que eu devo fazer alguma coisa, mas de saber que eu não tenho condição de fazer nada, a não se escrever sobre isso.

 

Uma dessas crônicas é aquela do rapaz que ia assaltar e você dava o leite, o pão, não?

Exatamente. São todas nesse tom. Uma das crônicas, por exemplo, é a história de um menino. Isso aconteceu. Depois eu colori, mas enfim. Eu fui à farmácia comprar, sei lá, um remédio, saí e fui para o caixa pagar. Aí, um menino vem falar comigo. Não, o menino estava discutindo com o segurança. Eu parei para ver o que era. Era o seguinte, era um menino maltrapilho, que estava com o dinheiro na mão, que gritava com segurança porque ele queria entrar para comprar um remédio, e o segurança não deixava. Eu fiquei olhando aquela cena, meio abobalhado.

Uma típica senhora de Copacabana da classe média, parou também, chocada, e falou: “mas vem cá, menino, quanto você tem…?” Aí, ele tinha lá, sei lá quanto, e ela falou: “eu vou te dar mais um pouco, que agora ele não pode reclamar que você não tem dinheiro. Olha aqui, moço, estou dando pra ele mais tanto, agora ele tem dinheiro pra comprar o remédio?” Sim, mesmo as‐ sim não pode entrar. E o cara não deixava o menino entrar, porque era um menino maltrapilho.

Na hora eu fiz uma fantasia. Eu peguei o menino pela mão, saí andando por Copacabana procurando uma loja de roupas usadas.

Achei um brechó, comprei umas roupas, vesti o menino, ajeitei o cabelo dele e voltei para a drogaria e falei: 31 “agora entra, agora você tem roupa para entrar”. Ele entrou, comprou o remédio, pagou o remédio no caixa. E na saída começou a tirar a roupa e sacanear o guarda: “olha aqui, seu bobalhão, eu entrei, eu entrei, foi ele quem me deu a roupa”. Ou seja, essa crônica descreve bem esse sentimento, que é um sentimento que eu tenho muito porque não é só Copacabana, Rio de Janeiro, o Brasil está cheio de miseráveis nas ruas, né? E a maioria das pessoas lida com os miseráveis como se eles fossem dejetos, como se eles fossem invisíveis. São pessoas que não são humanas, você não tem que olhar para elas. Para que dar dinheiro para elas? Para alimentar tóxico, para alimentar o roubo? O raciocínio é esse todo, absolutamente deformado. Sempre fico chocado com isso e quando eu posso, que tenho tempo, que estou com dinheiro na mão, compro comida para as pessoas.

Então, é o mundo social, mas é visto pela minha perspectiva de um velho de 73 anos, de classe média, que não tem muito o que fazer a não ser se chocar com isso e tentar ajudar do jeito que pode.

 

Essa não é uma vingança da literatura contra a truculência do real?

Claro que é. Na literatura eu sou mais corajoso do que na vida real. Eu faço várias coisas nas minhas crônicas que na realidade eu tenho vontade de fazer, mas não faço porque tenho medo de apanhar, porque acho que vai ser ridículo. Por quê? Porque eu sou um cara da classe média bobo, estúpido, medroso e preconceituoso, apesar de lutar contra o preconceito, e não conseguir fazer certas coisas que eu acho que eu deveria fazer, mas eu não faço. Entendeu? Então, é isso. Nas crônicas do Histórias Miseráveis, a realidade externa está presente, mas muito pelo meu olhar e das minhas fantasias a respeito disso.

Outros dois livros meus que estão prontos, que estão em avaliação com editores, é o Devastação, é um romance curto, uma história inspirada na velhice da minha mãe. O tema é a velhice e a morte. O outro é um livro que levei 25 anos escrevendo, o Jardim das Amoreiras, que tinha mais de 600 páginas, depois eu cortei para 350, e agora, na última releitura, cortei para 170. Está pronto e um editor está lendo.

 

Quem acompanha a tua literatura vê que você andou pelo mundo para construir esse repertório, para construir esses perfis e tal, ou mesmo viajou pelo Brasil. Como é que é hoje esse jornalismo que não sai da própria poltrona? Esse jorna‐ lismo que não caminha o mundo, que é mediado, que não é um jornalismo que tem aquilo que o Gay Talese fala do “sujar os sapatos”? Isso é também jornalismo cultural? Ele perde com isso?

Claro que perde. Ele morre com isso, eu acho. Ele morre. Não é ser contra a tecnologia, nada disso, que seria uma maluquice. Mas as pessoas, sobretudo as gerações mais novas, se acomodaram. Hoje, não é que elas te‐ nham, mas elas têm a sensação de que têm o mundo nas mãos. Porque basta pegar o celular, entrar numa rede social, entrar no Google, que elas estão em qual‐ quer coisa. Vê imagens do Laos, ouve uma palestra na África do Sul, faz qualquer coisa.

O que eu acho que acontece é uma grande acomodação, que se parece com uma desistência até. E por que se parece com desistência? Porque em muitos casos se 33 Foto: Cristóvão Tezza 34 transforma em depressão, em síndrome do pânico, ou seja, em doenças psíquicas, que são doenças de quem não vê mais sentido em viver, porque está tudo dado, está tudo resolvido, é tudo rápido, é tudo ágil, e agora já tem a inteligência artificial que faz pela gente, daqui a pouco nem precisaremos mais fazer a maior parte das coisas. Tudo isso leva, infelizmente, a uma pergunta: “para que viver? Se está tudo vivido, está tudo na mão, não tem aventura, não tem desgaste, não tem paixão”. Não tem arte.

 

Pensando nesse cenário, a gente pode ter autores, artistas, pensadores do calibre de um Vinícius de Moraes, de um João Cabral de Melo Neto, de uma Clarice Lispector, de um Cristóvão Tezza, de um José Castello, de pessoas que têm esse compromisso com a arte. Você consegue imaginar figuras desse calibre surgindo agora?

De fato está cada vez mais difícil. Mas ainda têm muita gente resistindo e tentando encontrar seu próprio caminho, sua própria voz, que é uma coisa fundamental para qualquer artista. Não é só para o cantor. Ainda têm muita gente. Só que isso hoje é muito menos valo‐ rizado. Há muito menos espaço para isso. Você vai ganhar muito mais espaço se você trabalhar sobre temas da moda, se você fizer uma linguagem mediana que todo mundo entenda.

Os editores, com todo o respeito – eu tenho até alguns que são meus amigos –, eles que me perdoem. Tudo bem, é um trabalho importante, eu os respeito e existem pessoas brilhantes fazendo isso, mas tem um lado que é altamente perverso. Porque fico pensando, se o Guimarães Rosa fosse entregar o Grande Sertão hoje numa editora. Grande chance do editor entregar aquilo tudo reescrito, dizer que "isso aqui você tem que cortar, essa palavra não existe, isso aqui está incompreensível, você tem que reescrever esse capítulo". Grande chance.

 

Como é que foi esse processo de sentar com o João Cabral [de Melo Neto], de conversar com ele?

Eu sempre adorei o João Cabral, como já falei, desde menino. Um dia eu fui ao apartamento dele no Flamengo, fazer uma entrevista encomendada pelo jornal Estado de São Paulo. Na época era cronista do Caderno Dois. No final ele não queria deixar eu ir embora.

E aí chegou a Marly de Oliveira, a mulher dele, poeta, e ficou me acompanhando. Uma hora ela interrompeu a gente e falou assim, “João, eu quero te fazer uma pro‐ posta. Por que você não combina com o Castello dele ficar vindo aqui te visitar de tempos em tempos para vocês conversarem?” Aí ela virou para mim e falou: “o João está muito sozinho”. Ele estava quase cego já. A maior parte dos amigos da geração dele já tinha mor‐ rido, estavam doentes, acamados. Ele estava sozinho. E ela falou que ele precisava de pessoas ao lado dele.

Falei: “olha, é espetacular eu poder vir conversar com o João Cabral de 15 em 15 dias. Agora eu só quero uma condição, eu quero tirar um livro disso”. Comecei a gravar nossas conversas, foram mais de 20 gravadas ao longo de um ano. Inicialmente achava que eu ia fazer um livro clássico de entrevista, pergunta e resposta. Mas depois comecei a perceber que não dava porque o João estava muito perdido, a verdade é essa, na época. Então, a conversa ia e voltava muito. Ele mudava de assunto, esquecia da coisa, aí voltava para o tema. Pensei, "não, eu tenho que tirar esse livro de uma forma indireta". Cheguei a pensar se podia valer a pena tomar como base para uma biografia grande no estilo do João Cabral.

Mas primeiro, ele tinha dito que a gente só podia conversar sobre literatura e sobre a vida diplomática dele, viagens. Eram os únicos temas permitidos. E eu cumpri isso. Então, com uma biografia grande já ficava difícil. Depois não tinha mais força de fazer outra aventura doida daquela do Vinícius. Quer dizer, eu faria sim se eu estivesse nos Estados Unidos, na Inglaterra, como equipe de pesquisadores. Sozinho como eu fiz, ou só com a ajuda do Silvio Barsetti, meu amigo jornalista que me ajudou muito no último ano do Vinícius, eu não faria de novo. Então, é uma coisa que não tenho força e não tinha sentido. Mas foi uma aventura linda, né? Porque eu consegui entrar na intimidade do João Cabral, entendeu?

Ele me abriu o mundo dele, me abriu as dúvidas dele. Foi uma experiência comovente. E eu não esperava conseguir isso de um homem que era tão sisudo, tão quieto, tão diplomático, considerado o "poeta de pedra", o "poeta das cabras". Aquele poeta duro, nordestino. E eu consegui. Porque, de fato, ele se entregou para mim, falou de tudo. Muita coisa nunca usei, algumas outras usei na edição nova para publicar, mas mesmo assim não publiquei, porque eram pessoais, ele não queria que fosse publicado, eu não publiquei. Foi uma experiência muito bonita.

 

Jonatan Silva é jornalista e mestre em Estudos de Linguagem pela UTFPR. É autor dos livros O Estado das Coisas (2015/2023) e Histórias Mínimas (2019), além de produtor de conteúdo no canal Curitibando, que reconta a história da capital paranaense a partir de passeios pela cidade.