Um escritor na Biblioteca: Rubens Figueiredo




Na quinto encontro de 2012 do projeto
Rubens
“Um Escritor na Biblioteca”, o autor do premiado romance  Passageiro do fim do dia conta de que maneira construiu a sua obra literária, que tem pontos de contato com os autores russos do século XIX que ele vem traduzindo diretamente para o idioma português


A vida, o acaso ou, como Rubens Figueiredo mesmo diz, fez com que o autor escolhesse — ou fosse escolhido — para cursar Letras na Universidade na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Optou por russo e essa escolha diz respeito à uma visão de mundo contestatória. Ainda nos anos 1970, recusou uma nomeação para ser professor universitário durante o período da ditadura militar. Acabou se tornando professor em um colégio estadual e, para chegar ao trabalho, viajou durante anos dentro de ônibus — o que serviria de substrato para o romance Passageiro do fim do dia (2010), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2011 na categoria Melhor Livro do Ano, e do Prêmio Portugal Telecom no mesmo ano. No bate-papo, mediado pelo escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda, Figueiredo conta de que maneira se inseriu no meio editorial, a partir da publicação dos primeiros romances, e também como se tornou tradutor, hoje um dos mais elogiados e respeitados do Brasil. Levam a assinatura de Rubens Figueiredo alguns clássicos da ficção russa, como o monumental Guerra e paz, de Tolstói. Também verteu para o português obras de outros idiomas como, por exemplo, Casei com um comunista, do norte-americano Philip Roth. Mas, para ele, a grande força está mesmo na produção literária da Rússia do século XIX. Mais que isso. Ele defende uma arte fundamentada. “Acredito que um romance, um conto ou um poema tem muito a ganhar se o autor partir do pressuposto de que a obra pode contribuir para o conhecimento do mundo, da vida. Isso significa que aquilo, romance, conto ou poema, não é uma coisa ornamental nem apenas uma manifestação hermética de uma subjetividade impenetrável”, afirma o autor, que também transitou pelo conto, com destaque para o livro Contos de Pedro.

A seguir, alguns dos melhores momentos do encontro.

Primeiras bibliotecas

Na minha casa havia alguns livros, mas não se pode chamar de biblioteca. Meu pai e minha mãe eram pessoas de formação muito simples, mas, acima de tudo, pessoas muito inteligentes, que tinham essa ideia de oferecer uma opção cultural aos filhos. Sempre morei em Copacabana, no Rio de Janeiro, e quando era adolescente frequentava duas bibliotecas. Uma era a biblioteca pública municipal de Copacabana e, no prédio ao lado, tinha a biblioteca particular do Instituto Brasil-Estados Unidos, patrocinada pelo departamento de governo norte-americano. Frequentei essas bibliotecas, dos 11 aos 30 anos, e era bom porque eu podia circular pelas estantes sem nenhum embaraço, sentava nos banquinhos, folheava os livros e ficava bastante tempo lá. Toda semana eu saía de casa para ir a essas bibliotecas, era um programa. O interessante é que havia livro de qualquer assunto, alguns até distantes daquilo que viria a ser minha área de atuação. Tenho uma lembrança muito clara de livros que eu pegava nessas bibliotecas: Os miseráveis, do Victor Hugo, que li no ônibus, foi um deles. Dizem que tudo deve ser orientado, ter uma direção, mas eu penso no meu caso: tudo foi tão acidentado, e até que me saí mais ou menos.

Outras leituras

Quando eu tinha 17 anos, passei a circular pelo centro do Rio e comecei a frequentar a Fundação Biblioteca Nacional. Ali, não é possível circular entre as estantes. Você entra, solicita um livro e tem de esperar, às vezes, muito tempo. Era decepcionante esperar por uma obra que não empolgava. No centro tem outro espaço, o Gabinete Real Português de Leitura, uma beleza, é inclusive uma visita que recomendo, mesmo que não seja para emprestar livro.

Ao acaso

Em minha vida tudo sempre foi tão acidentado, saltado, incoerente, que seria até falso de minha parte dizer que tive algum autor favorito. Eu chutava para todos os lados. O fato é que eu tinha uma curiosidade imensa. Lia de tudo, mas nunca tive a obrigação de ler um livro inteiro. Se não gosto, não vou até o fim. Tenho amigos escritores que têm essa obrigação, de ir até o fim. Eu não.

Letras, aleatoriamente

Quando fui fazer a inscrição no vestibular, me dei conta de que não sabia o que queria estudar. Tinha 17, 18 anos e, nessa idade, a gente tem muita dúvida. Comecei a olhar aquelas listas, e vi o curso de Letras. Eu lia literatura e, quando me deparava com algumas obras, pensava: “Eu também poderia escrever”. Mas também achava que podia ser músico, sociólogo, economista, matemático. Na última hora, decidi fazer Letras. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro tem uma variedade de opção de idiomas. Pensei em escolher francês, tinha uns livros lá em casa, mas aí pensei que eu não iria passar na prova. Logo em seguida, me dei conta de que havia opções como hebraico, árabe e russo.

Viés contestador

Eu conhecia autores russos, gostava bastante, mas havia o seguinte: era 1973, o auge da ditadura civil-militar. A Rússia representava a contestação, na época ainda existia a União Soviética. Não que eu fosse bem informado sobre o assunto, mas tinha alguma noção das coisas. Evidentemente que o idioma russo me atraiu pelo viés da contestação, mas a minha escolha foi totalmente incoerente. As coisas são assim, não são? Fiz a faculdade de russo e fui muito feliz.

Nomeação, não!

Terminei a faculdade em uma época na qual era difícil arranjar emprego. Se você analisar a taxa de desemprego do início da década de 1980, vai perceber que, naquele contexto, o jovem estava praticamente fadado ao desemprego. Mas, enfim,
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quando terminei a faculdade, um professor me convidou para dar aula de russo. Não havia concursos, era o período da ditadura, e os professores eram nomeados por indicação. Eu odiava o sujeito que me convidou para lecionar e, então, recusei a proposta. Minha vida poderia ter sido totalmente outra se eu dissesse apenas sim. Mas não quis, não sei se por orgulho juvenil ou uma eventual sensatez. Então, comecei a procurar uma oportunidade para dar aula em colégio, o que iria acontecer somente uns cinco anos depois.

Ser professor

Eu precisava trabalhar, mas não sabia que iria me tornar professor. Foi um acidente, fui estudando, vendo os colegas darem aulas. Na década de 1980, abriu um concurso público, fiz as provas, fui aprovado e comecei a dar aula. Em seguida, fiz outro concurso, para o Colégio Militar do Rio de Janeiro, que é uma instituição federal. Tive a sorte de ser aprovado porque lá encontrei os melhores professores de português que já vi.

Um mestre chamado Jesus

Eu chegava no Colégio Militar do Rio de Janeiro por volta das seis horas, porque tinha um rancho onde serviam café da manhã. Tinha um professor chamado Jesus. Ele era totalmente desleixado, vestia um jaleco sempre sujo de cigarro, dentes estragados, mas era um sujeito brilhante. O professor Jesus tinha uma capacidade incrível na área de português, incluindo conhecimentos medievais, da Idade Média e Renascimento. Lembro dele, que morreu precocemente, e de outros professores brilhantes. Fiquei durante sete anos nesse colégio, mas chegou um momento em que tive de sair, devido a uma série de problemas, inclusive por causa da voz. Saí do Colégio Militar, mas segui no colégio do Estado, que não exigia muito da minha voz, inclusive pelo fato de ter menos alunos. E, durante o dia, planejei completar a minha renda com traduções.

Do dia para noite, tradutor

Em 1990, eu já havia publicado três livros por duas editoras, conhecia algumas pessoas no meio editorial e percebi que, naquele contexto, as editoras estavam precisando de tradutores, porque as editoras estavam começando a publicar uma quantidade maior de obras estrangeiras. Então, pensei: “Eles sabem que eu escrevo mais ou menos, confiam em mim, não estão encontrando gente, bom, vou ver se pego esse trabalho.” Dei esse chute, e deu certo. Daquele dia, até hoje, não fiquei um dia sem trabalho de tradução.

Estreia literária

Escrevi o meu primeiro livro, O mistério da samambaia bailarina (1986), mas gostaria que ele se chamasse O espírito de porco. Ainda penso em reescrever esse livro e, então, publicá-lo com o título que eu gosto. Escrevi esse romance quando tinha uns 23, 24 anos, em 1979, mas ele só foi publicado em 1986. Eu sentia um impulso para escrever algo, e quem é escritor sente isso. É uma pressão interna. Mas eu tinha noção de que era imaturo e despreparado. Me dei conta de que não poderia escrever algo ambicioso, profundo, de grande alcance. Raciocinei: o que eu poderia escrever partindo de minha escassa experiência de vida, pouca cultura e maturidade? Talvez, um livro de humor, divertido, um pastiche policial, que tratasse do Brasil contemporâneo daquele tempo. Acontece que, desde sempre, sou leitor de poesia. Então, acabei misturando um pouco de tudo e o livro ficou meio esquisito, mas original. Trabalhei durante dois anos nesse livro. Eu chegava do trabalho, à noite, e escrevia. Assim surgiu O mistério da samambaia bailarina.

Cada vez menos cômico

Em nove anos escrevi três romances, O mistério da samambaia bailarina (1986), Essa maldita farinha (1987) e A festa do milênio (1990), todos com uma matriz comum. Analisando retrospectivamente, me parece que cada um desses livros é, cronologicamente, menos cômico que o anterior. Depois desses nove anos, fiquei procurando outra forma de escrever. Então, me dei conta de que nunca tinha escrito conto. Estava com dificuldade para pensar em um novo romance, mas um dia tentei fazer um conto, e senti que estava me saindo bem nesse gênero.

Contista, reescritor

Comecei, então, a escrever contos e, durante um ano, fiz um livro, que se chama O livro dos lobos (1994). Quatorze anos depois, resolvi reescrever o livro, e todas as linhas foram refeitas. Todo o livro foi modificado, mas valeu a pena. Faria isso com todos os meus livros, se tivesse tempo. A gente escreve para tratar do mundo em que vive, para dizer algo a respeito desse mundo. Pelo menos é dessa maneira que eu concebo a literatura. Ocorre que o mundo é dinâmico, ele se transforma a toda hora. Logo, a maneira que formulamos os problemas e as possíveis respostas é questionada continuamente pelas mudanças. Sinto um impulso de reformular tudo.

Aprendizado com a tradução

Comecei a traduzir literatura russa por acidente, não foi nada premeditado. O primeiro autor que traduzi foi Tchekhov. Comecei esse trabalho sem ter uma visão crítica ou histórica consolidada do que eram esses autores e esses livros. Na medida que ia traduzindo, tinha que pesquisar, e o assunto é fascinante. Aí me dei conta, a certa altura, que eu estava desenvolvendo uma visão muito pessoal daquilo que era o oposto da visão que predomina em nossa tradição crítica. Comecei a formar uma convicção fundamentada em dados de que aquilo estava sendo mal entendido. Parece pretensioso, ainda mais sendo o ponto de vista de um sujeito que não é pesquisador, mas tive contato com algumas informações. Tenho 56 anos, de modo que já tinha uma certa insegurança a respeito de como tudo é falível. Comecei, enfim, a formar uma convicção muito pessoal a respeito dessas obras, que é o seguinte: a literatura russa tem esse alcance, essa força, causa toda essa impressão, não porque os escritores fossem gênios ou tivessem um talento espetacular. Nem porque caiu um disco voador lá, nada disso. Acontece que a relação entre literatura e sociedade lá, na Rússia, era completamente diferente do que se passava no resto da Europa, nos Estados Unidos ou até mesmo no Brasil no final do século XIX.

Um outro mundo

A Rússia era um país com um território muito vasto, uma população imensa. Por isso sempre fizeram pressão no século XIX para que a Rússia, como potência média, não viesse a crescer. Tinha um território imenso, mas era um país oriental, tinha tradições culturais próprias. Uma religião própria, um alfabeto próprio. Se a gente for desenvolver isso, vamos ver uma enorme distância entre a Rússia e o resto da Europa. Por outro lado, a tradição intelectual russa sempre se empenhou desde o século XVIII em aproximar a Rússia da Europa, sobretudo, em transformar o país em algo equiparável aos países desenvolvidos na época: Inglaterra, Alemanha e França. Mas isso não era possível, por razões internas e externas também. Agora, o que tem a literatura a ver com isso? Tem a ver porque o debate que aconteceu na Rússia sobre o futuro do país foi algo muito forte, muito rico, foi contínuo. E tomou vários aspectos: desde movimentos revolucionários, movimentos místicos até pesquisas científicas. E a literatura fez parte desse debate. Não se separava, tudo estava misturado. Um livro de um padre, um artigo de um agrônomo ou um livro do Tolstói, todos eram recebidos com o mesmo estatuto: o destino do país, do povo.

A sociedade nas obras russas

A força da literatura russa não vem de recursos técnicos, debates estéticos, de nada disso. Vem da presença
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da dinâmica da sociedade nas obras. Um simples conto do Ivan Turguêniev, com um triângulo amoroso, tinha um simbolismo político, histórico, que estava sendo representado naquelas três figuras, com uma série de dimensões. Então, isso é que dá essa força à literatura russa. Quando fui chegando a essa convicção, a minha maneira de ver a literatura mudou. Porque percebi que a relação entre literatura e sociedade não precisa ser essa que conhecemos, pode ser totalmente diferente. O Tolstói uma vez observou o seguinte: nenhum livro russo importante se adaptava aos padrões da literatura europeia. E por que que ele disse isso? Porque o que havia de importante ali, era o que se desviava dos padrões. E essa noção é muito relevante. O modelo é desmontado, destruído, desmoralizado. E é isso que permite que essas obras alcancem outra dimensão: têm uma capacidade de absorver uma força da vida social.

Bem mais que ornamento

Acredito que um romance, um conto ou um poema tem muito a ganhar se o autor partir do pressuposto de que a obra pode contribuir para o conhecimento do mundo, da vida. Isso significa que aquilo, romance, conto ou poema, não é uma coisa ornamental nem apenas uma manifestação hermética de uma subjetividade impenetrável. Também não se pode pensar que a literatura é autossustentável e não precisa de mais nada, e que basta a si mesma. Essas noções pesaram e pesam muito desde a década de 1950 na nossa visão crítica, e acho que essa estratégia está fracassada. Porque dizer que a literatura é autossustentável só serve para tornar nosso trabalho dispensável.

EUA

O Paul Auster e a Susan Sontag, que eu já traduzi, são tratados nos Estados Unidos como o que poderíamos chamar de opinião de esquerda. Mas, ao ler com atenção os livros deles, você não encontra críticas a respeito da distribuição desigual de poder no mundo. O postulado desses autores pode ser entendido como “os Estados Unidos dominam e é bom que seja assim”. Traduzi um livro da Susan Sontag chamado América. Detestei traduzir a obra, a começar pelo título. Sempre que encontro a palavra América, traduzo para Estados Unidos. Mas neste caso, eu não podia fazer isso, porque era o título do livro.

Detalhes tão pequenos


Se você pegar um livro argentino, italiano, espanhol ou brasileiro, terá que ler mais de dez livros até que apareça uma vez a palavra Argentina, Itália, Espanha ou Brasil. É raro eu traduzir um livro americano que não tenha a palavra América ou americano. Estou traduzindo um livro que, a cada dez páginas, o autor fala em povo americano, democracia americana, sociedade americana, os Estados Unidos. É impressionante. E nós lemos e não percebemos isso. Não percebemos porque o nosso pressuposto é que isso é normal. Mas isso não é normal. Essa é uma questão que eu apresento com a perfeita consciência de que não sou simpático. Estou apresentando uma formulação antipática. Vão até dizer: “pô, o cara é fanático”. Mas estou tranquilo e digo que isso existe.

Sontag e Auster

Pegue um livro da Susan Sontag, do Paul Auster: onde está a história? Esses autores não são desinformados, não é uma questão de incapacidade, muito menos uma questão de caráter. São fatores objetivos que atuam sobre eles. Veja só, hoje em dia, um escritor inglês ou norte-americano começa a escrever um livro. Ele inicia um, dois parágrafos e avisa o agente literário. Logo, esse livro é vendido para vários países por dezenas de milhares de dólares. Os editores desse futuro livro não leram nada, e esse suposto livro ainda não existe. Mas o livro já está vendido. E, quando esse livro ficar pronto, haverá elogios em revistas norte-americanas e inglesas, cujo dono também é proprietário da empresa de comunicação que é responsável pela editora, pela livraria, pelo site. Tudo é uma empresa só. Aí, o escritor é beneficiário, como nunca se viu, de uma relação muito desigual de poder. Obviamente que esse jogo de forças afeta as obras na sua forma, no conteúdo. Sei que estou falando coisas pouco digeríveis, mas estou tranquilo.

Engajamento literário


A gente escreve para contribuir para o conhecimento. É isso que eu quero dizer. Mas conhecer o quê? Qualquer coisa. As coisas não existem isoladas. Você pode dizer: ah, eu quero contribuir para o conhecimento da subjetividade. Mas subjetividade não existe fechada em si mesmo, ela está submetida a fatores comuns. Aí, então, tem a discussão: mas se você parte dessa ideia que é uma questão de conhecimento, muda muito. Não estou falando que a literatura não é política. A literatura é política. O conteúdo da uma obra vai ser formado por fatores do seu tempo, fatores objetivos, concretos. Claro que se você tiver a consciência disso, alcança outros resultados: consegue conduzir aquilo de uma maneira mais consciente. Mas se você não tiver, vai falar com uma voz que não é a sua.

Falta de tempo

Tenho tarefas a cumprir para ganhar a vida. Então, se eu não traduzir 120 laudas no mês, vou ter problemas de orçamento. Tenho que dar aulas no colégio à noite, tenho minha casa, minha família. Não consigo acompanhar a produção literária brasileira contemporânea. Meu problema é falta de tempo. E esse problema não é só meu, é de todo mundo que trabalha e tem família. Mas as pessoas, por incrível que pareça, conseguem resistir à falta de tempo. Aliás, o meu romance mais recente, O passageiro do fim do dia, é ambientado dentro de um ônibus e faz uma menção a essa apropriação do tempo das pessoas. O tempo da vida, que é a própria vida, é tomado das pessoas diariamente no transporte. Durante 25 anos, peguei dois ônibus por dia para ir e voltar do colégio. O que mais me impressionou foi a dificuldade que tive para perceber o que se passava na minha frente. O assunto do romance é o seguinte: que mecanismos são esses que me impediam de ver o que estava acontecendo dentro do ônibus?

Ponto de virada

Na verdade, não percebi que havia percebido o que estava acontecendo dentro do ônibus. É uma questão tão verdadeira que não pode ser enunciada. Há coisas que a gente não enuncia. Elas existem sem que sejam formuladas em palavras. Aliás, muitas vezes nós dizemos o seguinte: um autor é contido, tem uma linguagem contida. Encara-se a afirmação como um elogio. Mas pense bem: o que há de bom nisso? O fato do sujeito medir as palavras que é bom? É uma técnica de linguagem? É uma escolha de palavras que torna aquilo bom? Não. Minha convicção, hoje, é a seguinte: o contido será bom dependendo do teor daquilo que é contido, daquilo que está contido, daquilo que não aparece. Alguém comentou comigo sobre Ressurreição, do Tolstói, que traduzi e fiz a apresentação comentando algo que não aparece em nenhuma edição estrangeira: a origem do livro. Ninguém conta. E por que esse silêncio? É uma história fantástica que recomendo vocês lerem. O motivo de o Tolstói escrever o romance diz respeito a uma história real, que envolveu milhares de pessoas, não só no sentido de conteúdo, mas também porque ele conteve aquilo. É um material subjacente que não aparece no enunciado do livro, mas está presente como pressão. Bom, não sei quando percebi o que acontecia dentro dos ônibus, nas viagens que eu fazia, na ida e na volta do trabalho, mas esse sentido, essa experiência, está presente no meu romance O passageiro do fim do dia. Essa atmosfera está presente de forma subjacente. Eu queria que a tensão da narração do meu livro tivesse como conteúdo essa experiência e pressão subjacentes. É tudo um rolo, não é?