Um escritor na Biblioteca: João Gilberto Noll

O premiado autor de Harmada e Bandoleiros falou sobre sua bem-sucedida carreira e sobre seu mais recente romance, Solidão continental, que novamente traz o personagem sem nome que povoa grande parte de sua obra. Em uma conversa com o também romancista José Castello, Noll falou sobre a influência que autores como Clarice Lispector e Camões tiveram em sua formação como leitor.

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João Gilberto Noll tem, seguramente, uma das carreiras mais consistentes e singulares da literatura brasileira contemporânea. Tal singularidade decorre da linguagem extremamente elaborada que o escritor gaúcho imprimiu em sua prosa desde os contos iniciais de O cego e a dançarina e que chegou ao ápice em livros como Harmada, Bandoleiros e Lorde, seus melhores trabalhos. Todos os seus 16 romances são guiados por um homem sem identidade, personagem onipresente em sua ficção. É essa figura misteriosa, ao mesmo tempo visceral e introspectiva, que protagoniza, mais uma vez, o novo romance de Noll, Solidão continental, lançado no segundo semestre de 2012. Livro e personagem foram alguns dos assuntos abordados pelo escritor gaúcho na conversa mediada pelo também romancista José Castello, no oitavo encontro do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2012. “É uma relação mais para o sagrado, eu acho. Ninguém briga. Enquanto ele não está em produção, eu vou para o computador para escrever em estado de vazio, para que ele possa se estabelecer com liberdade”, diz o escritor sobre sua relação com o personagem de seus livros. Noll também falou sobre a influência da ficção de Clarice Lispector em sua literatura, mais especificamente sobre o célebre romance A paixão segundo G.H, que o marcou de forma indelével. “Eu tinha vinte e poucos anos quando A paixão segundo G. H. foi lançado. E esse livro foi definitivo e definidor para mim. Então pensei: se ela fez isso, por que eu não posso tentar fazer também um romance abstrato?” Leitor voraz de poesia, Noll se disse influenciado por Camões e T.S. Eliot, mas também pelo cinema de Michelangelo Antonioni. “Fui um garoto viciado no cinema do Antonioni, que é o cineasta da incomunicabilidade. Me identificava, me identifico muito ainda com aquilo. Talvez porque eu seja um pessoa realmente com um histórico de muita dificuldade para me expressar e a literatura vem para compensar.” Leia a seguir o principais trechos do bate-papo.

Relação com os livros
Minha mãe lia muito raramente. Meu pai, não. Meu pai era comerciante e eu comecei realmente a ler através de Júlio Verne, como muitos garotos da minha faixa de idade. Põe ai uns 9, 10 anos. Não peguei tanto Monteiro Lobato, mas lia muito sobre a vida de compositores, Chopin, Beethoven. Porque eu estava me preparando para ser cantor lírico, então estudava piano e era muito envolvido com a vida dos músicos. Achava aquilo tudo muito impressionante, aquela intensidade que, pelo menos as versões romantizadas que me caiam as mãos, me transmitiam. E foi assim que comecei a ler. Com 14 anos eu frequentava a Biblioteca Pública de Porto Alegre, um prédio muito bonito, austero — agora está fechado para reforma —, com jardim de inverno, muito bonito. Eu gostava de buscar leituras lá, eu ia com muita frequência. Mas, no meu caso, não posso realmente dissociar minhas primeiras leituras dos meus primeiros filmes, quer dizer, sou cinéfilo desde muito garoto. Frequentava a matinê de domingo, como se dizia na época. Matinês eram as sessões vespertinas, que eram sagradas para mim, quer dizer, um dos piores castigos que eu podia levar era não ir à matinê no domingo. E foi mais ou menos por aí que comecei a tomar contato com o mundo das artes. Eu, realmente, custei um pouco a me definir pela literatura, quis ser ator também.

Teatro
Não cheguei a participar de grupos de teatro porque, na época, entrei em uma crise de adolescência feroz, que me impossibilitava de aderir a qualquer tipo de espetáculo diante do público. Eu cantava. Cantava Maria, de Schubert, em casamentos. Ganhava os meus trocados. Isso dos 7 aos 12 anos. Cantava nos colégios, declamava, quer dizer, sabia que desde cedo o veneno artístico estava nas minhas veias.

Canto e escrita
Eu ganhava os meus trocados no sábado à tarde cantando em casamentos Ave Maria, de Schubert. Então, a literatura vai chegar nessa crise brutal que tive na adolescência. Com 16, 17 anos, não queria mais estudar, não ia mais ao colégio. Minha família ficou em polvorosa diante de um garoto, adolescente, que não queria mais ir ao colégio. Abandonei o colégio durante um ano e pouco. Aí que comecei a escrever. Pois a escrita era um tipo de expressão que não precisava de uma equipe, de um público diretamente. É, realmente, a arte solitária por excelência.


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Influência

Meus pais eram indiferentes às minhas leituras. Mas tive um amigo no colégio, um cara mais velho, que me introduziu a muitas coisas, como, por exemplo, a livros. Ele me emprestou O apanhador no campo de centeio, Trópico de câncer, que é até hoje um dos grandes livros da minha vida, principalmente esse, os outros do Henry Miller nem tanto. E coisas assim como Françoise Sagan. Comecei a conhecer Sartre através dele. Ele me mostrou a Bossa Nova, o jazz, etc. Realmente eu devo muitíssimo a ele. Uma figura muito importante, que ainda mora em Porto Alegre.

T.S. Eliot
Esse mesmo amigo me apresentou também a obra de T. S. Eliot. Fiquei encantado com aquela tradução do nosso poeta Ivan Junqueira, dos quatro quartetos. Dos livros que ele me encaminhou, foi o que mais gostei. Eu queria uma coisa assim, que não precisasse falar tanto de enredo, quer dizer, sou um ficcionista um tanto desnaturado, de linguagem, não cultivo tanto o enredo, e o Eliot dava só tópicos, daquelas ruínas, daquela coisa desértica, uma certa decadência muito interessante, muito atrativa para um jovem que vinha criticando ferozmente as coisas institucionais como a família, o colégio e outra coisas que comecei a execrar naquela época. Na minha literatura tem um cara inconstitucional, sem família, desfamiliarizado. Parece que isso foi gestado já ali. E através, principalmente, da grandiosidade obra de T.S. Eliot.

Biblioteca
Não tenho uma biblioteca muito grande, porque andei nesse mundão por muito tempo, então muitos dos meus livros fui deixando nos lugares onde morei. Lembro que quando morei nos Estados Unidos, para dar aula, distribuía meus livros para os alunos e colegas, que tinham interesse, principalmente, em livros em língua portuguesa. Não tenho muito ciúmes dos livros, gosto de emprestá-los, mesmo sabendo que não vai voltar. Mas isso é uma coisa minha em todos os sentidos, não só com os livros.

Porto Alegre
Sou um viajante. Agora, talvez por questões de idade, eu esteja caminhando para um certo sossego domiciliar. Mas ainda não decidi a cidade que quero viver. Talvez não seja Porto Alegre. Porque faltam amigos lá. Passei parte de minha vida, entre os 20 e os 30 anos, no Rio de Janeiro. Esse estágio da vida é fundamental para criar raízes e fazer amigos. Por isso, os meus grandes amigos estão no Rio. Não é à toa que acabo de publicar um livro chamado Solidão continental. Mesmo que não me considere um escritor biográfico, e realmente não sou, se você for ver, em termos factuais, os meus livros não refazem a minha vida geograficamente. É aquela velha história que sempre digo: tenho um outro dentro de mim, que habita em mim. E esse homem é o meu protagonista, você vê que os meus livros tem o mesmo protagonista em circunstancias diferentes, pois um livro não é continuidade explicita do outro: num livro ele é ator, no outro, escritor, no outro vagabundo. Inclusive ele tem muita tendência à vagabundagem. Porque é um contemplativo, por isso que ele sofre, porque realmente ele não está dando resposta à exigência de produção que a sociedade exige, ele está sempre desfalcado, sempre aquém da exigência de produtividade da sociedade.

Homem sem nome
Às vezes brinco nos meus romances. Por exemplo: nesse Solidão continental, quando o cara tá no hospital e tem que dar seus dados, como nome, endereço, senão não o liberam, ele estava sozinho. Como é que soltam um doente desmemoriado assim? E ele diz: meu nome é João. Mas não se sabe se ele está brincando, se é um nome verdadeiro. Já em A fúria do corpo, ele começa dizendo que tinha sido dedicado, consagrado, como se dizia no catolicismo, a São João Evangelista, não o Batista, o Evangelista.

Relação com o personagem
É uma relação mais para o sagrado, eu acho. Ninguém briga, sabe. Enquanto ele não tá em produção, eu vou para o computador para escrever em estado de vazio, para que ele possa se estabelecer com liberdade. Então, pelo menos na minha cabeça funciona assim. Vou em estado de vazio, não sei o que vai sair, e olha que eu escrevo romance, uma coisa que tem continuidade. Não são contos, tenho poucos livros de contos. Nos contos você dá um gozada por conto e sai tudo de uma vez só. Depois você vai trabalhando os detalhes, apenas. Mas, não, quando um romance está em andamento, eu sento em frente ao computador para falar da dinâmica do personagem, é disso que eu falo: da dinâmica dele, como ele está hoje, os seus vícios, suas pequenas fortunas também, porque às vezes ele se apaixona, ainda que não dê certo. Mas ele especula muito amorosamente. Neste Solidão continental, ele vive uma promessa amorosa ao final que, inclusive, eu deixo aquilo suspenso. Não quis dar uma solução real àquele primeiro anseio de fundir, porque acho que o ser humano gosta muito de se fundir a outro ser humano, e isso tá muito latente no que eu escrevo. A gente é muito incompleto, então, mesmo biologicamente, a gente quer estar se fundindo ao outro.

Influência do cinema
Eu sou um cinéfilo. E talvez o que me faça ser narrador seja esse pendor pela imagem, muito mais pela imagem do que pelo romance, pela narrativa literária longa. E dentro dessa linha de imagem, eu sinto que nesse último livro, por exemplo, Solidão continental, tem momentos que a pulsão é tão forte, que ela se esgarça e vira um outra possibilidade de cenário. É assim que o personagem enfia a cabeça no vaso sanitário e vai dar em outro lugar, porque, naquele momento, naquele apartamento em que ele estava, não era mais possível render alguma coisa que fosse uma continuidade. E ele vai dar justamente em uma piscina. Essa piscina é altamente cinematográfica, a meu ver. E tem uma cena ali amorosa, charmosa, no sentido de o personagem avistar uma mulher na beira da piscina tomando um refresco, vermelho talvez, algo que pode ter álcool. E ele vai atrás daquela mulher, que toma algo pelo canudinho, aquilo é pura imagem. Ele sai da piscina, depois de ter estado em um hotel em Chicago, com o amor da juventude. Ao invés de envelhecer naturalmente, como ele, que deveria ter as suas marcas, porque fazia décadas que eles não se viam, este rapaz estava na condição de um adolescente perpétuo, magrinho, pálido. Que é uma coisa cinematográfica também. Foi uma cena que me pressionou muito em Satyricon, do Fellini: o hermafrodita. Tinha uma sugestão imprecisa entre as pernas, não sabia muito bem o que era aquilo, muito branco, muito pálido, parecia que não pegava sol.

Linguagem
Acho que a condição dos meus personagens, realmente, é uma condição infra-humana. Por isso que, às vezes, até a linguagem é um pouco demencial, ela não dá conta de dizer as coisas na cristalinidade da linguagem mais funcional, mais operacionalizante. As coisas realmente estão aquém do que um convívio social exige. São pessoas que, como em Lorde, podem acordar ao final do livro e não ser mais quem eram. Eu vejo muita fragilidade, muita fragilidade. A vida nos oferece esse quadro. Inclusive, o fato de eu precisar de alguém que fale por mim na ficção, já é um testemunho de fragilidade. Como é que o João, cidadão, com uma vida social, vai dizer tudo, digamos assim, daquilo que você esquece debaixo do tapete, porque a literatura é um pouco você levantar o tapete, mostrar aquilo que esconde socialmente. Você não vai numa reunião social para dizer as coisas como meus protagonistas dizem. Porque seria, realmente, um atestado de infra-humanidade.

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Romance político

Acho que meus romances são políticos. Falar de solidão, hoje, é uma questão altamente política. Na minha juventude, falar de solidão era alienação. Por isso que a Clarice, naquela época, anos 1960, 1970, era vista como uma escritora alienada, porque falava da subjetividade. E eu sou um autor que fala das subjetividades. De outra coisa eu não falo porque não entendo, não circulo tanto nessa materialidade mais estabelecida em termos de relação. Eu, preferia pra mim, que fosse bem diferente, eu queria ser outro. Mas, realmente, os meus romances são políticos, sim, essa é a condição que a nossa sociedade engendrou através da cibernética, através dessa coisa de todo mundo estar olhando para uma tela em branco e tendo que falar, falar, falar nessa terra devastada pelo branco. Mas, hoje, ninguém quer encarar essa condição tão finita que nos foi legada e que, se não fosse assim, não haveria literatura. A literatura existe porque eu vou morrer. Não quero morrer, gosto de estar vivo, com todas as dificuldades. E a literatura é isso. É a religião que eu perdi, quer dizer, num mundo sem transcendência. Acho que, realmente, falar-se de solidão hoje é um ato político. Basta você viver numa cidade de porte grande, como a que eu e vocês vivem, para saber o quanto as pessoas padecem em fins de semana arrastados. Padecem da falta do outro que está desregulado de sua empatia humana diante da tela em branco. Tela em branco ou tela sendo preenchida. Mas há muita tagarelice nisso tudo. E eu sou um sujeito que fico muito feliz em estar escrevendo, bem ou mal, eu estou escrevendo. Já são 19 livros, deixando, bem ou mal, um testemunho. Acho que a literatura tem o seu valor exemplar, a arte como um todo. Viva os artistas, viva os escritores. Se não fossem eles, a vida seria muito mais pobre. Não resta a menor dúvida. Se não houvesse esse espelhamento, transfigurado. Por ser transfiguração, de nada adianta você ficar copiando a realidade tal qual ela é. É um espelhamento que transfigura, que dá realmente esse veio interior. E eu acho que essa transfiguração da literatura que salva, que eleva o humano, esse veio interior que é particular. E quando ele é muito interior, ele é tão interior que chega a ser coletivo. Porque realmente todo ser humano sente saudade, todo ser humano sente momentos de profunda solidão, todo ser humano sente ódio da sua pequenez, quer dizer, isso que tá muito, muito, muito subjaz. No mais profundo de cada um. É isso que a literatura, a meu ver, a boa literatura, trata. É meu tipo de literatura, pelo menos. Há outras mil maneiras de encarar a literatura, não é? O meu modo de encarar a literatura é esse: é dizer o que não é dito em sociedade. E, realmente, você denuncia muitas vezes. A literatura, tem seu lado político, mas você não pode também esquecer uma certa atração pelo próprio mal. Aí que tá a perversão da coisa. Eu estava pensando, por exemplo, nessa minha tendência, que as vezes deixo de lado, a períodos muito longos. E comecei a pensar: mas isso eu projetei, realmente, esse poder da velocidade nos nossos dias. Pois a literatura, realmente, é uma somatização do que vai dentro dos personagens. Esses textos enormes, esses períodos enormes, acho que eles vêm muito do fato de que a pressa, a velocidade, é quem domina nas relações dos nossos dias. Então é realmente uma somatização do próprio estilo.

Mínimos, múltiplos, comuns
Quando falo nesse personagem que rege a minha escrita, não incluo aí os contos. Cada conto é uma pulsação diferente, uma explosão diferente. Explosão, eu diria, é a palavra adequada para esse livro de microcontos, que é o Mínimos, múltiplos, comuns. Ele se chamava Relâmpagos, na Folha de S. Paulo. Daí, quando eu estava pra publicar os relâmpagos, o Ferreira Gullar publicou um livro chamado Relâmpagos. Por isso que nomeie de Mínimos múltiplos comuns. Mas esses pequenos contos tinham esse sentido de relâmpago mesmo, uma coisa nervosa, um frêmito, que fosse assim muito, muito, muito rápido. Então, são diferentes. Mesmo o primeiro livro que publiquei em 1980, que é O cego e a dançarina, traz contos que têm aspectos muito diferentes dos meus romances. Em primeiro lugar, porque no conto você tem que dar conta, desculpa aí o trocadilho, de uma coisa muito rápida. E quando eu escrevi O cego e a dançarina, que foi meu primeiro livro, não tinha esse homem ainda. Ele começou a vingar já no primeiro romance, A fúria do corpo. Mas eu tinha 34, 35 anos e A fúria do corpo é um livro amorosamente muito bem-sucedido. É uma história de amor. Um casal de mendigos termina sob um chafariz na praia de Botafogo — um chafariz que existe mesmo—, brincando, em pleno jardim edênico.

Memória
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A questão da memória também é muito importante para mim. Eu sou muito preocupado com a amnésia, o esquecimento. É outro tema importante que às vezes preciso usar, até para poder terminar o livro. Para não ter erros de continuidade, porque realmente sou um romancista porque desejo muito sê-lo. Minhas coisas são mais flashs mesmo. Os meus romances estão cheios de flashs. Em Mínimos, múltiplos, comuns minha utopia era escrever um livro de relâmpagos, mas que fosse uma prosa, que fosse um romance, uma narrativa. Um romance que não houvesse tanta tele entre um cena e outra, não fosse tudo tão costuradinho, porque não é assim que eu vejo que eu vivo no mundo, se fosse assim seria mais fácil, talvez.

Incomunicabilidade
Eu acho que eu escrevo, neste tom que eu escrevo, porque talvez eu considere que seja incompleto. Quer dizer, a sensação que eu saio de um contato humano achando que poderia ter sido mais vertical é uma constante. Fui um garoto viciado no cinema do Michelangelo Antonioni, que é o cineasta da incomunicabilidade. Me identificava, me identifico muito ainda com aquilo. Talvez porque eu seja um pessoa realmente com um histórico de muita dificuldade para me expressar e a literatura vem para compensar. Chegar, cruzar a perna e contar um fato que vivi, é um parto. Então, acho que em um dos meus livros isso está transparecido, sabe? Tá muito transparecido essa dificuldade enorme, e isso vem desde muito tempo, inclusive já comentei com vocês a crise medonha que eu tive na adolescência. De não conseguir conviver com os garotos do colégio. Engraçado que hoje eu comento esse tipo de coisa pessoal com a maior tranquilidade, não conseguiria falar sobre isso há uns cinco anos. Hoje eu falo com a maior facilidade. Não fiz nada de mal a ninguém, vivi agruras que qualquer um pode sofrer, mais ou menos, ou pode sofrer em outras dimensões, então, eu quero respeito, claro. Em qualquer ser humano, não se trata aqui de um inoperante da linguagem. Tento, tento fazer de tudo para que essa linguagem, que é tão difícil para mim na vida comum, na vida social, possa se dar, pelo menos, no plano poético, no plano de uma certa transfiguração. Quer dizer, eu conto a coisa, tem um caso, mesmo que muito tênue. É assim: o ser humano não vai contar sobre o sexo dos anjos, a partir da sua experiência. Mas geralmente você vive as experiências de uma forma muito inconsciente. Então, sempre fica no ventre da experiência, alguma coisa que precisa ser restaurada pelo escritor e pelo artista. Não foi comunicada, ficou lá no ventre da experiência. Então o artista é mais ou menos o parteiro desta coisa que ficou encalacrada dentro do ventre da experiência. Ele não é apenas o relator, o jornalista da experiência, mas ele vai, põe a mão lá dentro do que não estava se mostrando, do que estava esquecido. Se não, toda literatura seria jornalística. E não é. Então, acho que excesso de solidão, excesso de dificuldade para se expressar, para se comunicar, é um pouco daquilo que fica encalacrado dentro da experiência que você viveu. É preciso ir lá e tentar mostrar as possibilidades virtuais de expressão para o terreno artístico. Talvez, na minha juventude, fosse pecado pensar nesses aspectos, na minha geração, de esquerda, etc e tal. Ou seja, só aquilo que ficava mais próximo da microestrutura é que tinha valor. As coisas mais metafísicas eram pecaminosas. Isso, para minha juventude. Hoje não. Hoje eu me considero um escritor metafisico. Escrevo porque vou morrer e eu acho isso uma sacanagem.

Formação do leitor
Acho que eu, enquanto escritor, enquanto produtor de literatura, posso fazer muito pouco pelo leitor. O que posso fazer é continuar escrevendo minha obra. E dou meu apoio a qualquer movimento que faça com que o adolescente, o jovem, vá até livros como os meus. Qualquer campanha, qualquer perspectiva disso, conte comigo. Mas não posso mudar a trajetória da minha literatura pensando na dimensão high-tech da existência, por que não é nem mais a minha, é de uma outra geração. E fui um cara que peguei, quando jovem, o existencialismo. Não tô dizendo que seja melhor do que o high-tech ou pior, mas são historicamente coisas definidas. Quer dizer, Memórias de uma moça bem-comportada, da Simone de Beauvoir, foi um dos livros de cabeceira da minha época de juventude. Esqueci desse livro, mas ele foi muito importante para mim. Ainda mais para mim, um cara que tinha dificuldade em aceitar a instituição humana. Então, realmente não saberia o que fazer para o bem dessa geração através da própria escrita. Porque vou ter que continuar buscando autenticidade. Porque é a grande questão da literatura desde o romance lá na ascensão burguesa no século XVIII, XIX. O herói romanesco é aquele que briga pela sua autenticidade. Não consegue. Não consegue porque a luta dele é pessoal, é solitária, muitas vezes. E isso principalmente no existencialismo. Mas se você for lá no Madame Bovary, são personagens que vivem a contragosto naquela estrutura burguesa que está se formando. Acho que isso é uma herança da história do romance, essa questão da autenticidade. Só posso escrever realmente sobre aquilo que me toca até as vísceras. Quer dizer, não posso fazer um programa novo de escrita pensando em uma questão pedagógica. Literatura não é pedagogia. Agora, visito muitos colégios, universidades, etc. Estar presente, tentando realmente aproximar a literatura desta minha geração com essas características dos jovens, conte comigo sempre. Mas não vou fazer uma assistência para essa problemática desta juventude de hoje através da minha ficção. Ela até pode entrar, essa questão, mas não de uma forma assistencial.

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Interlocutor

Acho que a minha principal interlocutora foi a Clarice Lispector. Foi outra que eu conheci jovem. Tinha vinte e poucos anos quando A paixão segundo G. H. foi lançado. E esse livro foi definitivo e definidor para mim. Então pensei: se ela fez isso, por que eu não posso tentar fazer também um romance abstrato? Como eu estava falando, o que me salva de ser mais abstrato do que eu já sou, é o cinema. Minha ligação profunda com o cinema, com a imagem. Mas aquele romance me estonteou. É de uma coragem absurda alguém chegar àquele ponto. E depois, inclusive, quando lá nos anos 1990 eu fui dar aula de literatura brasileira na Universidade de Berkeley, na Califórnia, dei esse livro para os alunos lerem. Eles liam em português. Quando cheguei em casa, pensei: mas que burrada eu fiz. Dar este livro, com este grau de abstração, para pessoas que estão gestando seu português, alguns melhor, outros nem tanto. Mas todos se comprometiam a ler o que eu dava nas aulas. Mas você sabe que é tal a universalidade dessa mulher nesse livro que eu tinha dois alunos, um coreano e outro japonês, e eles vieram com um olhar budista sobre o livro, quer dizer, aquele inseto que ela suga o sumo, não é bom nem é ruim, aquele inseto é a filosofia budista. Então foi, mais uma vez, um reforço para mim de que essa literatura é de primeiríssimo plano. Outro escritor, que está muito esquecido hoje, mas que eu gostava muito na época é o Adonias Filho, autor de Memória de Lázaro. Hoje está muito esquecido, mas eu gostava daquela coisa mítica, de uma linguagem não tão realista. Não é por estar aqui, não, mas Dalton Trevisan foi uma descoberta fantástica. Por esse lado, que a gente tava falando dos flashs, uma coisa rápida. São esses, eu acho, alguns dos meus mais gratos escritores brasileiros.