Um escritor na Biblioteca: Joca Terron

Joca Terron
Um dos mais festejados autores da literatura brasileira contemporânea, o autor de Não há nada lá fala de sua literatura, que aproxima a ficção de outras linguagens, como os quadrinhos e o cinema


Em 2007, Joca Reiners Terron passou um mês no Cairo, Egito, com a finalidade de escrever um romance — viagem patrocinada pelo projeto Amores Expressos. O resultado foi a longa narrativa Do fundo do poço se vê a lua (2010), que conquistou o Prêmio Machado de Assis de Romance da Fundação Biblioteca Nacional.

Desde que apareceu no mercado editorial, na década de 1990, Terron não passa despercebido. Sua primeira obra, Eletroencefalodrama (1998), foi bem recebida pela crítica e por leitores atentos a uma literatura ousada. Terron também foi um dos autores incluídos por Nelson de Oliveira na antologia Geração 90: Os transgressores (2001), publicação que apresentou alguns dos nomes que se tornaram as novas vozes da ficção nacional, como Altair Martins, Daniel Pellizzari, Ivana Arruda Leite, Marcelino Freire e Ronaldo Bressane.

Durante o bate-papo, mediado pelo jornalista Irinêo Baptista Netto, Terron falou sobre o seu percurso, desde as primeiras leituras, incluindo o hábito de frequentar bibliotecas, até o seu livro mais recente, Guia de ruas sem saída (2012), que conta com ilustrações do curitibano André Ducci. “Sou inconstante. Já quis ser quadrinista, poeta, cantor de rock, arquiteto, designer gráfico e escritor. Nada garante que eu continue a publicar livros. No entanto, acho difícil parar de escrever porque a escrita é um hábito adquirido e fundamental na minha vida. Se deixar de escrever, vou perder a minha principal ferramenta de expressão, vou me sentir sem voz”, confessa o autor de, entre outros livros, Não há nada lá (2001/2011), Animal anônimo (2002), Hotel Hell (2003), Curva de rio sujo (2004) e Sonho interrompido por guilhotina (2006). Leitor atento da literatura feita em Curitiba, Terron falou de sua admiração por Valêncio Xavier e Manoel Carlos Karam, escritores que editou entre os anos 1990 e 2000.

Confira os melhores momentos do papo.

Primeira biblioteca

A primeira imagem de uma biblioteca que tive foi a da minha própria casa, uma biblioteca encaixotada, porque meu pai trabalhava no banco e a gente viajava muito. Ele era obrigado a
mudar de cidade de dois em dois anos — às vezes até no mesmo ano —, e isso na época em que eu tinha 16 anos. Lembro que os livros eram os primeiros objetos a serem encaixotados, e os últimos a serem desencaixotados. Não era uma biblioteca muito grande, mas a minha casa sempre teve livros. Agora, uma biblioteca organizada, e tal, foi sem dúvida a de um colégio de padres muito bom que eu estudei no Mato Grosso, na divisa com Goiás, numa cidade chamada Alto Araguaia. Era um colégio interno onde só eu não era interno. No fim do dia, quando me despedia dos amigos, parecia que eu tinha visitado uma prisão.

Primeiro livro

Naquele contexto, li O Ateneu (1888), do Raul Pompeia, e me identifiquei bastante. Em geral, a garotada que lê esse livro não consegue se identificar, mas me identifiquei porque estava vivendo uma experiência similar a que é apresentada no livro. Aquela escola foi criada no meio do nada para atender a filhos de fazendeiros da região. Aquela biblioteca foi a primeira que frequentei de verdade, a ponto de eu ter de descobrir o horário em que o padre bibliotecário não estava porque, se estivesse, ele me parava, me segurava pelo colarinho e dizia para quem estivesse por perto: “Vocês têm de seguir o exemplo desse menino aqui. Ele já leu a biblioteca inteira”. Eu morria de vergonha.

Fotonovelas e Francisco Marins

Um professor dizia que eu não podia ver linha embaixo de linha que já saía lendo. Acho que eu era assim. Lia de tudo, sem restrições, inclusive fotonovelas. Era a década de 1970, período no qual houve predomínio e popularidade das fotonovelas, vendidas em bancas de jornais. Minha mãe comprava e eu lia as publicações. Também me tornei leitor de quadrinhos. Li a obra de Monteiro Lobato e, principalmente, a de um escritor paulista chamado Francisco Marins. Ele criou uma série de literatura infantil chamada Taquara-Póca, que lembra o Sítio do Picapau Amarelo. Os personagens criados pelo Marins viajam no tempo, e há a presença do fantástico na literatura dele. É um escritor maravilhoso, que teve o seu auge na década de 1970 e hoje está esquecido. Bem, li muito naquele tempo e acho que foi o meu período de leitura mais prolífico, justamente porque eu tinha tempo livre.

Clássicos a la Cony

Quando estava mais maduro, achei que já tinha lido todos os clássicos da literatura universal. Numa visita à casa de minha mãe, ao olhar a coleção dela, me dei conta de que eu não havia lido todos os clássicos. Os grandes livros da literatura universal que eu tinha lido haviam sido ‘escritos’ pelo Carlos Heitor Cony. Após o golpe militar, o Cony sobreviveu durante anos fazendo adaptações, e foram essas adaptações que eu li. São os livros lidos nesse período que estão impregnados em minha imaginação até hoje, entre os quais As aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, de Mark Twain. E também os livros do Robert Louis Stevenson, originalmente escritos como folhetins e publicados em jornais, hoje em dia chamados de literatura de aventura, o que verdadeiramente são, mas é uma ficção de aventuras com uma qualidade indescritível.

Memória televisiva

Pelo fato de sempre morar nos lugares onde Judas perdeu as meias, os livros se tornaram uma companhia para mim. Em muitas das cidades onde minha família morou, como Poconé (MT), Alto Araguaia (MT), Dourados (MS), a televisão não pegava direito. A TV, inclusive, era um objeto de decoração, raramente ligada na tomada. Mas a minha avó morava no interior de São Paulo e eu passava as férias com ela. Ficava o mês inteiro em frente à televisão, porque era a única oportunidade que eu tinha de assistir. Quando encontro amigos e ele começam a contar as suas memórias televisivas, me considero um elo perdido. Não conheço os desenhos animados daquele tempo.

Biblioteca Mário de Andrade

No início da década de 1990, fui morar em São Paulo, na capital, e, naquele contexto, comecei a frequentar a Bibliteca Mário de Andrade. Hoje, ela foi reformada, está lindíssima, é um prazer visitá-la, principalmente porque reformularam todo o sistema de consulta. Você entra e tem acesso a todas as prateleiras, é um passeio que recomendo. Mas nos anos 1990 a situação era diferente. De toda forma, acho que essa é a lembrança mais precisa que tenho de frequentar uma biblioteca pública.

Idiossincrasias

Na minha biblioteca tem os livros que estão comigo desde a adolescência e os chamados livros do coração, aqueles que li e tenho a esperança de reler, e ainda aqueles que comprei a partir de desejo muito forte de ler, mas que ainda não tive oportunidade de começar. Acredito que existe um tipo de livro que você precisa em determinada época. Essa obra exige uma adequação, um momento e uma hora exata para a leitura. Às vezes, você pega um livro, abre, lê duas ou três páginas e não prossegue. Depois de cinco ou seis anos, você abre aquele mesmo livro e se apaixona, lê até o final. Isso aconteceu comigo diversas vezes. Então, hesito em me livrar dos livros.

O jornalista Irinêo Netto conversa com Joca Terron no segundo encontro do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2012.
Leitor profissional

Sou leitor profissional, faço crí tica para jornal e, por esse motivo, entrei na lista de envios das editoras. Sem pedir, recebo até 25 livros por semana em casa. E isso acaba virando um problema porque não é a toda hora que você consegue encontrar tempo para organizar e mesmo fazer uma triagem de tantos volumes.

Caos organizado

Três prateleiras da minha estante quebraram por excesso de peso, e os livros estão espalhados por diversos pontos do apartamento. Comecei a fantasiar que, uma hora ou outra, o piso também vai ceder e serei responsável pela morte da família do andar de baixo, onde, inclusive, tem uma adolescente que berra o dia inteiro. Mas, apesar disso, tenho tudo bem organizado na cabeça. Se alguém precisar de um livro da minha biblioteca, é só perguntar que eu encontro. A minha organização é totalmente afetiva, não tem lógica. Na sala, devo ter uns cinco mil livros. Meu criado-mudo está uma calamidade. Outra fantasia que tenho é de morrer soterrado pelos livros do meu criado-mudo, onde deve ter uns 200 livros.

Curitiba literária

Meu interesse pela literatura produzida no Paraná antecede a descoberta do Valêncio Xavier ou do Manoel Carlos Karam. Curitiba teve uma geração maravilhosa e foi muito influente. Nos anos 1980, a presença do Paulo Leminski foi fundamental, além da existência do jornal Nicolau, editado pelo Wilson Bueno, e do próprio Bueno. Na década de 1990, após estudar arquitetura no Rio de Janeiro, me mudei para Bauru, no interior de São Paulo, onde estudei Desenho Industrial e Design Gráfico na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Lá, tive um ótimo professor, o José Luiz Valero Figueiredo, que tinha trabalhado com poesia visual na década de 1970. Quando soube do meu interesse por literatura, o Figueiredo me apresentou a primeira edição de O mez da grippe (1981), do Valêncio. Eu estava lendo poesia, ensaios, crítica literária, e tinha parado de ler ficção. Então, li O mez da grippe, e o livro foi a minha porta de entrada para a leitura de ficção contemporânea.

O genial Valêncio

Fiquei tão impactado pela leitura de O mez da grippe que viajei para Curitiba e procurei o nome do Valêncio Xavier na lista telefônica. Encontrei o número, mas, em um primeiro momento, não tive coragem de telefonar. Uma noite, após umas cervejas, liguei e ele atendeu. Conversamos, e fiquei amigo dele. Meu interesse pelo Valêncio Xavier antecede a sua redescoberta, porque Meu 7º dia, livro dele que publiquei pela minha extinta editora, a Ciência do Acidente, saiu em 1998, mesmo ano em que a Companhia das Letras reeditou O mez da grippe e outros livros. Talvez Meu 7.o dia tenha saído um pouco antes da reedição da Companhia das Letras porque o Valêncio fez questão de que da bibliografia do livro da Companhia das Letras constasse a edição da Ciência do Acidente.

Descompasso

Gosto de uma literatura não muito certinha. Embora o Brasil tenha grande tradição literária, percebo que no período da ditadura, de 1967 até a década de 1990, a literatura ficou em segundo, terceiro, quarto plano, sem condição de competir com outras expressões artísticas. A literatura brasileira não podia competir com o poder de mobilização política que, por exemplo, o teatro teve nos anos 1960, nem com a Tropicália. Quem realmente produziu obras que me atraíram, que me deixaram impressionado, foram autores como Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier, Paulo Leminski e o Jamil Snege, o mais desconhecidos de todos, que ficou restrito a Curitiba por causa de sua recusa em ser publicado por uma grande editora.

Karam

Apesar de ter surgido dessa literatura pós-modernista, sobretudo a francesa, na qual um dos destaques é o escritor Georges Perec, o Karam conseguiu desenvolver uma linguagem muito pessoal, com grande sentido de humor e um jeito de enxergar o absurdo da vida quase filosoficamente, engraçadíssimo. Dificilmente você fecha um livro do Karam e não fica pensando, e o grande autor é justamente o que consegue provocar esse efeito no leitor, a reflexão.

Letrista de rock

Comecei escrever narrativas durante a infância. Eu era aquele que, quando tinha concurso regional de redação, era sempre o escolhido para representar a escola. Quando tinha 10 anos, li O tempo e o vento, do Erico Verissimo, e planejei escrever uma saga épica mato-grossense. Até comecei a escrever, mas não fui adiante. Poesia, eu não sei, surge como um desejo de expressão sentimental, mas nunca quis ser poeta. Eu queria mesmo ser letrista de rock .

Flashes do cotidiano

Lembro de uma resenha muito elogiosa ao meu primeiro livro, Eletroencefalodrama (1998), na qual o resenhista comparava cada um dos poemas a textos de Maiakovski, e. e. cumings e outros grandes poetas. Quem lia a resenha, tinha a impressão de que eu resumi toda a poesia do século XX em um
único livro. Com o passar do tempo, a poesia, para mim, acabou virando uma espécie de arte fotográfica, um recorte do cotidiano, uma imagem que acaba se traduzindo em texto, e não sinto necessidade de reunir e publicar. Às vezes, tenho a impressão de que são assuntos tão pessoais que realmente merecem ficar apenas dentro dos meus cadernos.

Luta contra a indisciplina

Na ficção, principalmente no romance, há uma luta contra a sua própria indisciplina. O escritor de romance sempre é relacionado a uma espécie de tortura, e isso é verdade. Se você não escrever todos os dias, nem que sejam apenas 20 linhas, não vai terminar nunca — e não terminar talvez seja a pior coisa da vida. Ao escrever uma longa narrativa de ficção, você é movido por ideias que têm de ser traduzidas em texto. Se o escritor não fizer isso, as ideias desaparecem. Acredito que essas ideias, quando não se transformam em texto, acabam virando um sentimento rancoroso de insatisfação, um recalque.

Realidade

Durante um processo criativo, o escritor deixa de ser apenas leitor e começa a se expressar diariamente por meio da escrita de ficção. Isso tem um aspecto um pouco amedrontador. Em determiando momento, você pode começar a praticar a ficção ao invés da realidade e, se isso acontece, o sujeito se dá conta de como é tênue a fronteira entre ficção e realidade. Daí que a ficção adquire esse caráter de verdade categórica justamente por ser uma mentira que se espelha na suposta verdade da vida.

Encomenda

Tenho vários livros em progressão que fui obrigado a abandonar porque tinha um compromisso, por exemplo, um prazo para entregar um romance pelo qual eu havia sido pago, e isso não é muito comum no nosso mercado editorial. Quando fui convidado para participar do projeto Amores Expressos, eu tinha apenas de contar uma história de amor no Cairo, e eu contei. Uma história de amor e ódio entre dois irmãos gêmeos. E foi muito divertido.

No Cairo

O Cairo é uma cidade com 18 milhões de habitantes. No entreguerras, no século XX, foi um entreposto do Ocidente, um local sofisticado e civilizado, onde diversos escritores viveram e escreveram obras. Viajei para lá em 2007, e já era possível perceber essa ebulição que iria culminar na Primavera Árabe de 2011 [onda revolucionária de manifestações e protestos que ocorreram no Oriente Médio]. O Mubarak estava há mais de 30 anos no poder. O Egito vivia uma ditadura desde a saída dos ingleses, na metade do século XX. Além disso, aquele local se tornou totalmente islâmico. Antigamente, era um país trilíngue, onde se falava inglês, francês e árabe. Hoje, raramente você encontra um egípcio que fale um idioma ocidental, mesmo nos hotéis.

Ligado o tempo todo

Os dias que passei no Cairo foram surpreendentes. Viajei de trem, fui para um deserto, para Alexandria, sempre com poucos recursos. Fiquei em hotéis horríveis, e não por descuido da produção do projeto. No Egito é oito ou 80. Não tem hotéis baratos que sejam legais. Se você se hospedar em um hotel cinco estrelas, estará fora da realidade do Egito. Não foi o meu caso. Mas no meio da estada, comecei a me cansar. Era preciso estar ligado o tempo todo, negociar 24 horas por dia para não ser enganado.


Má vontade da crítica

Amores Expressos, projeto no qual autores brasileiros foram enviados, cada um, para diferentes cidades do mundo com a finalidade de escrever um romance, foi um marco porque, de algum modo, espelha o nível de profissionalismo que atingimos em âmbito editorial. Por outro lado, a recepção crítica deixou a desejar. O filho da mãe, livro que surgiu a partir da viagem do Bernardo Carvalho a São Petersburgo, é um dos melhores livros recentes dele. Aponta um novo caminho na ficção dessse grande autor, e quase não foi comentado. O livro não foi massacrado por ser do Bernardo Carvalho, um autor de prestígio. A coleção foi importante por mostrar que, no Brasil, os críticos literários são mais românticos do que os criadores, pelo fato de receberem de forma tão negativa livros encomendados. No século XIX isso era comum, o Dostoiévski escrevia por encomenda.

Como se fosse um filme

Guia de ruas sem saída (2012) é quase um filme. O livro só existiu porque sofreu um processo de montagem, característico do cinema, no qual você filma todas as cenas separadamente, leva o material para a ilha de edição e, lá, corta o desnecessário, edita. Tive controle total sobre tudo, as imagens, as sequências, as narrativas em imagem feitas pelo André Ducci.

Insatisfação permanente

Se me perguntarem se fiquei satisfeito com Guia de ruas sem saída, não fiquei, nunca fico satisfeito com nenhum livro. Se você escrever uma obra de ficção mais longa, que não seja um conto, está condenado ao fracasso. Porque o romancista é vencido pelo cansaço, pois abandona o livro quando já não consegue mais ver defeitos nem qualidades. O grande problema da escrita de um romance é o seguinte: você é obrigado a ler dezenas, centenas de vezes e, então, o texto adquire um grau de opacidade. Não sei se vocês sabem, mas nas grandes editoras, em quase todas, os romances sofrem três processos de revisão. Raramente é o mesmo revisor que faz o trabalho. Em geral, três revisores
atuam no processo. Eu sempre saio de um romance com a sensação de derrota, de ter jogado a toalha.

Blogues

Em 2002, tive um primeiro blog, o “Hotel Hell”, no qual publicava ficção. O meu livro Hotel Hell (2003), publicado pela editora gaúcha Livros do Mal, talvez tenha sido um dos primeiros do Brasil a reunir textos literários que saíram anteriormente em um blog. Depois, fiquei uns tempos sem blog. Quando criei esse novo, o Sorte & Azar S/A, eu estava tentando reanimar, em mim, a vontade de escrever posts. É também uma paródia de um livro do escritor uruguaio Mario Levrero, no qual um personagem se inscreve em uma escola de caligrafia a fim de melhorar o caráter.

Na companhia da crônica

No que diz respeito a editoras, o blog da Companhia das Letras é um dos mais bacanas. Eu entendo aquele espaço, no qual sou um dos colaboradores, como uma oportunidade para escrever crônicas, com total liberdade. Sempre que posso, falo sobre o que me atrai, incluindo livros.

O grande Joca

Traduzi, para a Cosac Naify, o livro Paris não tem fim (2007), do Enrique Vila-Matas, mas eu não conhecia o autor. Depois disso, ele veio ao Brasil para participar de um evento literário, circulou e concedeu entrevistas. É comum perguntarem a um autor estrangeiro se ele conhece a literatura brasileira e, para a revista Época, ele respondeu o seguinte: “Conheço a Clarice Lispector, o Dalton Trevisan e o grande Joca Terron”. Fui o único que mereceu um adjetivo. Peguei o exemplar da revista e procurei o expediente para ver se não tinha algum amigo meu fazendo piada. Não tinha. Meses depois, recebi uma ligação telefônica de uma repórter da revista Época, a mesma que tinha entrevistado o Vila-Matas, para falar sobre um outro assunto. Perguntei a ela se o escritor catalão tinha dito aquilo mesmo. Estava em dúvida. Afinal, ele poderia ter dito “o grande Dalton Trevisan,
Joca Terron” e, na edição, por descuido, o “grande” teria se aproximado do meu nome. Mas a repórter garantiu que a frase era aquela mesma e, confesso, fiquei muito feliz porque o Vila-Matas é um autor que admiro.

Sintonia

Conheci a ficção do Vila-Matas em 2004, a partir do livro História abreviada da literatura portátil, publicado originalmente em 1985, e editado no Brasil em 2011. Naquela mesma época, também conheci o Roberto Bolaño. Li os dois autores ao mesmo tempo. E fiquei surpreso com a literatura do Vila-Matas porque, guardadas todas as proporções, havia um diálogo muito grande com o meu livro Não há nada lá (2001). Esse parentesco literário o próprio Vila-Matas ressalta no texto que está na contracapa da reedição do meu livro, viabilizada pela Companhia das Letras em 2011. Quem fez o contato foi o Emílio Fraia, editor do Vila-Matas no Brasil. O Emílio consultou o autor, e perguntou se ele escreveria um texto para a reedição de Não há nada lá. Enviamos o livro, ele leu, aceitou e escreveu.

Ler durante a criação

É complicado ler durante o processo de criação. Se você lê um escritor maravilhoso, vai se achar um Zé-Mané. E se ler um outro autor muito ruim, você pode se achar incrivelmente bom. As duas situações podem conduzir um escritor a conclusões equivocadas. É uma situação difícil, mas não não deixo de ler enquanto escrevo meus livros. Gosto de ler poesia porque esse gênero tem uma qualidade, a de proporcionar pontos de partida. Às vezes, você encontra uma frase poética que é inspiradora e desperta o desejo de escrever.

Cazuza, Frejat e continuar

Sou inconstante. Já quis ser quadrinista, poeta, cantor de rock, arquiteto, designer gráfico e escritor. Nada garante que eu continue a publicar livros. No entanto, acho difícil parar de escrever porque a escrita é um hábito adquirido e fundamental na minha vida. Se deixar de escrever, vou perder a minha principal ferramenta de expressão, vou me sentir sem voz. Lembro quando o Cazuza saiu do Barão Vermelho, e a banda continuou com o Roberto Frejat no vocal. O Barão Vermelho seguiu produzindo álbuns muito aquém dos gravados na época em que o Cazuza estava na banda. O público diminuiu, houve críticas. Em uma entrevista, um repórter perguntou ao Frejat como fazer para continuar. O Frejat respondeu que não se pode desistir. Se você quiser ser músico, artista, tem de continuar a fazer. Acredito nisso.

Labuta

A maior probabilidade é que um livro não seja escrito. As exigências da sobrevivência, o cotidiano, tudo, absolutamente tudo, atuam contrariamente ao seu desejo de escrever. Sobrevivo da minha imagem de escritor, atuando no jornalismo, com crítica, no mercado editorial, por meio de traduções e palestras. Há todo um sistema relacionado ao universo do livro. Mas não sobrevivo
diretamente da minha ficção.

Tempo furtado

Todo mês, tenho de escrever no mínimo dez textos para a imprensa, que é o que garante parte fundamental do minha subsistência. Ou, então, tenho de fazer traduções. Tudo isso rouba energia e suga o tempo que eu poderia utilizar para escrever meus livros. Enquanto estava no Cairo, escrevi o primeiro de uma série de quatro livros. É o projeto de uma epopeia familiar. Escrevi um quarto disso em 2007 durante um mês no qual eu tinha, em tese, todo o tempo do mundo só para mim. Nunca mais voltei a esse projeto porque nunca mais tive tempo livre.

Toda uma vida

Na Festa Literária de Porto Alegre deste ano, realizada em abril, fiz uma entrevista pública com o César Aira, um dos mais interessantes escritores argentinos contemporâneos. O Aira fez um grande elogio à literatura brasileira, para ele, a mais poderosa do continente. Li o dicionário de autores lationamericanos que ele organizou, no qual são mencionados diversos nomes que nunca ouvi falar, principalmente do século XIX. Na capital gaúcha, Aira confessou ter se apaixonado perdidamente por Guimarães Rosa no fim da juventude, exatamente no período em que começou a escrever ficção — mas leu alguns contos do Rosa, e aquela linguagem visceral despertou nele uma crise brutal. Há autores, como Guimarães Rosa, James Joyce e Jorge Luís Borges, que apresentam um nível de singularidade tamanho, que qualquer tentativa de enveredar por aqueles universos pode adquirir um efeito paródico indesejado ou então mero exercício de cópia. Desenvolver uma dicção ou estilo próprio, o que é um mito, uma lenda que persegue todo escritor, é talvez o passo mais difícil a ser dado. A mera preocupação com isso me parece fruto dos tempos em que a gente vive, no qual há uma ansiedade intensa. Na verdade, um autor precisa de uma vida inteira escrevendo para desenvolver um trabalho próprio, que tenha a sua marca.