Um Escritor na Biblioteca | Rodrigo Lacerda

O escritor Rodrigo Lacerda está fascinado pela natureza. Seu mais recente livro, o elogiado Reserva natural (2018), faz uma imersão no mundo selvagem, que para o autor é um espelho da sociedade humana. “A natureza passou a ser um repertório infinito de assuntos para mim, e acho que ela passou a ser uma nova fronteira artística”, diz o autor, que participou da segunda edição do projeto Um Escritor na Biblioteca em 2019.
       Fotos: Kraw Penas
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Além de falar sobre seus trabalhos mais recentes, Lacerda também fez uma breve retrospectiva de sua trajetória como leitor e autor, em um bate-papo mediado pelo jornalista e cronista Luís Henrique Pellanda. 

Nascido no Rio de Janeiro (RJ), em 1969, o escritor teve seu primeiro contato com livros em casa. Seu pai, Sebastião Lacerda, foi editor da Nova Fronteira e montou uma grande biblioteca para a família.

Apesar do convívio com a literatura desde cedo, o autor de Outra vida (2009) diz que “ter uma família ligada ao mundo dos livros não significa necessariamente que você vai enveredar por esse caminho profissionalmente”. Esse contato precoce também fez com que ele criasse uma imagem distorcida dos escritores, “como se eles fossem pessoas superdotadas, inalcançáveis”.

A reviravolta veio aos 17 anos, quando conheceu a “cozinha editorial” da Nova Fronteira, onde o trabalho dos editores começava, descobrindo que havia margem para o “ser humano comum” melhorar o texto daqueles que lhe pareciam sobre-humanos. Um desses autores era João Ubaldo Ribeiro, um das influências decisivas de Lacerda, junto com o inglês William Shakespeare, o americano William Faulkner e português Eça de Queirós.

Já inserido no meio editorial, a estreia literária veio “meio por acaso”, com O mistério do leão rampante (1995), quando estava terminando a faculdade de História. “Eu não me sentia profissional, foi uma coisa acidental”, comenta.

Após a graduação e o pontapé inicial como escritor, Lacerda guinou definitivamente para o mundo das letras e seguiu produzindo com regularidade. Sobre o momento atual do mercado editorial, sente que publicar hoje em dia “está muito mais fácil”, pois, apesar dos monopólios das grandes editoras, existem opções acessíveis de autopublicação e pequenas editoras que oferecem boas oportunidades.

O autor também falou sobre política e a conjuntura mundial. “Minha sensação é que o país retrocedeu. A humanidade caminha para o cataclisma.”

Após enveredar por temas ecológicos nos contos de Reserva natural, o escritor carioca segue nessa linha, trabalhando numa obra em que a natureza está em primeiro plano, e que possivelmente terá animais como protagonistas. “Já escrevi três começos para o livro e não gostei de nenhum deles”, diz.

Um pouco de tudo
Meu contato inicial com os livros foi dentro de casa. Meu pai, Sebastião Lacerda, foi editor da Nova Fronteira e tinha uma boa biblioteca em casa. Quando publicavam Agatha Christie, no comecinho dos anos 1980, por exemplo, ele ia levando os livros e a gente ia lendo o que tinha vontade. Do lado da minha mãe, é uma família de educadores, também muito ligada ao mundo do livro e da literatura. Minha mãe tinha gostos mais sofisticados, gostava de “alta literatura”, e o meu pai sempre gostou de literatura mais popular, policial. Tinha um pouco dos dois mundos ali.

Primeira biblioteca
Meu primeiro contato, além daquele primeiro momento de leitura com histórias em quadrinhos, foi com uns 12 anos, quando realmente peguei o hábito de comprar livros. Ganhava minha mesada e eu e um amigo íamos para o centro da cidade, no Rio, percorrer os sebos e comprar os livros que compunham a literatura juvenil da época, que era a mesma literatura juvenil que o meu pai tinha lido, talvez meus avós — Os três mosqueteiros, O conde de Monte Cristo, O gavião do mar, Ilha do tesouro, essas coisas. Eram livros baratos, em edições antigas, então cabiam no orçamento. E foi assim que comecei a montar minha primeira biblioteca.

Prós e contras
Ter uma família ligada ao mundo dos livros não significa necessariamente que você vai enveredar por esse caminho profissionalmente. Além de não garantir esse caminho aberto, muitas vezes pode até atrapalhar, porque eu tinha uma imagem equivocada dos escritores que meu pai conhecia ou que publicava na editora — entre eles, João Ubaldo Ribeiro, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Josué Montello, Ivan Junqueira, José Lino Grünewald. Era de uma certa idolatria, assim, uma adoração, como se eles fossem pessoas superdotadas, inalcançáveis. Acho que num primeiro momento você projeta o mundo profissional dos seus pais como uma coisa muito distante e inalcançável, então acho que eu tinha essa visão distorcida das coisas.

Cozinha editorial
Fui trabalhar na editora aos 17 anos. Minha primeira tarefa foi ser revisor da 15ª prova, quando não tinha mais erro nenhum. Conheci a cozinha editorial e vi como é que os livros chegavam da mão desses grandes gênios, vi o trabalho dos editores em cima do texto original, e percebi que havia margem para o ser humano comum melhorar aquele negócio. Lembro de uma editora, chefe da área de produção, que sentava ao lado do João Cabral e falava: “João, olha aqui, nesse verso a métrica está errada”, aí contava as sílabas. Ele falava: “É mesmo! O que você acha que posso botar aqui?”. “Ah, sei lá, bota tal, tal.” “Ah! Boa, boa. Bota aí, bota aí!” Vendo isso, pensei: “Então é assim? Se é assim dá pra eu fazer também”.

Sem afetação
Houve uma época em que a casa do João Ubaldo estava em obras, então ele ia escrever na editora. Chegava de chinelo, sem camisa. O Ubaldo foi central para eu entrar em contato com esse lado humanizado da profissão. Ele era o intelectual que eu mais admirava, porque era extremamente culto, extremamente sofisticado, mas a obra dele não é nada cerebral. É culta, elaborada, mas não é fria, não é cerebral. E ele como pessoa era um homem absolutamente despojado de qualquer pose, de qualquer afetação. Esse primeiro contato direto com os escritores foi crucial, porque até então eu não sabia muito o que queria da vida. A princípio queria ser editor como o meu pai, mas não tinha ainda a pretensão de ser escritor. Achava algo realmente distante.

Tudo é autobiográfico
Sempre ouço sobre meus livros, por mais ficcionais que sejam: “Nossa! Mas isso é autobiográfico?”. Posso descrever um alienígena assassino interplanetário do século XXIII e vão me perguntar: “Mas é autobiográfico?”. Até recentemente, quando lancei o Reserva natural, dei para minha filha ler e ela falou: “Gosto muito, mas é que acho que tudo é autobiográfico”. Ela fica incomodada de se ver tão próxima daquele narrador. Tento mostrar para ela uma coisa que acredito, assim, profundamente: tudo é autobiográfico. Uma tese sobre física quântica é autobiográfica. A gente, na faculdade de História, aprende que, até quando o autor daquele documento histórico está mentindo, aquela mentira é eloquente de alguma verdade, ele está mentindo por algum motivo. Se você entender, a mentira vai ser reveladora de uma série de coisas também. Acredito que tudo é autobiográfico.

Estreia literária
Escrevi O mistério do leão rampante meio por acaso. Estava terminando a faculdade de História e consegui seduzir uma professora para ser minha orientadora no mestrado. Fui fazer um curso de mestrado com ela ainda como ouvinte, não tinha me formado na graduação propriamente, e o tema do curso era “As fronteiras entre Literatura e História”. Que ciência estranha é essa, a História, que o Brasil Colônia na visão de um historiador marxista é uma coisa, na visão de um historiador católico é outra, na visão de um historiador positivista é outra, de um historiador das mentalidades, do imaginário... Quer dizer, dependendo de quem faz a experiência, o resultado é diferente. Então o trabalho do final do curso foi pegar o tema da nossa tese e transformar num conto, já que essas fronteiras são tão fluídas. Eu ia escrever a tese fazendo um Fla-Flu entre Shakespeare e Camões, o teatro do Camões e o teatro do Shakespeare — o que era mais moderno, o que era mais medieval, digamos. Ao transformar o tema da tese imaginada num conto, saiu O mistério do leão rampante. O Camões ficou de fora. Acabei fazendo uma novela histórica cômica, em que o Shakespeare é personagem. No fundo, disse ali tudo que eu queria dizer sobre o Shakespeare. Abandonei esse mestrado em História. Só voltei a fazer pós-graduação de pois, já na área de Letras. Eu não me sentia profissional, foi uma coisa acidental. Acho que ninguém percebeu, esse primeiro livro e o segundo também eram muito embebidos da literatura dele, do João Ubaldo. São ubaldianos, digamos assim, é um tipo de português ligeiramente sofisticado do ponto de vista do vocabulário, do ponto de vista da estrutura sintática — frases longas, uma coisa meio abarrocada, assim, mas que ri dessa própria sofisticação. De um jeito ou de outro, através dessa pseudossofisticação, tira efeitos cômicos.

Não ao pedantismo
O João Ubaldo percebeu em mim um escritor que não se levava a sério, e acho que foi isso que o encantou no meu livro de estreia. Ele tinha horror de falar de literatura, porque achava que tudo soava pedante, tudo isso soava intelectualoide, tudo distanciava mais o ouvinte da literatura do que aproximava. Então, quando ele viu um escritor jovem que não tentava se impor através de um intelectualismo um pouco forçado, que não tentava se impor através de uma falsa erudição — porque ninguém aos 24 anos pode ser tão erudito assim —, acho que foi isso que deu a liga a ponto de ele aceitar o convite para escrever o prefácio.

Amadurecimento
Eu escolheria quatro escritores se tivesse que levá-los para uma ilha deserta, mas dois cumprem um pouco a mesma função. Em um primeiro momento, dos 13 aos 15 anos, em que você é um adolescente e se sente a única pessoa infeliz do mundo — é só você, tem uma nuvem em cima da sua cabeça —, o Eça [de Queirós] e o João Ubaldo me ensinaram a rir dos problemas e dos males que eu via no mundo. É uma filosofia de vida que eles me passaram. Aí, quando estava chegando aos 15, 16, 17, 18 anos, foi o impacto do Shakespeare. Foi uma coisa construída, porque quando fiz 15 anos meu pai me deu uma obra completa do Shakespeare em inglês. É um presente que, ao mesmo tempo, é um estímulo e uma humilhação, né?! Porque eu não falava inglês nem do século XX, que dirá do século XVII. Ficava tentando ler com o dicionário do lado, mas era dificílimo. Até que finalmente aos 17, 18 anos deu um clique. Assisti a um DVD do Rei Lear, com Laurence Olivier, e deu clique total, inclusive de conseguir ler em inglês. E aí, o que acontecia naquele momento na minha vida? Por mais que rir dos próprios problemas seja uma sabedoria de vida, e é, aos 17, 18 anos a vida adulta está começando. É hora de arregaçar as mangas e pegar as rédeas da sua vida, não apenas rir dos problemas, mas tentar resolvê-los, pelo menos em parte. Acho que o Shakespeare entra porque os personagens dele são muito donos do próprio destino — bons ou maus, vilões ou mocinhos. Os personagens do Shakespeare estão partindo para um estilo de vida que eles controlam, decidem o que fazer do próprio destino — às vezes erram e pagam por isso, às vezes, mesmo sendo bonzinhos, erram exatamente por serem bonzinhos demais. O mundo do Shakespeare é muito complicado. Isso me deu muita coragem para começar a minha vida adulta. Não por acaso, dois anos depois eu estava morando em São Paulo. Tinha largado o trabalho na editora do meu pai, tinha ido morar longe da família. Estava começando uma vida completamente diferente. O Shakespeare tem uma parcela de culpa nisso. O quarto escritor que me ajudou num terceiro momento da minha vida, é o William Faulkner. Eu estava me separando do primeiro casamento quando traduzi Palmeiras selvagens, então era um momento bem confuso na minha vida. É assim: um me ensinou a rir dos problemas, o outro a tentar resolvê-los e o outro me ensinou que não há solução, mas que não sou o único infeliz. Todo mundo é igualmente miserável. O Faulkner fecha esse ciclo. Não sei se vai aparecer outro escritor capaz de acrescentar mais alguma etapa nessa trajetória.

Hamlet ou Amleto?
Tenho quatro livros juvenis. O Hamlet ou Amleto? é um pouco isso, eu tentando aproximar o jovem do Shakespeare, para ele não sofrer tudo que sofri entre os 15 e os 18 anos tentando decifrar aquele livro em inglês. Pego a peça, traduzo e invento um diálogo de um diretor de teatro com o ator que vai interpretar o papel do Hamlet, então eles vão percorrendo a peça cena por cena. Vou destrinchando a peça para o leitor de uma maneira que acho que ficou leve.

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Para jovens
Eu estava escrevendo um romance chamado Outra vida e não sabia como terminá-lo. Não sabia continuar, na verdade. Foi o livro que mais demorei para finalizar, sete anos ao todo. Parei mais ou menos em 2007 e falei: “Vou escrever alguma coisa leve, sem plano, despretensiosa”. Resolvi fazer um livro juvenil. Minha filha tinha 12 anos na época. Escrevi O fazedor de velhos em dois meses, foi muito rápido. Para os meus padrões, rapidíssimo. E depois a editora me deu um chá de cadeira, demorou um ano e meio para publicar. Ainda fiquei mexendo, mas tinha começo, meio e fim no papel em dois meses, e isso é 90% do trabalho. Aí aconteceu um acidente milagroso, porque o livro fez um sucesso retumbante, ganhou muitos prêmios, até hoje vende e até hoje vou às escolas falar dele. Descobri que, realmente, tenho um prazer muito grande em escrever para jovem. O que eu sei do mundo da leitura infantil e juvenil é que o brasileiro até lê numa primeira infância, até tem contato com os livros. Mas quando chega aos 12, 13 anos parece que há um abismo, meio que todo mundo para de ler, e apenas uma parcela dos jovens voltam a ler por conta do vestibular, já no fim do Ensino Médio. Talvez tenha mudado um pouco hoje com o sucesso dos bloggers e vloggers e sei lá o quê, que acabam sempre fazendo livro, né? As pessoas falam que o mundo digital vai substituir o livro, mas o que você vê é que todo mundo que faz sucesso escrevendo coisas na internet, uma hora lança um livro. Essa discussão a gente não precisa nem mais ter, porque o livro está absolutamente preservado.

Desorganização total
Minha sensação é que o país retrocedeu. Tenho a sensação de que eu, quando estava chegando na vida adulta — no início dos anos 1990, final dos anos 1980 —, peguei um país com milhões de problemas, muito atrasado numa série de questões que avançava lentamente, a economia totalmente desorganizada, a inflação astronômica, mas a gente tinha a sensação de que o país estava indo para frente. Agora vejo a minha filha, que tem 23 anos, recebendo um país completamente sem rumo. Pesquisando para escrever A república das abelhas, vi que o Brasil avança apesar do seu processo histórico. É estranho isso, mas às vezes o processo histórico não aponta para um progresso. A coisa se desorganiza inteiramente, e aí passam-se os anos e você vê que no meio daquela bagunça aconteceram umas coisas que foram boas, que foram importantes, mas que na hora não dava para ver. Pode ser que a gente esteja vivendo um momento assim. Mas, olhando agora, o que vejo é a desorganização total. A gente regrediu na nossa atitude para com a política, e digo isso tanto da esquerda quanto da direita. A gente perdeu a capacidade de negociar, perdeu a capacidade de conviver com a diferença, perdeu a capacidade de ser democrata em alguma medida. É aquilo que o Fernando Gabeira tem falado bastante, quer dizer, a qualidade da nossa vida democrática caiu.

A república das abelhas
Gostei de escrever o pedaço que eu não conhecia da minha história, que foi desse avô do meu avô que era um cara que nasceu no interior do estado do Rio, se formou em Direito em São Paulo, voltou para o estado do Rio e ajudou a fundar o partido republicano na cidade. Era um abolicionista, republicano e depois foi ministro dos transportes do primeiro presidente civil, Prudente de Moraes. E era um cara totalmente neurótico, mas bem-intencionado, um neurótico bem-intencionado, e depois vieram os três filhos dele — dois comunistas que, em momentos diferentes, chegaram a ser secretários gerais do Partido Comunista no Brasil e um socialista utópico, que era o meu bisavô, Maurício, e que curiosamente tinha o apelido de “Bola de Demolição”. Quando chego no momento para falar do meu avô, o apelido “Metralhadora Giratória” tem um eco. Comecei a enxergar relações entre eles e essa coisa explosiva. Eles eram muito explosivos, todos eles, muito impacientes — impacientes com o processo histórico, impacientes com o tempo da democracia, e isso foi fatal na carreira de todos eles, menos na carreira desse avô do meu avô. Mas na carreira do meu bisavô, dos meus tios-bisavós comunistas, enfim, nada pode ser mais impaciente com o tempo da democracia do que o desejo da revolução. Isso é exatamente a vontade de acelerar o processo histórico ao máximo, o que é compreensível. Mas não é o tempo da democracia, e que acho que explica muito das atitudes do meu avô também. Ele fazia bons diagnósticos, mas não concordo tanto com os prognósticos e tratamentos. Foi difícil escrever, mas esse pedaço das duas gerações mais antigas foi mais interessante porque eu conhecia menos. Foi realmente incrível descobrir que esses tios-bisavós comunistas tinham sido tão importantes assim.

Meio ambiente
A humanidade caminha para o cataclisma. Acho que vai ter uma mortandade, não será a primeira — com a peste negra, na Idade Média, a gripe espanhola, no século XIX, três quintos da população mundial morreram. Caminhamos para uma coisa assim, porque não estamos conseguindo reverter o estrago que estamos fazendo no planeta. Isso para mim é um ponto pacífico. Inclusive estamos regredindo, né? Políticos como o Trump, como o próprio Bolsonaro... Mas, verdade seja dita, os nossos governos de esquerda também não foram bons na área do meio ambiente. Não por acaso, a Marina Silva, o Fernando Gabeira, pessoas que eram muito ligadas à questão do meio ambiente, abandonaram os governos do PT muito antes desses governos acabarem. Então, à esquerda e à direita, não vejo no mundo uma força política capaz de reverter o que está acontecendo. Os cataclismas já estão em curso — Portugal pega fogo todo ano, a Califórnia pega fogo todo ano, os países-ilha lá do Pacífico vão ser inundados, o Polo Norte está numa situação calamitosa, a quantidade de gelo que se perde por ano é gigantesca. A humanidade tinha dois bilhões de pessoas até 1950, em vinte mil anos de história, dois bilhões de pessoas, de 1950 pra cá nós somos sete bilhões. Nesse ritmo não vai ter solução.

Espelho da sociedade
Além disso, a natureza começou a ser para mim um espelho da sociedade humana. Existe uma área da biologia que se chama sociobiologia. O grande papa desse assunto é Edward Wilson, um americano, começou estudando formigas e aí criou conceitos de sociobiologia que hoje em dia são aplicados a várias espécies. Algumas tem sociedade mais desenvolvidas, outras menos, mas ele tem uma frase que adoro: “A humanidade é uma espécie disfuncional, porque ela tem emoções paleolíticas, instituições medievais e uma tecnologia futurista, e essa mistura é altamente explosiva”. A natureza passou a ser também uma fonte de metáforas para mim, porque o que a gente já sabe sobre a natureza é tão rico que é quase religioso, é quase transcendental. Tem uma frase no Reserva natural: “Não é nada sobrenatural que me faz acreditar, enfim, no extraordinário, é a realidade até aqui conhecida, porque ela em si já é sobrenatural, claro”. Então, você entende como é que os ecossistemas se organizam, como é que cada espécie desempenha um papel, como é a forma de cada espécie, como o corpo dela se desenvolveu e é adequado a determinadas funções. A natureza passou a ser um repertório infinito de assuntos para mim, e acho que ela passou a ser uma nova fronteira artística. A neurociência é uma nova fronteira de conhecimento humano.

Literatura sonora
A literatura perdeu importância no mundo contemporâneo porque boa parte dela abriu mão, pelo menos na prosa ficcional, da sonoridade, da dimensão sonora que aquilo tem. Um escritor como Lobo Antunes, como o Saramago, como o João Ubaldo são exceções. Veja que é muito fácil você encontrar um herdeiro do Rubem Fonseca nos dias de hoje, mas não é muito fácil encontrar um herdeiro do João Ubaldo, do João Antônio, porque tem uma coisa melódica ali, um uso da língua para ser fruído para um outro sentido que não seja o visual. É aquela coisa máxima da literatura americana que muitos escritores brasileiros absorveram — show, don’t tell [mostre, não conte] — e essa ênfase no visual. Acho que para a literatura é empobrecedor, porque se é para ser só o visual você está abrindo mão de uma dimensão da literatura. E gosto de literatura sonora. O Eça é um cara extremamente sonoro e acho que sou um pouco assim. Talvez isso não seja, hoje em dia, tão valorizado quanto deveria. Gosto de uma literatura sonora. N’O fazedor de velhos, por exemplo, tem uma discussão do menino com a garota que ele quer namorar, e ele recita trechos d’O guarani, do José de Alencar. Ela ri e fala: “Nossa! Ninguém mais se apaixona assim, isso daí é totalmente ridículo”. Ele insiste e recita mais um trecho, aí ela responde com um poema contemporâneo, que já é outra discussão. A língua portuguesa é muito plástica, muito rica e explorá-la ao máximo é uma curtição que tenho. Não abro mão de às vezes escrever palavras que não são coloquiais. Esse tipo de recurso pode parecer um pouco empolado, digamos assim, mas não é a minha intenção. Minha intenção é explorar a língua ao máximo.

Monopólios literários
As editoras, em alguma medi - da, podem ditar — a gente viu nos últimos anos no Brasil — uma grande concentração empresarial no merca - do editorial. Grandes grupos se for - maram. Você tem o grupo Ediouro, que tem a Nova Fronteira, a Relume - -Dumará, a Agir, a própria Ediouro; você tem o grupo Record, que tem a Record, a Civilização Brasileira, a José Olympio; em São Paulo você tem o grupo Companhia das Letras, que tem a Alfaguara, Companhia das Letras, Seguinte, Paralela, etc. Essa concentração pode distorcer um pouco sim o mercado, porque o editor, se lançar 30 livros por mês, tem que eleger três, quatro, cinco livros para divulgar na imprensa. São os livros que ele quer bombar, que precisa que venda, ou porque ele pagou um adiantamento muito caro, ou porque é uma apos - ta editorial dele, enfim. Na medida em que controla cinco, seis editoras, ele tem um poder de dirigir a imprensa muito maior do que se fosse uma editora só. Ele coloca em segundo plano o catálogo de cinco editoras e preza autores que quer enfatizar. Isso é o que acontece hoje em dia, nesses grandes grupos. É uma pena. Acho isso ruim porque tem muito livro bom que por um motivo ou por outro não agradou instância decisória do grupo editorial — ou o autor não é midiático, ou algum problema qualquer desse tipo, que não tem nada a ver com a qualidade da obra — e o livro não consegue sequer competir em igualdade de condição na disputa da atenção dos jorna - listas, de gente especializada na área, dos cadernos literários. Essa concentração tem um efeito muito ruim.

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Literatura acessível
Já vi muita gente defender essa tese de que a literatura brasileira ou era excelente, nível João Cabral, Drummond, ou era muito ruim, mas que faltava ao Brasil uma literatura média — de boa qualidade, mas, enfim, que tivesse uma circulação popular. A princípio, concordo com isso. A literatura no Brasil, talvez hoje nem tanto, mas durante muito tempo da minha carreira ainda tinha uma coisa de se levar muito a sério, de querer revolucionar a estética universal. Eu tendo a achar que quem se propõe a fazer isso é que nem ficar olhando a torradeira, sabe?, A torrada nunca fica pronta. Quem se propõe a fazer isso deliberadamente, a chance de quebrar a cara é gigantesca. Porque ou é uma linguagem nova, revolucionária, estética, mas espontânea, natural, que brota da pessoa, ou então fica uma impostação artificial, pedante, pretensiosa. Nesse sentido, acho que quanto mais melhor, porque a literatura deixa de ser essa torre de marfim feita para pessoas extremamente cultas, letradas e sofisticadas. Isso cria um ambiente um pouco claustrofóbico e chato. Pedante. Quanto mais variedade, melhor. Como já falei, sou a favor de ler todo tipo de coisa, todo tipo de assunto, todo tipo de linguagem, desde a coisa mais vulgar à coisa mais sofisticada, então nesse sentido acho que a quantidade contribui para a qualidade, porque a qualidade para mim está associada à variedade, às múltiplas formas de usar a língua e de usar a literatura. 

Em andamento
Ainda estou trabalhando no Reserva natural, digamos assim. Hoje em dia vejo o quanto a natureza está presente na minha obra desde A dinâmica das larvas. Esse tema reaparece no Tripé, que tem um conto que fala de ratos. Percebo o quanto a natureza está es - palhada em toda a minha obra. A república das abelhas tem uma cena em que conto como as abelhas votam ao decidir para onde levar a nova colmeia. No Reserva natural, a natureza ganha o primeiro plano final - mente, e o livro que estou trabalhando agora é levando isso ainda um passo à frente. Em alguns momentos desse livro, os personagens serão animais. Os animais não serão apenas metáforas dos sentimentos humanos. Não sei se vou dar nome aos personagens, porque a ideia de dar nome para o animal me parece que infantiliza um pouco o recurso de transformar o animal no personagem. Estou me debatendo com esses dilemas, porque já escrevi três começos para o livro e não gostei de nenhum deles.